Capitães, navios, viagens e naufrágios na escrita de Teixeira de Sousa - Cem anos sobre o seu nascimento -

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Estamos no ano da comemoração do centenário do nascimento do médico, escritor e ensaísta Teixeira de Sousa (1919-2019).
Abro aqui um parêntese para uma nota pessoal e dizer que Teixeira de Sousa é um dos meus escritores de eleição, no que toca à escrita literária cabo-verdiana. Volta e meia, apanho-me a revisitar alguns dos seus ensaios, romances e contos. Creio ter   lido a quase totalidade dos seus escritos ficcionistas e os seus artigos, publicados em jornais e revistas. Isto apenas para dizer que sou leitora aficionada da obra de Teixeira de Sousa. Fecho o parêntesis.

Nesta linha de interesse, igualmente tenho-me debruçado em  análises, sobre alguns romances e contos de T. de Sousa,  em textos dispersos, não só neste «Blog», mas também  em outras publicações e em intervenções públicas.
E já agora uma pequena nota/aviso: o leitor interessado encontrará no Boletim Cabo Verde (1949-1964) e no Jornal Terra-Nova, um acervo significativo de textos ensaísticos de Teixeira de Sousa.

Portanto, é bem provável que me repita nesta evocação em termos de apreciação deste grande escritor de formação ainda Claridoso (1936) e em transição para a geração da «Certeza» (1941).

Sobre o modelo de escrita literária de Teixeira de Sousa, torna-se importante sublinhar também, a influência do movimento  literário português denominado neo-realismo que estava no auge, precisamente, aquando da estada - estudos universitários de medicina 1938-1945 de Henrique Teixeira de Sousa em Lisboa -  e que são de recorte muito acentuado na sua obra, com especial destaque para os Contos (leia-se a colectânea: «Contra Mar e Vento»).

É que concomitantemente à sua vida de bom estudante universitário, Teixeira de Sousa participou também - durante a permanência em Lisboa - em tertúlias literárias, em que pontuavam nomes grandes do movimento, tais como  Fernando Namora, Cardoso Pires, João Cochofel, Mário Dionísio, entre outros famosos escritores da altura.
Convém dizer que muito  do que  aqui vai registado foi antes confirmado pelo próprio escritor que ao ensaísta francês Michel Laban, o autor concedeu uma  grande entrevista, inserta no volume I de «Encontro com Escritores» editado pela Fundação Eng. António de Almeida, Porto,1992. 

Médico de profissão, o Dr. Henrique Teixeira de Sousa viu a luz do mundo, a 6 de Setembro de 1919, no pequeno povoado de São Domingos, na Freguesia de São Lourenço na ilha do Fogo.

Os progenitores do nosso escritor para que os filhos fizessem a Instrução Primária,  a família transpôs-se para a cidade de São Filipe, sede de Concelho e da ilha e onde se sediava a Escola.

A propósito da sua fase de aluno do ensino primário,  na cidade de São Filipe, Teixeira de Sousa relembra com carinho a figura da sua professora, a foguense Irene Vasconcelos Barbosa, num dos muitos artigos escritos para o Jornal «Terra Nova».

Igualmente a figura de professora é evocada e transfigurada em personagem de alguns Contos do autor, com destaque para o Conto «Dragão e Eu» quando, e já com saudades, o protagonista termina o 2º Grau da Instrução Primária:

“ A escola! Não me queria convencer de que tudo tinha acabado. Não mais as lições em classe e as brincadeiras de roda da palmeira. Não mais os livros de leitura com trechos bonitos que eu lia em voz alta. «Marília e Gonçalves passeavam numa tarde, à beira do rio, quando Marília se descuidou e caiu à água. Gonçalves atirou-se ao rio, salvando Marília de correr afogada.»
Era um mundo de coisas belas (...) A professora falava com brandura e ensinava sem bater.”  (In: Contra Mar e Vento, pág. 46 da 3ª edição – Europa-América, 1998).

Para este texto homenagem do centenário do nascimento de Henrique Teixeira de Sousa, escolhi os sub-temas elencados no título.

Afinal, o escritor foguense nunca escondeu a admiração que tinha por tudo que se relacionasse com a vida a bordo de navios. Pelo contrário, sempre a enunciou e afirmou-a de várias maneiras, nas muitas  entrevistas que deu e mesmo em alguns dos seus textos a propósito. Finalmente, retratou-a e recriou-a com enorme projecção na ficção que ele gerou.
Com efeito, ele  habituara-se desde tenra idade a escutar o assunto em  casa. O pai do escritor, João Sousa, natural da ilha Brava, era capitão de longo curso e mais tarde, dono de alguns barcos que fizeram também a aventurosa ligação marítima - Fogo/Brava/ Estado Unidos da América.

Ora bem, a profissão paterna, impregnou no autor um entranhado amor às coisas    marítimas - a vida a bordo, a terminologia náutica, as viagens sobre as quais o escritor frequentemente referia. 

Aliás, segundo ele, crescera a ouvir histórias de embarcadiços, de baleias,  (nestas últimas, incluídas as histórias que lhe foram contadas sobre o trisavô, trancador de baleias de apelido Sousa, oriundo da ilha da Madeira e que  casou e se fixou na Brava); de “americanos” torna-viagem; de mar bravio; de longas calmarias; de naufrágios; de movimento de passageiros e de carga; de contrabandos; de veleiros e de escunas.

De tal forma interiorizou estas vivências que a sua primeira obra publicada  uma colectânea de Contos  intitulou-a: «Contra Mar e Vento» e dedicou-a ao pai: À memória do Capitão John, meu Pai – capitão que foi de veleiro e sabia protestar contra mar e vento, e contra quem de direito for e pertencer possa.” As últimas palavras usadas nesta dedicatória foram parafraseadas propositadamente da linguagem que então se usava nos requerimentos relativos a despachos aduaneiros de barcos e a assuntos marítimos. (Veja-se a propósito, a entrevista de T. de Sousa a Michel Laban – Encontros com Escritores  já aqui referida).

É nesta mesma colectânea de contos que nos é dado conhecer, através do Conto homónimo do título, «Contra Mar e Vento», as peripécias, as vicissitudes de uma viagem nos anos 30, 40 do século passado, que teve como ponto de partida New Bedford nos Estados Unidos da América e como  destino, as ilhas do Fogo e da Brava.  O fulcro da narrativa centra-se nessa viagem que não chegou “a bom porto” antes pelo contrário, um pavoroso incêndio deflagrado na casa das máquinas e o consequente naufrágio do navio, impediram os seus passageiros e respectivas cargas de aportarem em São Filipe na véspera do Natal como previsto.

“Ema Helena” o palhabote “com praça na ilha do Fogo” fez uma tormentosa viagem de Providence  para a ilha do Fogo. O seu capitão “Fortunato” autêntico lobo do mar, conhecia bem os caprichos do “Gulf-Stream(...) O mar do Golfo não devia estar para brincadeiras. Já se sentia a sua má-criação. Os vagalhões cresciam e o vento uivava nas enxárcias como cães em noites. Ema Helena corria a quinze milhas à hora. A barquinha assim marcava. Se o tempo se mantivesse igual até às ilhas, daí a vinte e três dias largariam o ferro em S. Filipe. Noite de natal. Príncipe de Ximento mais os homens da Companhia Braçal cantando bêbados pelas ruas da vila. Missa do Galo na igreja matriz e a canja de galinha quentinha em casa. Eugénia bem vestida e perfumada. Arturinho falando bom português aprendido no liceu. «Esta bicicleta é minha. Foi meu pai que ma trouxe da América.»”  Assim sonhava acordado o “Capitão Fortunato”  Mas os azares durante  a viagem, devido aos ventos contrários, às ondas medonhas do mar, não permitiram a almejada chegada ao destino.

Não foi por acaso que Teixeira de Sousa fazia apelo com alguma insistência para que historiadores, investigadores e até mesmo curiosos da matéria, se debruçassem e escrevessem sobre a história trágico-marítima cabo-verdiana, que está por contar. Principalmente aquela que foi a aventura de veleiros e de escunas de Cabo Verde, em demanda  dos portos da costa leste, a atlântica, dos Estados Unidos.

E mais, não incorrerei em erro ao dizer que quase toda a ficção de T. de Sousa está entranhada de mar, de barcos e de viagens, enquanto portas de saída e de entrada das ilhas.

E já agora, ainda sobre o mesmo assunto, convido o leitor a acompanhar-me nesta breve incursão nos romances de Teixeira de Sousa.

Vamos, em curto itinerário, percorrer alguns romances deste autor em que os temas acabados de referir emergem de forma muito evidente. Entremos em «Ilhéu de Contenda».  A figura de mulher/fundadora de família e que veio do  mar ou, através do mar, tão bem simbolizada na figura de “Nha Mariquinha” ela que olhava para uma pintura figurativa de um navio, e que volta e meia exclamava: “La barca! Es la barca de mi destino!” numa ambiguidade de mente envelhecida pelo tempo que tanto podia significar o barco que a trouxera de longe, dos confins do Chile e a impediu de voltar à terra natal; como o barco que lhe levou o marido que nunca mais tornou à casa, à ilha. Mais tarde, e já à beira da morte, “Nha Mariquinha”  exclamou: “..Fué la barca... fué la barca... Fué la barca de mi destino!” Afinal, lançando as culpas à causadora principal da sorte e das desditas que ela havia sofrido.

Esta personagem – Nha Mariquinha  oriunda de um país da América do Sul, viera para a ilha do Fogo trazida pelo marido, também ele, “ capitão de baleia, o célebre José Cláudio”, no dizer do narrador.

Interessante é que é neste romance que o autor  também nos conta da tragédia do mar na vida dos ilhéus.

A dada altura na narrativa, há o diálogo entre o protagonista Eusébio da Veiga e o clínico da ilha, Dr. Vicente em que aquele explica ao médico:  “...contava a minha mãe que Nha Mariquinha era uma linda mulher quando nova. Alta, elegante, muito trigueira, de olhos negros, cabeleira farta, também negra como azeviche. Ela enviuvou pouco depois de cá chegar. O marido desapareceu no mar. E tem graça, aliás, não tem graça nenhuma, aconteceu a mesma coisa à Soila, a rapariga que a velha criou. O marido também desapareceu numa viagem para a América. Respondeu o Dr. Vicente: “ Senhor Eusébio, há muita tragédia oculta nesta nossas ilhas. Muita tragédia que o mundo ignora. E o pior é que aceitamos tudo. (...) ..o mar que nos cerca e por vezes nos engole, o isolamento (...)”.

Neste trecho do romance,  o autor  já aprofunda um pouco, a épica marítima, cabo-verdiana que mais não é do que as vicissitudes marítimas na vida dos marinheiros e dos emigrantes ilhéus de outrora.

Continuando o itinerário pelos romances, atemo-nos um pouco no romance de sugestivo título: «Capitão de Mar e Terra». Este é talvez, do conjunto dos romances, aquele que mais explicitamente e pormenorizadamente enfatizou a vida do mar, as viagens, com destaque na figura do protagonista Alfredo Araújo, capitão de mar e terra. Portador de um autêntico sociolecto náutico, uma linguagem específica e sócio-profissional, vai percorrendo a narrativa  em contacto com os diversos grupos de personagens que constituíam a sociedade e as forças vivas de Mindelo de então. Como já mencionei, o título  do livro  é significativo, pois que  nos remete ao seu enredo, em que as referências aos capitães, às marés, às máquinas dos navios, aos cordames e velames, são uma constante ao longo dos seus capítulos. Eis, a seguir, um curto trecho:

[Comandava, Alfredo Araújo em plena viagem] “(...) atenção à proa, atenção à popa, atenção a bombordo, atenção a estibordo – respondeu cada um dos vigilantes separadamente. (...)Atenção ao farol. Atenção ao farol. (...)  – a advertência foi ecoando até à vigia da proa. (...) O mar é  assim mesmo, tem situações difíceis que ocorrem até na pequena cabotagem. Só está preparado para todas as eventualidades, quem aprendeu, praticou e criou calos de riba de água. E a isso tudo, infelizmente se dá pouco valor. (...)   Mantém o rumo.  Mantém o rumo.”

Disputando com «Capitão de Mar e Terra»  em  referências aos capitães, às marés, às máquinas dos barcos, às travessias do Atlântico, aos temporais marítimos, temos em quase igual textura, o romance: «Oh! Mar de túrbidas vagas» em que quase toda a história se passa a bordo do lugre Santa Luzia em viagem de Providence, EUA, para Cabo Verde. Mas também a narrativa traz a vida familiar e as curtas estadas do Capitão Hilário, em terra, junto da família.

É curioso verificar que Teixeira de Sousa dedica o livro ao irmão, Orlando Teixeira de Sousa, evocando possivelmente a cumplicidade fraterna, não só nas viagens que fizeram ainda crianças, com pai capitão João Sousa,  mas também, das muitas conversas havidas a esse propósito, em ambiente doméstico.

Ora bem, ficámos  também a saber que o autor “bebeu” na figura do pai,  a criação do protagonista deste último  romance, publicado em vida, (2005) – «Òh Mar de túrbidas vagas»  embora transfigurada em personagem. Era o “Capitão Hilário” um homem tranquilo, experiente e conhecedor das “manhas” dos ventos e das marés da travessia. Dito deste modo, pode parecer demasiado linear, por se tratar de escrita literária, mas socorro-me das palavras de Teixeira de Sousa sobre esta matéria que lhe serviu de inspiração romanesca. Palavras por ele proferidas na grande entrevista já aqui aludida.

Com efeito, o escritor Teixeira de Sousa terá contado nos seus livros, à maneira de bom romancista, uma parte significativa da história trágico-marítima  dos nossos homens do mar e dos putativos emigrantes à procura do “eldorado”.

Bem gostaria de mais acrescentar, pois que o historial ficcionista muito rico de Teixeira de Sousa, assim o exigia mas o texto já vai longo.

Para terminar, dizer que Henrique Teixeira de Sousa faleceu em Oeiras, Portugal a  3 de Março de 2006, aos 86 anos de idade, vítima de atropelamento.

Com ele, simbolicamente, foi sepultado o último Claridoso.


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