O texto abaixo transcrito é sobre o polémico Acordo Ortográfico e da autoria do Jornalista e estudioso de questões sobre a Língua comum, Nuno Pacheco, a quem peço permissão para publicar no «Coral Vermelho» esta interessante e oportuna abordagem sobre o A. O.
Nuno Pacheco*
Chegado
do Reino Unido, onde esteve em visita oficial, Donald Trump escreveu no Twitter
que se tinha encontrado com o “Prince of Whales”. Ora isto deu a Stephen
Colbert mais uma oportunidade, e já são tantas, de ironizar com o desprezo a
que Trump vota a língua em que fala e escreve. E pôs-se a imitar o canto das
baleias, pois “Prince of Whales” seria príncipe das baleias, e na verdade Trump
esteve com o “Prince of Wales”, o príncipe de Gales. Ora “Whales” e “Wales”
soam da mesma maneira, mas a letrinha que as distingue na escrita faz toda a
diferença. É como “acto” e “ato”, não é verdade?
Voltando
a Trump: não são apenas erros de escrita os que ele repete, sem o mínimo pudor.
Ainda há dias o vimos anunciar mais sanções contra o regime do “ayatollah
Khomeini” (que morreu em 1979), em vez de se referir ao “ayatollah Khamenei”,
actual líder supremo do Irão. Um erro histórico. Mas isso importa?
Importa,
claro. E é aqui que se levantam umas vozes a dizer que tanto faz, que toda a
gente sabe que ele queria dizer Khamenei e se enganou, que Trump sabe escrever “Wales”
mas lhe escorregou o dedo para as baleias, etc. E quem diz Trump diz o senhor
Gervásio, ou o menino Tonecas, ou a senhora dona Miquelina, porque isso de
errar é muito relativo. Pois. Repitam isso a quem vai a conduzir um camião pesado
ou a um cirurgião de bisturi em punho. Errar não é uma escolha, para a
esmagadora maioria das pessoas e das profissões. Diz-se que errar é humano, e é
verdade, mas também é humano procurar evitar o erro. Porque, em certos casos, o
erro paga-se muito caro. Até em práticas sem danos letais, como o futebol ou o
atletismo.
Há
dez anos, num curioso texto intitulado “Abordagem histórico-sociológica do
debate em torno do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado em 2009
por Rita Marquilhas, da Universidade de Lisboa, concluía-se o seguinte: “A
inclusão de secções dentro do texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em
que se prevê flexibilidade na escolha entre a antiga solução portuguesa e a
antiga solução brasileira, que foi no fundo uma demonstração de pragmatismo por
parte dos negociadores do documento, introduz por arrastamento uma modificação
no conceito de erro ortográfico. O erro deixa de ser, naqueles casos particulares,
um desvio em relação à matriz inflexível constituída por regras de sentido
único, para passar a ser, somente, a inobservância de uma escolha. Fica-se mais
perto, portanto, de uma desmistificação das virtudes inerentes às ortografias.
Dada a história de intolerância a que elas têm estado ligadas, isto parece ser
uma boa notícia em termos de renovação de mentalidades.”
As variantes da língua
devem ser fixadas em cada país (não de forma transnacional), como parte de um
património comum
Resumamos,
portanto: as ortografias são intolerantes, por serem inflexíveis; o erro
constitui uma estigmatização desnecessária de quem nele persiste; e transformá-lo
em “inobservância de uma escolha” foi uma saída inteligente para que o erro
deixe de existir e de envergonhar. Isto, para certas criaturas, é um triunfo.
Já não se pode dizer: o senhor errou. Porque o senhor apenas se decidiu pela
“inobservância de uma escolha”. Parabéns, Trump, pelas suas baleias.
Tendo
em conta este raciocínio, que acabaria com a maldita regra que diz “não se
consentem graÆas duplas ou facultativas” (reforma ortográfica de 1945),
dir-se-ia que agora cada um pode escrever como quer. Vejamos o que aconteceria
se certas palavras usadas nos recentes exames de Português e de
Matemática
do 12.º ano, como “aspeto”, “correção”, “objeto”, “correta”, “vetor”, “reta”, “semirreta”,
“diretor”, “bissetriz”, surgissem escritas como aspecto, correcção, objecto,
correcta, vector, recta, semi-recta, director, bissectriz. Vinha logo alguém
dizer que não senhor, isto agora não se escreve assim. Portanto, a ideia de que
a ortografia deixou de ser uma coisa impositiva e mais dada a “inobservâncias”
nas escolhas só vale para palavras admitidas pelo dito “acordo ortográfico”.
Aos que não o seguem, é posto o carimbo (nada discriminatório!) de “fulano escreve
de acordo com a antiga ortografia”. Como se vê, a “desmistificação das virtudes
inerentes às ortografias” não só não existe como é usada em sentido contrário,
para impor grafias idiotas ou inadmissíveis no português europeu.
Não
admira, por isso, que todos os dias surjam aberrações como “impato” por
impacto, “fato” por facto ou “autosustentável” por auto-sustentável (estas
pérolas, na SIC e na CMTV, foram registadas recentemente, com imagem, pelos Tradutores
Contra o Acordo Ortográfico). Por isso, quando nos vêm falar nos dez anos que
as criancinhas já levam de aprendizagem desta intragável caldeirada,
invocando-os como razão para manter o “acordo” como está, só me vem à memória
uma antiga canção de Paulo de Carvalho (10 anos). E a resposta só pode ser, alterando-lhe
ligeiramente o refrão: dez anos é muito tempo, muitos dias, muitas horas a
errar. E cada minuto a mais, além de escusado, pesa. É, pois, mais que tempo de
acabar com isto e repor a racionalidade perdida: a diversidade da língua
portuguesa deve ser reconhecida, fixando as suas riquíssimas variantes em cada país
(e não de forma transnacional), como parte de um património comum. É esse o
acordo do futuro, não a mistela que nos impuseram.
*Jornalista. Escreve
à quinta-feira
Público de
04.Jul.2019
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