quarta-feira, 18 de março de 2020

O texto que se segue era para para ser o da apresentação pública na Cidade da Praia do livro «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial» de Adriano Miranda Lima, prevista para 18 de Março do ano em curso.
Acontece que por motivos desta terrível pandemia que tomou conta do mundo, houve que ser protelada.  Adiada para, como disse o autor da obra: “...para quando o “Gongon” do maldito vírus deixar de representar uma ameaça à nossa saúde”.
Sobre o autor-Natural da ilha de São Vicente, Coronel reformado e a residir em Tomar- colaborador deste blogue, gostaria de vos dizer que para além da excelência da sua escrita, estamos perante alguém que investiga com seriedade e com uma grande honestidade intelectual. Digo isso sem hesitar, pois que  com provas dadas nos inúmeros artigos, ensaios e livros que ele vem publicando os quais, reitero, atestam as qualidades da escrita cuidada, concisa e assertiva de Adriano Miranda Lima.


Apresentação do Livro «Forças Expedicionárias a Cabo Verde
na II Guerra Mundial» de Adriano Miranda Lima
A obra que o leitor tem ou vai ter certamente em mãos – «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial» de autoria de Adriano Miranda Lima - é, na minha opinião, uma das mais interessantes narrativas sobre a historiografia da instalação e da vivência nas ilhas de Barlavento de Cabo Verde, das Forças militares expedicionárias portuguesas ao Arquipélago nos idos anos 40 do século XX.  O contingente militar foi distribuído pelas ilhas de São Vicente, Santo Antão e Sal. O livro dá conta com pormenores bem elaborados e seriamente fundamentados, dessa grande movimentação de homens em solo ilhéu e com uma missão. A missão de defender o Arquipélago de eventuais ataques e/ou invasão dos beligerantes na II Guerra Mundial.
 Ao contrário do que o leitor possa pensar, não se trata de uma descrição militar fria, antes pelo contrário, objectiva sim e colorida no melhor sentido do vocábulo. Cheia de cor local, de calor humano, de peripécias pitorescas a propósito de um ou outro acontecimento à volta do foco principal, numa retrospectiva histórica, cativante para os interessados em analisar a nossa História sob vários ângulos.
 Ora bem, as ilhas de São Vicente, Santo Antão e Sal foram os quartéis e os locais onde se instalaram repartidamente, mas de forma desigual em números, os 5.820 homens que cá chegaram com a importante missão de defesa das ilhas atlânticas, da eventual cobiça dos contendores da  Grande Guerra Mundial e isto ao mesmo tempo que  tropas eram enviadas  para os Arquipélagos dos Açores e da Madeira. Aliás, o Despacho do Ministério da Guerra, acentuava a urgência e a necessidade de defesa das ilhas atlânticas portuguesas, até como  garantia da neutralidade de Portugal face à contenda mundial.
Convém recordar que a ilha de São Vicente acordou de súbito numa manhã de Maio de 1941 com a chegada  de mais de 5 mil jovens homens, o que foi um acréscimo de cerca de 39% em termos demográficos para uma ilha que contava à época com 15 mil almas.
Imagine-se a  brusca reviravolta na vida da então pequena urbe, Mindelo, com a instalação,  a circulação e a movimentação desses jovens militares pela cidade!
 Daí que o foco da atenção narrativa do autor esteja mais fortemente virado para aquilo que sucedeu em São Vicente, onde coube o maior número (mais de 3.000) do contingente dos militares vindo da então Metrópole – naturalmente mais do que nas restantes duas (Santo Antão e Sal).
 Mas há ainda a acrescentar, outro factor motivador deste livro. O autor encarrega-se de nos explicar o facto, entre outros dois por ele mencionados que o levaram a organizar a presente obra. Ei-lo e da seguinte forma, passo a citar: “...Porém , outra circunstância particular e não menos relevante é o facto de eu ter nascido na ilha – São Vicente – onde as Forças Expedicionárias mais se projectaram, irradiando o seu mantra pela cidade do Mindelo e pela ilha como um todo..." 
 O leitor é convidado pelo autor, ao longo dos capítulos e das páginas do livro, a entrar, a partilhar e a vivenciar a atmosfera física e social de Mindelo daquela época. Tempo e vivências que curiosamente se prolongaram na memória dos mindelenses até  muito mais tarde.
A marca das influências da tropa expedicionária em São Vicente, estendeu-se ao longo do tempo e ficou impregnada de forma indelével no imaginário dos mindelenses.  Em certos usos e determinados costumes. Na  memória literária, através de um deles, à data dos acontecimentos descritos no livro, o então Furriel Manuel Ferreira, e mais tarde para nós, nome destacado na Historiografia literária cabo-verdiana que se entrosou de forma profunda na sociedade mindelense. Casou com a cabo-verdiana Orlanda Amarílis, também ela escritora. Adriano Miranda Lima, reconhecendo a importância desse vulto da cultura cabo-verdiana, dedicou-lhe um capítulo particular, demonstrativo e ilustrativo da forma como Manuel Ferreira pôde conhecer, percepcionar e entender como se de um natural fosse, a História, a Literatura e a cultura cabo-verdianas.
Do mesmo modo, o autor  destaca também a insigne figura do médico militar Dr. Baptista de Sousa, um cirurgião competente, que realizou autênticos “milagres” não só para os militares  que aí adoeceram, mas também para a população civil que a ele acorria. Lembremo-nos de que a penicilina só chegaria a São Vicente e a Cabo Verde pela primeira vez em 1945. O livro dá conta disso. Mas atenção que o foco desta narrativa, «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial» abrange fundamentalmente o período compreendido entre 1941 e 1944, ano do fim da missão militar.
Continuando com o Dr. Baptista de Sousa, convém salientar que este médico competente e honesto ousou, no estrito desempenho da sua profissão, de forma corajosa, denunciar a situação de fome que assolava as ilhas. E fê-lo de tal modo reiterado que foi vítima dessa sua coragem, pois no tempo da Ditadura era proibido dizer “que se morria de fome nas terras do Império” (cito o autor).
É que o Dr. Baptista de Sousa escrevia nas certidões de óbito, e continuou a escrever até ao fim da sua comissão de serviço em Mindelo - mesmo depois de ter sido repreendido pelas autoridades- de forma clara e legível, a expressão “fome crónica” como causa de morte do paciente. Estou a seguir o autor.
Daí que, quando partiu, que deixou a ilha, no dia da sua partida para Lisboa não causar espanto a emocionante e a espontânea despedida que o povo de São Vicente lhe prestou, acudindo em multidão ao cais de embarque, acontecimento que o livro descreve com algum pormenor.  Interessante é que nessa despedida não se incorporaram apenas populares, mas também figuras gradas da sociedade mindelense da época. Exemplificando, o Dr. Adriano Duarte Silva - deputado, cidadão benemérito, e grande defensor das causas das ilhas -  o  Juiz da Comarca, entre outras entidades de relevo de Mindelo. Aproveito para dizer que o livro está bem documentado em fotografias da época sobre este e  outros acontecimentos.
Reza a crónica, que não mais se terá repetido na urbe mindelense tão grandiosa manifestação de gratidão. Hoje, Dr. Baptista de Sousa é patrono do Hospital de Mindelo.
Uma vez regressado a Lisboa, dada a sua firmeza na denúncia da fome, enfrentando e contrariando as autoridades, foi prejudicado, penalizado nas promoções e nas colocações de forma ostensiva.
Outras duas figuras que mereceram destaque no livro foram, a primeira a do Capitão Oliveira, que é descrito como um militar de alto recorte humanitário. Ele terá instituído como uso e costume militar  e pela primeira vez em Cabo Verde, a distribuição das «sobras do rancho» ordenando à despensa militar, da Companhia que ele comandava que aumentasse os géneros alimentícios na cozinha e que as sobras fossem distribuídas aos muitos miúdos e adultos famintos que se abeiravam dos muros do Quartel. Terá com isso minorado ou mesmo salvo da fome mortal muita gente. Quando lerem o capítulo hão-de de perceber como o gesto do capitão Oliveira foi tocante e humanitário.
O interessante e de acordo com o livro, o Capitão Oliveira é que sugeriu e pediu aos comandantes dos outros aquartelamentos em São Vicente que fizessem o mesmo.
 Não esquecer que a chegada das Forças Expedicionárias a Cabo Verde coincidiu com uma época terrível, crítica, de seca e de fome e que a Mindelo acorriam famílias e pessoas famélicas das ilhas vizinhas de Santo Antão e de São Nicolau, duas ilhas, entre as que mais sofreram com a Fome. Logo, o acto do Capitão Oliveira é digno de louvor. Tudo isso vem descrito e narrado no livro.
A  segunda figura foi a do Cabo Francisco Lopes, que em Mindelo passou a ser conhecido como Chico da concertina . Este militar era presença assídua em festas, bailes e piqueniques  a convite até  dos músicos locais.
Há uma passagem no livro que não me furto a mencionar, pois que escrito na primeira pessoa evoca a integração nas noites mindelenses da época de uma forma viva. Encontra-se na  página 213 do livro. Crónica quase oral, viva, sugestiva e que diz muito dos convívios musicais e outros da época em Mindelo.
De facto, a penetração e o entrosamento das forças expedicionárias na população de São Vicente foi profunda e deixou marcas indeléveis como já aqui referi. As festas, os convívios, os piqueniques fora de portas, para os quais os militares eram convidados, os namoricos e os casamentos de sargentos e de oficiais com as moças da cidade. As ligações ocasionais ou prolongadas dos praças e soldados, com as raparigas da cidade e/ou dos arredores e de que resultaram filhos, uns reconhecidos, outros não, constituem as diversas formas e interacções sociais entre o corpo expedicionário estacionado na ilha e a população mindelense.
 Mas também aconteciam com pompa e circunstância os grandes desfiles e/ou paradas militares que deslumbravam a população que a eles assistia.
Tudo isso é descrito e narrado no livro com cuidado e com pormenor.
 Na minha opinião de leitora, é exactamente a história do impacto dos militares na sociedade local que ocupou lugar de eleição neste livro.
De facto, Adriano Miranda Lima retrata e ilustra factos e figuras com tal realismo e proximidade que o leitor se sentirá quase participante.
Por um lado, a boa convivência, e por outro lado, a ajuda material que aqueles militares prestaram à população de São Vicente, num período muito crítico de seca e de fome. São esses factos também que ocuparam atentamente o autor na sua narração.
Claro, que de caminho, o livro dá conta também das escaramuças e das querelas havidas entre os rapazes locais e os militares metropolitanos – assim se dizia à época -  regra geral, por causa das moças que estes últimos conquistavam. Não se esqueçam que estamos a falar de forasteiros jovens, muito jovens, na faixa etária dos vinte e poucos anos, a maior parte deles.
Abro aqui um pequeno parêntesis para uma curiosidade, para dizer, que não terá sido por acaso que o mindelense é quem mais adquiriu (em termos relativos e proporcionais) –minha impressão, colhida em informações em que não houve rigor estatístico, vale dizer -  que adquiriu, repito, sem grandes dificuldades a nacionalidade portuguesa, na grande procura que houve no pós-independência, uma vez que ainda haveria um bisavô, um avô ou, mesmo um pai português militar da década de 40, que remonta à estada da tropa expedicionária em São Vicente.
 Fecho a curiosidade e o parentêsis e volto ao livro; para finalizar e reiterar que a sua leitura se torna igualmente aprazível, quando lemos as cartas, os testemunhos e os depoimentos  nele contidos  que são autênticas memórias escritas na primeira pessoa pelos protagonistas, sobre a passagem por Cabo Verde em missão militar. 
Memórias guardadas e conservadas pelos descendentes a que o autor teve acesso. Factos e histórias que tanto impacto tiveram na vida daquela geração  cabo-verdiana e portuguesa que os vivenciou.
Mesmo, mesmo a terminar, dizer que Mindelo conservou em bom estado alguns aquartelamentos, muros e vedações defensivos, à época construídos, e até mesmo o talhão militar no Cemitério de Mindelo, onde repousam restos mortais dos 68 jovens militares  portugueses que aí sucumbiram por doença. O livro traz o obituário.
 Actualmente existe na cidade do Mindelo, uma espécie de roteiro, ou de visita guiada - se não estou em erro - com passagem pelos marcos deixados pelas Força Expedicionárias militares dos anos 40 do século XX.
Meus senhores e minhas senhores, caros amigos, vale a pena ler o livro «Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial»! Garanto-vos que o prazer da leitura, sempre procurado pelo leitor, estará muito presente ao longo dos capítulos da obra.
Muito obrigada.

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