segunda-feira, 19 de abril de 2021

 

O texto que se segue é uma interessante e abrangente análise sobre o compêndio de História e Geografia de Cabo Verde destinado ao 6º Ano de escolaridade.

Trata-se de uma  edição do Ministério da Educação, 2018. Autores: Carlos Emanuel Sousa Santos, Daniel de Brito, Francisca Pires e Marina Soares.

 José Tomaz Wahnon Carvalho Veiga, autor dos comentários, fez um aturado e crítico levantamento de erros grosseiros, de omissões e de louvações inadequadas, encontradas no dito compêndio - note-se: trata-se de um manual didáctico de História e de Geografia para crianças de 11/12 anos.

 

COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE CABO VERDE, 6º ANO

Por José Tomaz Veiga

É impressionante a forma como o MPD se rendeu ideologicamente ao PAIGC. Primeiro, na década de noventa, apesar de estar no poder, permitiu que a ideologia paigcvista ficasse intacta, não lhe deu luta, pelo contrário, permitiu que essa mesma ideologia permeasse todo o ensino nos níveis básico e secundário. O exemplo mais paradigmático é a forma como nos livros de ciências, sim ciências, se fazia a apologia do regime ditatorial, sim ditatorial, que vingou em Cabo Verde nos 15 primeiros anos de Independência. Encontrou-se uma expressão engraçada para caracterizar esses anos de repressão e brutalidade “Construção do Estado”. Ao mesmo tempo, nesses manuais, os anos 90 desapareceram, não existiram, eram um parêntesis na maravilhosa história da ditadura paicevista, um mero acidente na marcha gloriosa do paigc/cv, que retomou o curso normal despois de 2001.

Deixámos que isso acontecesse, não tentámos minimamente desmontar as falácias e a mentira da “construção do Estado”. Entretanto, o Paigv aproveitou a deixa e investiu nas escolas, pregando a sua verdade, o angelismo dos combatentes que passaram todos a ser anjos imaculados, grandes guerreiros, mesmo os que nunca viram uma pistola. Passaram todos a ser grandes heróis e exemplos para os jovens. Todos passaram a ser grandes e imaculados heróis.

O segundo acto está a acontecer agora, sim agora. É só ver o culto dos heróis nacionais, os nossos dirigentes submissos perante os principais responsáveis da ditadura, sim DITADURA do partido único, a atribuição de nomes de avenidas e aeroportos ao primeiro presidente da ditadura do partido único (desconfio que a Guiné Conacry não terá nenhuma rua com o nome de Sekou Touré….), as consultas à Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria, um reduto dos paigecistas mais ferrenhos, a ponto de transformar essa associação paicevista em conselheira sobre assuntos regionais africanos…….entre outras manifestações que me parecem de subserviência e de lavagem de imagem.

O nosso sistema de ensino está a ser alvo directo da investida paicevista. E não é por acaso. Quanto mais cedo se torce o pepino…. Pois, quanto mais cedo se inculcam na cabeça das crianças em idade escolar os mitos paigcvistas, maior é a garantia da perenidade da sua superioridade, sim superioridade e hegemonia ideológica neste país, agora e para sempre…

Vejamos o livro do 6º ano de História e Geografia de Cabo Verde. Começa na capa, onde aparece uma imagem de Amílcar Cabral e as bandeiras antiga e actual de Cabo Verde. Onde é que isso já se viu? Um Manual oficial em que se apresentam duas bandeiras? Chamo a isso SUBMISSÃO. Amílcar Cabral na capa do manual de história e geografia de Cabo Verde? Porquê?  A história de Cabo Verde é várias vezes centenária, não começou com o PAIGC nem com Amílcar Cabral. Ao propor essa capa, estamos a aceitar essa tese absurda de que AC é o pai da nacionalidade. Podem dizer, se quiserem, que AC é o pai da Independência, mas a nossa nacionalidade cabo-verdiana foi construída ao longo de centenas de anos e não esperou por AC e o Paigc para se constituir e manifestar.

A capa do manual dá o tom ao conteúdo. A história de Cabo Verde começa …. Com a criação do PAIGC e a luta de libertação nacional (ou de submissão nacional, talvez), na página 34. Nas páginas anteriores, fala-se de literatura, música, cantigas, festas etc. De história de Cabo Verde, NADA. Podem dizer que no manual do ano anterior esta parte da nossa história foi tratada. Pode ser. Mas ao menos uma síntese, um enquadramento. A descolonização é apresentada praticamente como o ponto de partida da nossa história. Curiosamente o manual omite qualquer referência à inexistência do Paigc como organização em Cabo Verde antes do 25 de Abril. Algumas pessoas diziam-se do Paigc, mas sem qualquer implantação ou impacto em Cabo Verde. A única referência feita é a de que a luta armada não teve lugar em Cabo Verde devido ao aspecto geográfico de Cabo Verde (página 39). Na verdade, o Paigv até pensou enviar uma equipa para lançar a luta de guerrilha em Cabo verde, na esteira das teorias do Foco de Che Guevara, mas teve o bom senso de pôr de lado essa iniciativa. A verdade é que o Paigc não tinha peso nenhum em Cabo Verde aquando o 25 de Abril, mas isso não é dito, para poder manter a auréola dos combatentes que libertaram a Guiné e Cabo Verde.

Na página 40 procura-se dar ainda maior relevo à luta na Guiné dizendo, no capítulo Em Síntese que ..”o Paigc desencadeou a luta armada de libertação, travada durante duas décadas…. “Duas décadas, vinte anos! É só fazer as contas. Que nome se dá a isso? Desinformação, falsidade, não vejo outro.

De seguida são dedicadas 13 páginas ao PAIGC e à primeira República, seguidas de 5 páginas sobre a segunda Repúblicas. O tratamento é totalmente desequilibrado, totalmente enfeudado. E a forma como a segunda República é introduzida é um absurdo completo e sobretudo uma falsidade impressionante. As teses revisionistas do Paicv são retomadas ipsis verbis.

Pergunta-se, qual é a lógica disso? Porque razão se acha necessário descrever com todo o detalhe os símbolos da primeira república, mas não se acha minimamente necessário dizer aos jovens deste país qual foi a verdadeira natureza deste regime! Nem uma palavra sobre a ditadura, a repressão, os abusos, e a tirania do partido único. NADA! E no entanto, o manual estende-se alegremente sobre os grandes heróis que nos deram a liberdade (amordaçados, torturados, vigiados, impossibilitados de expressar opiniões livremente…etc). Nem uma palavra sobre as execuções sumárias que o grande Paigc fez na Guiné logo que tomou o poder, sob responsabilidade de Aristides Pereira, Luis Cabral e seus companheiros de liberdade. Nem as execuções sumárias de centenas de guineenses aquando do assassinato de AC. Curiosamente, quando se fala do assassinato de AC (página 36) , nem uma palavra sobre o facto dos conspiradores serem do …Paigc, a força, luz e guia do nosso povo, etc.

De facto, este manual é um desastre completo. Falsifica a história de Cabo Verde, como se a nossa história tivesse começado em 1956 com a criação do Paigc (esta data de criação do Paigc é contestada de forma fundamentada por Daniel Santos no seu livro, até aí os autores estão cegos pela sua preferência ideológica).  É como se os 15 anos de ditadura e totalitarismo paigcvista não tivessem existido em Cabo Verde. E estamos a falar de manuais produzidos pelo actual Governo de Cabo Verde. Shame on us! Falsifica a nossa história recente por omissão. Nem uma palavra sobre a criação do partido que derrubou, sim derrubou o Paicv; atribui a abertura política à boa vontade do paicv, omitindo completamente a força da movimentação popular que esteve realmente na origem deste processo, entre outras falsificações, distorções e omissões.

Vejamos alguns exemplos das distorções, falsificações e omissões que o Manual apresenta.

Na página 35, Fundação do Paigc. Há dúvidas legítimas sobre a data referida.

Página 36 – Definição de luta armada. Quantas lutas armadas foram feitas para outros fins que não a conquista da independência?

Página 36 – Assassinato de AC. Omissão dos autores do assassinato que eram membros do Paigc. Nem uma palavra sobre a repressão e o fuzilamento de centenas de guineenses que eram do Paigc. É claro que dizer isso iria esmorecer um pouco a coroa de glória do Paigc, por isso, prefere-se mentir por omissão a dizer a verdade.

 Página 37 – diz-se que a “independência de Cabo Verde foi o resultado de um processo longo, marcado pela luta armada, liderada por Amílcar Cabral e pela Revolução dos cravos…” . Para a mente de uma criança de 11 anos, a ideia que fica é que houve luta armada em Cabo Verde, o que é, evidentemente, falso. Aliás, o Paigc praticamente não existia em Cabo Verde como organização minimamente estruturada, mas isso não se pode dizer porque faz mossa ao prestígio dos combatentes.

Nas páginas 42 e 43 discorre-se sobre a LOPE, passa-se sobre brasas sobre as razões que levaram à não aprovação da Constituição em 3 meses, como previsto, aproveita-se para definir de forma errada a República (se fosse a definição indicada na página 42, então Cabo Verde não era uma República porque em 1975 não elegeu livremente e por voto secreto nenhum chefe de Estado), corre ainda mais depressa sobre o famoso artigo 4º da Constituição de 1980, e nada diz sobre a natureza do regime. Não diz que foi uma ditadura do partido único e dos seus dirigentes, não diz que não havia liberdade de imprensa, nem liberdade de criar partidos, nem liberdade de exprimir opiniões livremente, não diz que existia uma polícia política que vigiava os cidadãos, não diz que os tribunais eram dominados por juízes camaradas e que os juízes eram membros do paigc/cv e não havia independência da justiça, etc. A ideia que um jovem de 11 anos fica ao ler o manual é que estava tudo muito bem, a primeira república era uma maravilha.

Na página seguinte fala-se da União Guiné-Cabo Verde de uma forma totalmente acrítica. Nem uma única referência às críticas a este conceito, nem uma palavra sobre as dúvidas dos próprios dirigentes do Paigc (Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva, e muitos outros). A unidade Guiné Cabo Verde nunca teve qualquer suporte histórico, sanguíneo, geográfico ou demográfico. Foi um expediente político, genial, é certo, para associar Cabo Verde à luta na Guiné e garantir a presença de um punhado de quadros cabo-verdianos indispensáveis ao prosseguimento da luta armada. Se as razões apresentadas fossem de facto reais, como se explica que em 5 anos tudo tenha ido por água abaixo e com tanta facilidade? Nem uma palavra sobre as enormes tensões entre guineenses e cabo-verdianos dentro do Paigc, que culminaram com o assassinato de Cabral e que estão na origem do golpe de Estado de Nino. A forma como se fala do golpe na mesma página é como se o golpe tivesse surgido do nada. Nada se diz sobre as críticas dos guineenses ao facto de a constituição da GB prever pena de morte mas a de CV não, nem à ocupação dos principais lugares de chefia por cabo-verdianos, nem ao facto de Aristides Pereira o chefe máximo do Paigc residir na Praia como Presidente de Cabo Verde, mas supervisionar do alto a Guiné como chefe do Paigc, e do facto de o presidente da Guiné ser um Cabo-verdiano (Luis Cabral). Nada, apenas que houve golpe. A criança de 11 anos fica esclarecida.

Na página seguinte colocam-se as fotos dos três principais responsáveis do Estado da primeira República com grande destaque. Mas já quando se trata dos principais responsáveis iniciais da segunda república, as fotos não têm a mesma projecção e o Presidente da Assembleia Nacional… desaparece, não existe, não tem cara.

Toda uma página (46) é dedicada ao hino antigo. Metade da página é dedicada à explicação da bandeira.

Em contraste, apenas dois parágrafos são dedicados a explicar o significado da bandeira nacional actual (a bandeira do Estado de Cabo Verde).

Página 47 e seguintes sobre a segunda república. Ao ler esta parte não se encontra nenhuma referência ao MpD como o movimento que conduziu o processo de contestação do qual resultaram as primeiras eleições livres. Ninguém fica a conhecer os principais dirigentes do MpD, nem a importância da movimentação popular que obrigou o Paicv a ceder. Fala-se em atitude reformista do Paicv, mas isso é pura inverdade. Em Fevereiro de 1990 o Paicv, fazendo a leitura do que estava para vir e da pressão interna já existente na altura, declarou-se disponível para algumas reformas que NÃO ENVOLVIAM A ACEITAÇÃO DE PARTIDOS POLÍTICOS, mas apenas associações cívicas ou como se quisessem chamar, nem previa eleições pluripartidárias nos cinco anos seguintes. Foi a pressão do MpD e a movimentação popular que este liderou que obrigou o Paicv a aceitar a realização de eleições na data em que ocorreram. O aluno de 11 anos ficará sem saber que as coisas se passaram desta maneira, porque a cortina de fumo que se lança é demasiado espessa.

O que se passa com este manual não é mais do que a ponta do iceberg, como aliás recentemente denunciou Armindo Ferreira.

E é o Governo do MpD que produz esta magnífica peça de desinformação de crianças de 11 e 12 anos.

Estamos de parabéns.

 

0 comentários:

Enviar um comentário