Por Nuno Pacheco*
Há
um antigo filme de animação da Disney, que talvez conheçam, onde um trio
composto por Pato Donald, Zé Carioca (olá, Brasil!) e Panchito (viva, México!)
viaja pela América Latina à descoberta dos usos, costumes e diferenças da
metade sul do continente americano. Ao filme, o sétimo assinado por Walt
Disney, foi dado o título The Three Caballeros, título este que no Brasil foi
mudado para Você já Foi à Bahia? e em Portugal para A Caixinha de Surpresas. O
mais curioso é que o filme é datado de 1945, ano em que terminaria a Segunda
Guerra Mundial e em que Portugal e Brasil assinavam o seu primeiro acordo
ortográfico, que por razões já muito faladas viria a ser denunciado pelo Brasil
em 1955, dando origem à novela que conhecemos.
Pois
bem: como nas animações da Disney, também o Brasil (onde estás, Zé Carioca, que
tanta falta fazes?) parece propenso a ser, nesta matéria, uma caixinha de
surpresas. Primeiro foi o jovem Filipe Martins, assessor especial para Assuntos
Internacionais da Presidência de Jair Bolsonaro, que a 6 de Abril publicou no
Twitter um textinho a dizer que o Brasil devia livrar-se da tomada de três
pinos, das urnas electrónicas e do acordo ortográfico. Depois, foi a vez do deputado
Jaziel Pereira de Sousa, do Partido da República (centro-direita), com imediata
adesão da deputada Paula Belmonte, do Partido Cidadania (antigo PPS e PCB),
requerer a “realização de audiência pública a fim de discutir a revogação do
acordo ortográfico da língua portuguesa”. Esteve marcada, mas foi depois adiada
para 13 de Agosto.
Agora,
no morno e simpático ambiente cabo-verdiano do Mindelo, onde se realizou em 19
de Julho a XXIV Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP), este nosso pequeno mundo ouviu o ministro
das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, tecer encómios ao acordo
ortográfico, “reiterando a importância atribuída pelo Brasil” ao dito e afirmando
esta coisa extraordinária: “Entendemos que alguns Estados-membros que ainda não
ratificaram este importante ato unificador poderão apresentar novos
questionamentos quanto à própria evolução natural do instrumento. A reabertura
do acordo nos deixaria, contudo, sem qualquer marco legal para a gestão do
idioma português. Por isso defendemos, uma vez mais, a tese de que se faz
necessária a ratificação do acordo ortográfico por todos os membros da CPLP,
para depois cuidarmos da sua eventual retificação.” Onde é que já ouvimos isto,
o “assinem que depois logo que vê”? A duas notáveis figuras da nossa ortofolia:
Malaca Casteleiro, um dos inventores da coisa; e Augusto Santos Silva, lídimo
defensor da causa e reconhecido Kaiser do acordo ortográfico.
Será que não foram cumpridas todas as regras deste jogo? Será
que ainda teremos outras surpresas na caixinha até agora fechada a sete chaves?
É
como se fôssemos comprar um automóvel com riscos na tinta, vidros rachados e
buracos no motor e nos dissessem, candidamente: “Compre, compre, que nós depois
o arranjaremos.” Comprariam? Só se fossem parvos. Portanto, uma coisa que tem
erros e incongruências está a ser impingida aos que ainda inteligentemente não
engoliram a Ipatranha com a promessa de que, se assinarem, se responderá (na
langue de bois diplomática) aos “novos questionamentos quanto à própria
evolução natural do instrumento.” Ou seja: ao disparate puro que se sabe.
Curiosamente,
porém, no extenso (e bastante maçador) comunicado final da dita reunião, este
fervor acordista só tem eco num parágrafo. Aquele em que, já no capítulo das
congratulações, diz o seguinte: “[Os ministros presentes] Saudaram os esforços
do conselho científico do IILP para a ativação do Conselho de Ortografia da
Língua Portuguesa (COLP), cuja primeira reunião deverá ocorrer em outubro de
2019, na cidade do Porto.” Mais uma sigla? É verdade, mais uma. Já não bastava
o inenarrável IILP, agora teremos um COLP. Que, pelo nome, há-de ter
conselheiros, como é bom de ver. Um conselho de ortografia! E logo reunido no
Porto, a cidade natal do nosso bem-amado Kaiser do acordo ortográfico! Há-de
ser um mimo, verão.
Esta
é uma das surpresas que nos reservavam. A outra veio do Brasil, com uma posição
que não se sabe se corresponde a um retrocesso no ímpeto revogador, ou se é
apenas passageiro patoá diplomático para animar reuniões em que a moleza de
espírito esvazia tudo o resto. Mas a terceira surpresa é um pouco mais
irritante. O bem-amado Kaiser não teve tempo para responder (tão ocupado que
andará) a um requerimento do coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a
Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, em que este
requeria acesso aos instrumentos de ratificação do AO depositados à guarda do
MNE, o seu ministério. Em 30 dias (prazo legal para o governo responder a
requerimentos deste tipo), a resposta foi o silêncio. Terá o bem-amado Kaiser
algo a esconder? É que se não tem, e se adora assim tanto a sua “dama”
ortográfica, mostre-os. Ficávamos todos mais descansados por saber que, nesta
tristíssima aventura, que nos conduziu a uma aberração sem nome, ao menos
tinham sido cumpridas todas as regras do jogo. Ou será que não foram? Ou será
que afinal ainda teremos outras surpresas na caixinha até agora fechada a sete
chaves?
*Público de 25.Jul.2019
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