A AUTONOMIA DA MULHER PARA A REDUÇÂO DA POBREZA NO SEIO FAMILIAR

quarta-feira, 25 de abril de 2018


 Maria Odette Pinheiro
Mulher cabo-verdiana, mulher santantonense!
Enquanto eu crescia, numa infância e adolescência passadas parcialmente nesta ilha, vi-a muitas vezes calcorreando os caminhos escarpados e pedregosos de Santo Antão com cargas à cabeça, pés descalços e um filho às costas, procurando sobreviver através dos parcos escudos que lhe pagavam. A mulher era o principal “meio de transporte” de cargas de uma localidade para outra e mesmo até aos portos, para escoamento da produção agrícola. Isso quando em todo o Santo Antão as viaturas podiam ser contadas nos dedos de uma só mão, e as estradas quase não existiam. Eram só caminhos.
Via-a trabalhando como “criada”, sete dias na semana, mais que de sol a sol, sem horário, sem dias de folga, sem direito a férias, disponível aos patrões desde o raiar do dia até tarde de noite, quando eles já não precisassem e se fossem deitar; e até durante a noite, se surgisse algum incómodo ou necessidade: sempre submissa, sempre disponível, sempre serviçal.
Vi-a, também, na faina agrícola, por exemplo na apanha do café, depois batendo os grãos no pilão para lhes tirar a casca, e em todas as outras etapas da limpeza do produto, que, acabado, era ensacado e colocado à sua cabeça a caminho dos portos de exportação da ilha: contribuindo, assim, para o desafogo dos senhores, enquanto ela continuava sempre no parco nível da simples sobrevivência.
Vi-a dona de casa, sem capacitação, sem competências senão as de fazedora do lar, criando os filhos de quem era mais que marido, autêntico senhor; por vezes tendo de sujeitar-se a situações degradantes por não ter modo de escape nem de sobreviver sozinha. Até porque o abandono do lar era uma desonra, quaisquer que fossem as situações degradantes de que ela fugia. A própria lei funcionava contra ela. Não era que até para viajar precisava da autorização expressa do marido?
Não vi, mas sei que em tempos de carestia ou fome, muitas delas tiveram de se vender e algumas até viram a sua virgindade vendida pelos próprios progenitores aos senhores da ilha, a troco de umas quartas de milho ou para pagamento de uma dívida, para salvarem a família da desnutrição e da morte. Até não há muito tempo não se chamava violação ao acto de um homem adulto se aproveitar de uma mulher ainda criança, violentando-lhe o corpo e a alma.
Mas a tudo isto a mulher santantonense (e posso dizer a mulher cabo-verdiana) sobreviveu, pelo menos a maior parte. E continuou a alimentar os filhos com o seu suor, muitas vezes sozinha, a ser a cola da família, a procurar pôr os meninos na escola, talvez na esperança de lhes dar um futuro melhor que o seu presente, uma oportunidade de evasão, talvez de ir para uma terra longe onde não houvesse gente gentio e donde pudessem voltar com anel de ouro no dedo e, muito provavelmente, ajudar a mamã-velha.
Sim, porque a sua única esperança eram os filhos, por isso não se importava de os ter, mesmo que fosse de um pai atrás do outro. Destino, dizia ela! E que esses pais sucessivos a deixassem sozinha a criar os meninos, mercê dessa poligamia não oficial que grassou sempre e ainda está presente na nossa terra, com contornos degradantes: filhos, privados de modelos masculinos de valor, crescendo disfuncionais por terem na alma a marca duma pseudo-orfandade, com um pai vivo algures mas incógnito ou simplesmente desaparecido das suas vidas; e, no mínimo, a circular por aí, mas não contribuindo para o seu sustento e educação.
É verdade que havia excepções. Mulheres que mercê da sua condição social conseguiram escapar a estes padrões. Mulheres privilegiadas, mas eram poucas.
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Nalguns aspectos, já percorremos um longo caminho. Muita coisa já mudou nestas décadas em que Cabo Verde tomou o seu destino nas mãos. Mas sofremos ainda uma herança pesada determinada por séculos de estratos culturais negativos que estigmatizaram a mulher e a reduziram a quase escrava, por vezes quase a animalizaram, roubando-lhe a dignidade e fazendo-a sempre subserviente, obrigando-a a pensar-se sempre em função de mais alguém, especialmente do homem e das suas necessidades. Situação muitas vezes reforçada por conceitos religiosos derivados de interpretações erróneas das Escrituras Cristãs, conceitos baseados em pronunciamentos práticos ligados à cultura da época em que foram escritos, mas que por certo na mente do Eterno não se destinavam a ser universais e permanentes; de modo que nem na igreja ela encontrou defensora, limitando-se essa a incitá-la à submissão, à resignação, a baixar os braços e a aceitar ser minimizada, fazedora do lar e fazedora de filhos.  
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Como reverter completamente os padrões sedimentados na consciência colectiva da mulher por tantos séculos de rebaixamento e de se pensar em relação ao outro, ao homem e aos filhos? Como sacudir o espírito de coitada, especialmente da mulher rural e ajudá-la a ganhar autonomia?
Hoje, em que já temos a lei a nosso favor, em que a igualdade é um dado teoricamente adquirido, em que há o acesso universal a oito anos de escolaridade, o que resta fazer para que a mulher tenha autonomia e assim se possa alcançar uma redução significativa da pobreza? Considerando, como dizia o meu marido, que todo o escudo ganho por uma mulher vai para a família, enquanto não se pode dizer o mesmo de muitos homens, que os gastam no botequim da esquina ainda antes de chegarem a casa.
Creio que precisamos trabalhar em dois polos.
Primeiramente, precisamos trabalhar mais afincadamente no sentido de uma mudança de mentalidade, e isto nos dois géneros, mas incumbe-me falar da mulher. Precisamos começar na criança ainda pequena, para que a menina se veja como igual; e, mais tarde, quando crescer, não se veja como objecto, mas como sujeito: não precisando entrar em jogos de sedução, em cuidar do exterior mais do que do interior, em procurar atrair, em contentar-se com ser escolhida; mas a saber, ela própria, escolher, recusar o que não lhe serve e determinar o seu destino. Destino não é o que nos acontece, é o que escolhemos, consciente ou inconscientemente; é resultado das nossas escolhas e acções. Precisamos ser pró-activas.
Devemos ensinar as nossas meninas a valorizar-se através do conhecimento e da competência, a quererem o melhor para as suas vidas e a aprenderem a não deixar que vontades alheias as distraiam e desviem dos objectivos que propuserem para as suas vidas.
Claro que a maternidade estará sempre no horizonte da quase totalidade do género feminino. Mas, contrapondo à paternidade responsável, de que tanto se fala, e bem, precisamos enfatizar a maternidade responsável, para que a mulher tome sobre si a responsabilidade de não deixar que lhe façam um filho extemporânea ou precocemente. Precisamos dar-lhe as ferramentas (e falo aqui de lhe elevar o nível de consciência) que lhe permitirão desmontar os estratagemas que a coberto da palavra amor (pseudo-amor, pois amor verdadeiro é querer o bem do outro) vão-lhe fazer ceder e desviar o rumo da sua vida, perdendo o controlo de si mesma e do seu corpo, passando esse controlo a mais alguém.
Antes de começarem a actividade sexual (e bom seria que conseguíssemos reverter a tendência da cultura actual, a fim de retardar esse começo, agora cada vez mais precoce), antes de começarem, todas as meninas já deviam estar empoderadas no sentido de que lhes cabe a elas regular a sua natalidade e não deixarem ao homem a responsabilidade de o fazer. Esse é um empoderamento que deve ser feito desde muito cedo. A camisinha continua a ser uma salvaguarda razoável contra as doenças sexualmente transmitidas, e por isso a ênfase nesse programa deve continuar, mas depende da vontade do homem e por isso não funciona se a mulher não for firme e exigir o seu uso; e na questão da natalidade não é suficiente, pois passa a responsabilidade toda para o homem, quando, em vez disso, essa responsabilidade, esse empoderamento, deve residir na mulher, que deve saber defender-se e proteger-se, pois é ela que, uma vez grávida, sofrerá todas as consequências. 
Um trabalho mais aturado precisa ser feito para diminuir ou evitar a gravidez precoce, e aplico este termo à falta de idade ou de maturidade para se ser mãe, e a todas as situações quando ainda não estão reunidas as condições para se criar um filho.
Porque, o que hoje ainda vemos é que muitas jovens ficam com as asas cortadas por se deixarem enredar em promessas vazias pelas quais acabam sozinhas, com um filho nos braços, cenário que pode ser repetido uma, duas, três vezes, perpetuando um ciclo de pobreza, de sofrimento e de disfuncionalidade familiar e social. E o aborto decididamente não devia ser usado como simples meio de controlo da natalidade.
A maternidade responsável significa a mulher escolher não ter filhos sem que estejam reunidas as condições para os poder criar e preparar para a vida, com ou sem ajuda paterna, ainda mais quando à partida o potencial pai do filho por vezes nem sequer tem com que se sustentar a si mesmo, quanto mais para sustentar um filho! E, se tiver, a nossa justiça ainda é fraca em o obrigar a contribuir.
Há um trabalho que deveria ser feito com os pais e mães actualmente já a criar filhos, no sentido de os educar nestes conceitos. Mas é difícil obter a sua audiência e atenção. Os meios de comunicação poderiam ajudar um pouco mais, mas os programas de TV com maior audiência são as novelas, que intoxicam e não ajudam.
A escola é o único lugar de acesso a todas as meninas; e talvez se deva procurar um modo de conseguir um maior acesso aos pais e mães através da própria escola dos filhos. Pesa, por isso, sobre a escola a responsabilidade de desmontar todos os conceitos culturais perniciosos, já que muitas famílias estão agarradas à cultura tradicional, sob o efeito de todos esses estratos culturais adversos, não sendo capazes de remar contra a maré. A mãe que criou os filhos sozinha e de maneira precária dá-se por satisfeita em se tornar avó de netos que vão ser criados por ela e pela filha, por vezes coabitando três e até quatro gerações num espaço exíguo, vivendo ainda mais precariamente.
O outro requisito para se avançar rumo à autonomia da mulher é a sua capacitação profissional. E, aqui, também, a responsabilidade principal reside na escola. E o que vou dizer aplica-se tanto a rapazes como a meninas.
Infelizmente, há algum tempo que Cabo Verde tomou a decisão, quanto a mim errada, de apostar mais fortemente no ensino científico-humanístico (realmente mais humanístico que científico), sem o equilibrar com o ensino técnico-profissional.
Temos centenas e centenas de alunos saindo anualmente dos liceus com uma formação espantosamente inferior à de antigamente, em que com o 5º ano antigo se entrava para a administração pública, para os bancos, para as Alfândegas, com ferramentas adequadas para se ter sucesso: a matemática, o português, uma cultura geral básica razoável, sabendo ler e escrever correctamente, o que hoje é difícil para muitos alunos que saem com o 12º sem saberem redigir correctamente uma simples nota, o que parece estender-se até a muitos licenciados.
E há as centenas de licenciados que saem todos os anos das nossas múltiplas “universidades” sem possibilidade de encontrarem trabalho no nosso reduzido mercado: ou porque escolheram cursos humanísticos que já chegaram à saturação, ou porque só têm conhecimentos teóricos e estão mal preparados, enquanto nos faltam bons técnicos e profissionais de nível médio, que, bem capacitados e apetrechados, poderiam ganhar a vida aqui ou em qualquer outro lugar do mundo: daqueles que antigamente a Escola Comercial e Industrial do Mindelo e a Escola Salesiana formavam com grande sucesso.
Em Cabo Verde sempre houve um certo desprezo pelo trabalho manual mas precisamos perder esse desprezo e apostar na formação média, ao mesmo tempo que devemos procurar diminuir o desnível monstruoso que existe entre a remuneração do trabalho considerado intelectual e o manual, para conseguirmos reduzir a pobreza.
Precisamos de nos consciencializar que com os níveis do preço da electricidade e da água, e com escassez de matérias-primas para a grande indústria, Cabo Verde nunca poderá ser industrializado a um nível competitivo do produto final, senão à custa de baixíssimos salários que perpetuarão o ciclo de pobreza. E esses salários na maior parte são de mulheres. Melhor que nada, pois estão a contribuir para a sua sobrevivência e pelo menos não estão completamente desempregadas, mas nada mais.
A ideia da grande industrialização para exportação parece uma utopia! Será que vamos poder competir com a China, que está a invadir o mundo inteiro com todo o tipo de produtos? Ou com colossos como a Nigéria e outros países da nossa África, também apostados na industrialização? O que poderemos fabricar em grande escala para mandar para fora a um nível competitivo? Muito pouca coisa, se alguma. Os outros também estão nesta corrida e têm tudo em maior escala! Sejamos realistas, pois o nosso produto final será sempre mais caro, se tivermos salários adequados; ainda mais se tivermos de importar matéria-prima para lhe acrescentar valor e reexportar!
O nosso caminho é procurar satisfazer as nossas necessidades circulando os nossos produtos entre as ilhas, e para isso precisamos estradas no mar (dizem que é para breve, veremos!); apostar na industrialização de produtos específicos e culturais, usando as matérias-primas que temos e que consigam iludir a concorrência: os nossos queijos, a nossa doçaria, o grogue, a secagem de frutas e legumes, as conservas de pescado (das melhores do mundo), incluindo secagem e fumagem, etc., etc.
Mas uma aposta maior deve ser em serviços, que não exigem água nem energia nem matérias-primas vindas de fora. E por isso devemos procurar direccionar as meninas para a tecnologia e para as ciências (a que elas ainda parecem um pouco refractárias), para poderem ter o seu quinhão no desenvolvimento desse sector.  
Contudo, a maior de todas as apostas deve ser num turismo de qualidade que torne Cabo Verde um destino apetecível, mas que beneficie a população e não só as grandes cadeias com um dinheiro que fica lá fora. O turismo ecológico, para ilhas como Santo Antão, é uma escolha de eleição. Mas precisa ter muita qualidade, já que a qualidade é o melhor marketing: quem encontrou qualidade torna a vir e diz aos amigos para virem; quem não encontrou qualidade não volta e diz aos outros para não virem.
Nisto as Câmaras e o Governo têm uma grande responsabilidade, devendo ajudar a desenvolver e a regular a qualidade de todos esses produtos, quer os industriais quer os turísticos, para que se imponham por si mesmos. Contribuirá para a autonomia tanto das mulheres como dos homens da nossa terra.
Precisamos duma aposta na excelência de tudo que fazemos. Isto também interpela a escola. Não é baixando as fasquias, como se vem fazendo, tanto a fasquia do aproveitamento escolar como da disciplina pessoal e colectiva, que lá chegaremos. As sociedades mais progressivas e os países emergentes da actualidade são aqueles que apostam no rigor, na disciplina, na exigência, em suma, na excelência, enquanto parecemos por vezes apostados no “deixar passar”, no “fechar os olhos”, no “não fazer ondas”, traindo a nossa juventude e o seu futuro.
Sim, a autonomia e o bem-estar da mulher dependem de vários aspectos que precisam ser trabalhados. Mas ajudará a diminuir a pobreza no meio familiar e, por isso, contribuirá, também, para o bem-estar do homem.
Que o futuro seja diferente e muito mais auspicioso!
Obrigada!

Maria Odette Pinheiro
Porto Novo, 20 de Março de 2018
1º Fórum do Desenvolvimento Social do Município do Porto Novo


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