O acordo ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas

domingo, 28 de julho de 2019


Por Nuno Pacheco*
Há um antigo filme de animação da Disney, que talvez conheçam, onde um trio composto por Pato Donald, Zé Carioca (olá, Brasil!) e Panchito (viva, México!) viaja pela América Latina à descoberta dos usos, costumes e diferenças da metade sul do continente americano. Ao filme, o sétimo assinado por Walt Disney, foi dado o título The Three Caballeros, título este que no Brasil foi mudado para Você já Foi à Bahia? e em Portugal para A Caixinha de Surpresas. O mais curioso é que o filme é datado de 1945, ano em que terminaria a Segunda Guerra Mundial e em que Portugal e Brasil assinavam o seu primeiro acordo ortográfico, que por razões já muito faladas viria a ser denunciado pelo Brasil em 1955, dando origem à novela que conhecemos.
Pois bem: como nas animações da Disney, também o Brasil (onde estás, Zé Carioca, que tanta falta fazes?) parece propenso a ser, nesta matéria, uma caixinha de surpresas. Primeiro foi o jovem Filipe Martins, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência de Jair Bolsonaro, que a 6 de Abril publicou no Twitter um textinho a dizer que o Brasil devia livrar-se da tomada de três pinos, das urnas electrónicas e do acordo ortográfico. Depois, foi a vez do deputado Jaziel Pereira de Sousa, do Partido da República (centro-direita), com imediata adesão da deputada Paula Belmonte, do Partido Cidadania (antigo PPS e PCB), requerer a “realização de audiência pública a fim de discutir a revogação do acordo ortográfico da língua portuguesa”. Esteve marcada, mas foi depois adiada para 13 de Agosto.
Agora, no morno e simpático ambiente cabo-verdiano do Mindelo, onde se realizou em 19 de Julho a XXIV Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), este nosso pequeno mundo ouviu o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, tecer encómios ao acordo ortográfico, “reiterando a importância atribuída pelo Brasil” ao dito e afirmando esta coisa extraordinária: “Entendemos que alguns Estados-membros que ainda não ratificaram este importante ato unificador poderão apresentar novos questionamentos quanto à própria evolução natural do instrumento. A reabertura do acordo nos deixaria, contudo, sem qualquer marco legal para a gestão do idioma português. Por isso defendemos, uma vez mais, a tese de que se faz necessária a ratificação do acordo ortográfico por todos os membros da CPLP, para depois cuidarmos da sua eventual retificação.” Onde é que já ouvimos isto, o “assinem que depois logo que vê”? A duas notáveis figuras da nossa ortofolia: Malaca Casteleiro, um dos inventores da coisa; e Augusto Santos Silva, lídimo defensor da causa e reconhecido Kaiser do acordo ortográfico.
Será que não foram cumpridas todas as regras deste jogo? Será que ainda teremos outras surpresas na caixinha até agora fechada a sete chaves?
É como se fôssemos comprar um automóvel com riscos na tinta, vidros rachados e buracos no motor e nos dissessem, candidamente: “Compre, compre, que nós depois o arranjaremos.” Comprariam? Só se fossem parvos. Portanto, uma coisa que tem erros e incongruências está a ser impingida aos que ainda inteligentemente não engoliram a Ipatranha com a promessa de que, se assinarem, se responderá (na langue de bois diplomática) aos “novos questionamentos quanto à própria evolução natural do instrumento.” Ou seja: ao disparate puro que se sabe.
Curiosamente, porém, no extenso (e bastante maçador) comunicado final da dita reunião, este fervor acordista só tem eco num parágrafo. Aquele em que, já no capítulo das congratulações, diz o seguinte: “[Os ministros presentes] Saudaram os esforços do conselho científico do IILP para a ativação do Conselho de Ortografia da Língua Portuguesa (COLP), cuja primeira reunião deverá ocorrer em outubro de 2019, na cidade do Porto.” Mais uma sigla? É verdade, mais uma. Já não bastava o inenarrável IILP, agora teremos um COLP. Que, pelo nome, há-de ter conselheiros, como é bom de ver. Um conselho de ortografia! E logo reunido no Porto, a cidade natal do nosso bem-amado Kaiser do acordo ortográfico! Há-de ser um mimo, verão.
Esta é uma das surpresas que nos reservavam. A outra veio do Brasil, com uma posição que não se sabe se corresponde a um retrocesso no ímpeto revogador, ou se é apenas passageiro patoá diplomático para animar reuniões em que a moleza de espírito esvazia tudo o resto. Mas a terceira surpresa é um pouco mais irritante. O bem-amado Kaiser não teve tempo para responder (tão ocupado que andará) a um requerimento do coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, em que este requeria acesso aos instrumentos de ratificação do AO depositados à guarda do MNE, o seu ministério. Em 30 dias (prazo legal para o governo responder a requerimentos deste tipo), a resposta foi o silêncio. Terá o bem-amado Kaiser algo a esconder? É que se não tem, e se adora assim tanto a sua “dama” ortográfica, mostre-os. Ficávamos todos mais descansados por saber que, nesta tristíssima aventura, que nos conduziu a uma aberração sem nome, ao menos tinham sido cumpridas todas as regras do jogo. Ou será que não foram? Ou será que afinal ainda teremos outras surpresas na caixinha até agora fechada a sete chaves?
*Público de 25.Jul.2019


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