A DERIVA DO MpD, FIGURAS DO ESTADO E O DIA DO MUNICÍPIO

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Recebi, por e-mail, um texto (autor devidamente identificado) há já algum tempo, não muito, uma vez que dizia respeito a uma data referenciada – aniversário da fundação do MpD (14.03.1990) – um pequeno texto, que, galgando a onda do anglicismo que hoje vagueia pelo mundo, se designa por “post”, que a seguir reproduzo, com a devida vénia, por com ele concordar, embora ache que o autor tenha sido algo comedido na sua apreciação:
OS DOIS EMEPÊDÊS...
O partido honrado e de princípios, que se chama Movimento para a Democracia, fez ontem 29 anos de vida e, hoje, é um estado de espírito, uma chama que vive na mente de milhares de cabo-verdianos (e que, seguramente, pese o seu estado vegetativo, não vai morrer).
O partido que está no poder – que, curiosamente, ostenta o mesmo nome – tem apenas cinco/seis anos de existência. São dois partidos diferentes, mas partilhando o mesmo nome.
O primeiro, é um partido de militantes e de causas; o segundo, uma coletividade de tecnocratas, uma espécie de Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada...”
Sem discordar do autor, na sua apreciação global penso que ao considerar o actual MpD “uma colectividade de tecnocratas” terá usado um misericordioso eufemismo ou terá sido extremamente generoso. Tecnocratas?! Quem nos dera!... Desde quando? Por respeito e consideração, e até estima, por algumas pessoas da direcção do MpD e do seu grupo parlamentar escuso-me de definir o tipo de colectividade em que se tornou essa sociedade (empresa) política.
O que não há dúvida é que deixou de ter uma linha condutora e uma doutrina orientadora associadas às suas raízes identitárias. A submissão a pessoas, doutrinas e ideologias que nada têm que ver com os princípios fundadores do MpD descaracteriza o partido conduzindo a uma de três conclusões: amnésia selectiva, ausência de ideias ou completa falta de carácter. Só assim se justifica a obediência a uma ideologia e a apologia ou defesa de um regime que muitos males causaram ao povo cabo-verdiano e que foram repudiadas de forma veemente nas legislativas do dia 13 de Janeiro de 1991 e do dia 17 de Dezembro de 1995 – cada uma das datas com uma maioria qualificada – por eleitores que sabiam e tinham bem presente o que fora a tenebrosa ditadura do PAIGC/CV (vide “O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança” de Humberto Cardoso – Edição Pedro Cardoso).
Aceito que os novos eleitores – menores de 40 anos que terão crescido na democracia e em liberdade, graças ao MpD (os menos informados nem o sabem)não terão tido consciência da verdadeira dimensão do que é (ou fora) a ausência desses valores fundamentais. É certo que para esta situação também contribuíram, e têm contribuído, alguns trovadores que no seu entusiasmo lírico terão conjugado “Independência” com “Liberdade” como se de um casamento lógico se tratasse, sem se darem conta que a realidade, desde os seus primeiros momentos, apontava para a absoluta inexistência desse binómio. A Independência não se fez acompanhar nem da liberdade, nem da democracia, mas sim de uma pura ditadura, e dura para a brandura deste povo.
A recente polémica sobre figuras do Estado trouxe ao de cima, mais uma vez, a verdadeira natureza do actual MpD sobre um assunto que não é, nem de perto nem de longe, virgem, e sobre o qual o partido se manteve sempre quedo e mudo apesar de ter sido veiculado por várias vezes e por diversas pessoas, nas redes sociais e na comunicação social.
O comunicado do secretariado do MpD acerca de figuras do Estado ao invés de apelar ao reforço da necessidade do cumprimento da Constituição fez tábua rasa do primado da Lei - o que é grave! – ao ignorar a denúncia do seu incumprimento e esqueceu-se – amnésia selectiva? – de que o assunto já fora levantado em 2006 por um ilustre deputado do próprio MpD num artigo de opinião intitulado “Com que direito fotos de Amílcar Cabral nas repartições do Estado?
O inoportuno comunicado, respondendo prontamente à “voz do dono”, além de descabido e lamentável, é intimidatório ao pretender censurar a liberdade de expressão no seio do MpD com intenção nítida de cercear um debate sério que ainda não se fez e do qual a democracia e a verdade histórica clamam.
Absolutamente obcecado e pressuroso na defesa acrítica e na legitimação do relato “épico” e “nacionalista” dos “homens de Conacry” que procuram credibilidade na figura de Amílcar Cabral, esquece o MpD que em democracia, em Estado de direito democrático, não há intocáveis ou “vacas sagradas”. Estas as vacas sagradas normalmente associadas ao ‘culto de personalidade’ são figuras de regimes autoritários do tipo de Kim Il Sung da Coreia do Norte, de Hugo Chavez da Venezuela ou mesmo de Pereira/Pires dos nossos primeiros 15 anos de País Independente, citando apenas alguns. Em democracia ninguém está acima da Lei ou fora dela, sendo o respeito escrupuloso pela Constituição e o cumprimento rigoroso das Leis da República a regra de ouro. E não é preciso nenhum doutoramento de Harvard ou de Oxford para distinguir entre figuras do Estado e figuras da História. Basta saber ler e escrever português – coisa de que hoje poucos se interessam – e ter meia dúzia de neurónios.
E é nesta esteira, a de submissão a determinadas pessoas e doutrinas que certas narrativas consideradas heróicas e nacionalistas sem uma análise consistente da sua sustentabilidade, substantiva e adjectiva, nem a aferição da sua dimensão e estatuto que embarcámos no “19 de Maio” como o dia do Município da nossa capital. Uma escaramuça entre magalas e um grupo de rapazes e raparigas na esplanada da Praça Alexandre de Albuquerque transformou-se num acto heróico merecedor de um feriado municipal. Ou terá sido considerado uma resistência organizada contra as Forças Armadas portuguesas que escancararam as portas da independência ao PAIGC? Porquê então municipal e não nacional se se trata de um acto heróico, de um dia marcante da nossa gloriosa História? As datas municipais têm uma lógica bem diferente das datas nacionais – em conteúdo, contexto e simbolismo.
Não é preciso ter dois dedos de testa para saber que, no fatídico dia 19 de Maio, se houvesse intenção expressa (ordenada) de matar, não sobraria ninguém. Eram militares vindos da Guiné com experiência operacional munidos de espingardas metralhadoras. Bastaria um, um só, para fazer os estragos que vimos, infelizmente, assistindo nos “tiroteios” nos EUA e noutros países. Não quer isto dizer que o incidente não tenha sido grave. Foi gravíssimo e muito violento, apesar de não ter havido vítimas mortais. Foi um acto condenável, de efeitos lastimáveis, mas circunscritos e controlados, entre jovens exaltados.
E o mais curioso, é que parece que a própria Câmara já tinha chegado, e bem, a essas conclusões ao adoptar o 29 de Abril – data da elevação da Vila de Santa Maria à categoria de Cidade da Praia em 1858 por Sá da Bandeira – como o dia do Município.
Então, porquê manter o “19 de Maio”? Submissão à narrativa do PAIGC/CV? Porque engendrou a Câmara uma reunião justificativa para concluir salomonicamente de forma ardilosa ou covarde – conforme as perspectivas: cumprimento do “pacto” ou medo da desconstrução da narrativa – para a manutenção das duas datas? Não, o 19 de Maio só pode ser “feriado” numa lógica marxista de fixação de datas históricas ou numa visão estreita da História. A sua dimensão, natureza e estatuto não enobrecem nem dignificam Praia, mas quiçá, apenas e tão-somente, alguns protagonistas do evento que dele têm beneficiado. Por este andar não se estranharia muito se Ribeira Bote reivindicasse o seu “estatuto” de primeira “zona libertada” de Cabo Verde e S. Vicente tivesse também o seu 2º “Dia do Município”.
Praia merece mais. Muito mais! De algo digno e honroso que diga directamente respeito a todos os seus munícipes. E o simbolismo da data da sua elevação, por reconhecido mérito, à categoria de cidade no século XIX é suficiente porque é pertença de todos os seus munícipes e é, para ela, até agora, bem mais significativa do que qualquer outra data. E a manutenção concomitante do “19 de Maio” configura-se abstrusa e redutora.
A.Ferreira
                                                                                                                            

2 comentários:

José Fortes Lopes disse...

Um artigo bastante corajoso na linha daquilo que tenho lido do autor. Não mais tenho a acrescentar. A nossa humanidade só é útil na medida em que temos o discernimento para saber separa o trigo do joio, o verdadeiro do acessório.

Adriano Miranda Lima disse...

Concordo em absoluto com a análise do Armindo Ferreira. A atribuição de significado histórico a um desacato entre magalas e rapazes da Praia, provavelmente por causa de raparigas, ou seja, de piropos a elas dirigidos, é do mais ridículo e vexatório que se pode imaginar. Em S. Vicente, cidade-porto, houve sempre situações dessas. Em Portugal, nas cidades onde há quartéis e os magalas saem à noite para os seus folguedos, também acontecem de vez em quando, embora se deva dizer que eram mais frequentes nos tempos mais recuados. Hoje, os avanços na escolarização e na educação dos comportamentos sociais tendem a restringir essas situações.
Ora, de facto, tudo isto é inacreditável.
Quanto à fotografia do Amílcar Cabral, opinei sobre o assunto numa troca de correspondência. No estado de direito democrático em que se vive hoje em Cabo Verde, tem de haver lucidez e coragem para desalojar definitivamente os anacronismos que entorpecem as mentes e as mantêm prisioneiras de si mesmas. E creio que o Amílcar Cabral agradece.

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