«Ao Correr da Memória – pequenas Histórias da Minha Vida» Autor: Diogo Freitas do Amaral

domingo, 13 de fevereiro de 2022



- Uma Leitura -  

O autor, Diogo Freitas do Amaral, dispensa apresentação. Possuidor de um vasto curriculum académico e político; regista neste livro, as suas memórias. Não só as de grandes acontecimentos políticos, mas também, memórias sociais, pessoais e afectivas.

Mas antes de entrar no livro propriamente dito, vamos conhecer um pouco a vida do seu autor. Uma breve biografia:

Diogo Freitas do Amaral nasceu em 1941 na Póvoa de Varzim e faleceu em Lisboa em 2019. Formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aí se doutorou em 1967 e foi Professor catedrático da mesma Faculdade. Reputado especialista em Direito Público, com vasta obra escrita nesse domínio. Foi co fundador da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e seu primeiro Director.

Distinguiu-se igualmente como Político, foi um dos fundadores do Partido CDS (Centro Democrático Cristão), depois do 25 de Abril de 1974. Várias vezes membro de Governo, em sucessivos governos de aliança democrata.

Foi Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, cargo desempenhado entre 1995 e 1996.

Das suas ideias políticas, destaca-se aquela que era para Freitas do Amaral, fundamental: ele defendia para Portugal um modelo político de democracia cristã de matriz europeia.

Escritor, dramaturgo, autor da famosa peça: «O Magnífico Reitor», entre outras peças teatrais.

Igualmente temos em Freitas do Amaral, um investigador probo da História portuguesa. Sobre isso, ele legou-nos um vasto acervo escrito que abarca também figuras e personalidades relevantes que marcaram a História do seu país. A par disso, escreveu dezenas de livros sobre Direito Administrativo.

Uma nota pessoal - Tive o prazer de o conhecer, creio eu que da última vez que ele esteve em Cabo Verde, mais concretamente em 2013, em Mindelo, na ilha de São Vicente, quando ele foi o padrinho do antigo e saudoso Presidente da República, António Mascarenhas Monteiro, na cerimónia de Doutor «Honoris Causa» deste último, realizada pela Universidade de Mindelo.

Falámos de Literatura… sobre os Contos de Eça de Queiroz e impressionada fiquei com a reprodução memorizada que ele fez das palavras, dos diálogos de alguns Contos, com destaque para o conto: «José Matias».

E à colação, trouxemos para a nossa conversa, a velha questão de se desenvolver a memória nos alunos, desde os inícios da escolaridade, das vantagens disso e o grande adjuvante que é, a boa memória, para a nossa inteligência. Falámos disso como colegas de profissão, professores, cada um no seu nível, e ambos, defensores de uma boa exercitação da memória em tempo de escolarização.

O interessante também, é que percebi nele, uma verdadeira admiração de leitor, pelo filho, o escritor Domingos Amaral e a este propósito, comentámos o belo livro: «Enquanto Salazar Dormia».

Freitas do Amaral, uma simpatia em pessoa, portador de uma cultura elevada e levada sem ostentação, à naturalidade da sua conversação. São estas as impressões que guardei e guardo do Professor Freitas do Amaral. Fecho a nota pessoal.

Posta esta já longa introdução, mas que aquém ficou da vasta biografia de Freitas do Amaral, passemos então ao livro «Ao Correr da Memória».

O livro como referi no início deste escrito, é composto de várias pequenas (uma página, meia-página) crónicas, dispostas cronologicamente. Assim temos o capítulo da Infância e da Juventude em que o autor, através de quadros/crónicas, retrata cenas dessa fase de vida marcante. A começar em casa paterna com o seu baptismo e o ambiente familiar, passando pelo Liceu, e pela Faculdade de Direito, em socialização com colegas e amigos, retratando também aspectos peculiares dos professores que foi tendo ao longo da sua vida escolar.

A seguir o leitor é convidado a acompanhar, a vida adulta, profissional e social do autor, curiosamente não apenas, através de textos pessoalizados, mas sobretudo, através de eventos e de personalidades destacadas da vida política do Estado Novo e igualmente de famosos do depois do 25 de Abril de 1974, altura em que o próprio autor é membro fundador e Líder do Partido, o CDS. Freitas do Amaral foi Vice -Primeiro Ministro no Governo de coligação chefiado por Sá Carneiro. Participou também no governo socialista, chefiado por José Sócrates, como Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Assim sendo, o livro, «Ao Correr da Memória» também prolonga a memória (pessoal) do autor, entrosando-a num fundo histórico que ao longo dos textos perspectiva para o leitor e o situa ora durante o Estado Novo, ora após a revolução de Abril de 1974.

Das peripécias, dos acontecimentos e das viagens acontecidas ao longo das então quase quatro décadas após a revolução dos cravos, presenciadas e participadas pelo autor de «Ao Correr da Memória – Pequenas Histórias da Minha Vida» Bertrand Editora, 2003, o leitor encontrará plasmadas em meia página e numa página, com um poder de síntese extraordinário, descrições e narrações, vivas e vividas de uma forma evolvente pelo autor que nisso implica também o leitor.

Não resisto a transcrever aqui, para exemplificar, o resultado da viagem feita a Cabo Verde em 1980 - na comitiva do então Presidente da República Portuguesa, Ramalho Eanes - ainda em regime de Partido Único (pág. 58-59).

Pois bem o texto diz o seguinte:

A República de Cabo Verde, em 1980, era um regime político marxista, de partido único, governado em ditadura. Mas era uma ditadura “soft,” sem presos políticos, e com traços curiosos.

Quando visitei o país nesse ano, acompanhando o Presidente Ramalho Eanes, ouvi com a maior surpresa declarações como estas: - O Ministro dos Negócios Estrangeiros apresentou-me um pedido oficial de ajuda financeira de Portugal para restaurar a catedral da Cidade Velha, pois tinham grande interesse nela, porque aí tinha feito sermão o Padre António Vieira, a caminho do Brasil…;

- O Primeiro-Ministro informou-me que, no recente Congresso do PAIGC, tinha sido decidido substituir a qualificação de Cabo Verde como «Estado Revolucionário» pela de «Estado de Direito». «Quais as consequências práticas?» perguntei: «A principal, respondeu, «consiste no seguinte: dos actos administrativos dos Ministros que lesem ilegalmente direitos de particulares só se podia recorrer para o Conselho de Ministros; agora, o recurso é para o Supremo Tribunal de Justiça, que pode anulá-los»;

- O Ministro da Justiça, com quem pedi para me avistar a sós, contou-me que, aquando da transformação acabada de referir, propôs que o recurso contencioso dos actos ministeriais fosse interposto para um Supremo Tribunal Administrativo, como em Portugal. A proposta não foi aceite porque Cabo Verde não tinha dinheiro para sustentar dois Supremos Tribunais, duplicando instalações, presidentes, número de juízes, etc. E comentou: «mas ficámos com muitas dúvidas: porque estávamos a contrariar frontalmente os ensinamentos do Prof. Marcello Caetano – que para nós são uma bíblia!»

Fiquei, de facto, abismado: o regime cabo-verdiano não tinha quase nada de marxista-leninista; era sobretudo um produto luso-tropical da civilização dos brandos costumes.” Fim de Transcrição.

É de pequenos textos como este, que se preenchem os nove capítulos que constituem o livro.

De entre eles, distingo também o capítulo VI, «Alguns Grandes do Mundo» no qual o autor traçou o perfil político, social e humano de grandes ou de famosas figuras europeias do século XX. De Churchill a Helmut Kohl, passando por Adolfo Suárez, indo a Mário Soares e a Francisco Sá Carneiro; o autor de «Ao Correr da Memória» faz um precioso retrato de cada um deles, e naquilo que mais os distinguiu na História recente da Europa, na dos seus respectivos países e na da construção da União Europeia.

Termino esta leitura, dizendo que não é fácil sintetizar um livro como este, que embora pequeno em dimensão, é muito rico, pela variedade de temas nele contido. E mais, é de boa leitura, pois o leitor apercebe-se que a obra foi elaborada, através de uma pena culta e de uma reflexão profunda do seu autor.

 

 

 

 

 

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