Por
Adriano
Miranda Lima
Há alguns anos, a palavra
narrativa começou a invadir o espaço público, designadamente no meio político,
no jornalismo e no comentário televisivo. Foi como se ela de repente tivesse
sido ungida pela graça da ubiquidade ao substituir-se a palavras com mais
identidade semântica para as situações em que passou a ser utilizada.
Consultando o Dicionário Online Priberam de Português, encontrei como
significado do vocábulo narrativa: “acto de narrar”. E como sinónimos:
“relatos, informações, explicações, apresentações, exposições, histórias,
descrições”, etc. Acontece que esta palavra começou a pontificar com o
significado de “versão dos factos”, e tanto quanto me lembro, com o
ex-primeiro-ministro José Sócrates. Foi em 2013, quando, depois de ter saído do
governo, o político deu a primeira entrevista na televisão (RTP 1) e explicou
que o que fez cair o seu governo nada tinha a ver com certas “narrativas” que
se construíram. Assim, pode dizer-se que há cerca de 12 anos este vocábulo como
que foi tomado de empréstimo ao mundo literário, que é onde, na verdade,
encontra a justificação mais plausível para a sua existência. Na literatura, a
narrativa é precisamente o relato de acontecimentos cujo espaço de
materialização é o romance, a novela, a fábula e o conto. A narrativa compõe-se
dos seguintes elementos: enredo, narrador, personagens, tempo e espaço, que são
essenciais para que se concretize uma narração. Fica assim esclarecido o
contexto preciso que mais justifica o uso desta palavra.
Outra que entrou com
inusitada frequência no discurso político e jornalístico é a palavra
“percepção”, pelo menos desde há uns 8 anos. Indo à Wikipédia, encontrei que
“percepção é a capacidade para captar, processar e entender a informação que os
nossos sentidos recebem. É o processo cognitivo que permite interpretar o
ambiente com os estímulos que recebemos através dos órgãos sensoriais.” Não
podendo considerar-se que o uso desta palavra esteja a ser completamente
desconectado do seu significado, a sua utilização comum tem sido, contudo, na
acepção mais simplificada em que é pura expressão da subjectividade. Quando,
por exemplo, se diz que o Chega tem procurado explorar politicamente a
percepção por si forjada de que a criminalidade violenta está a crescer de uma
forma sem precedentes em Portugal, quer isto significar que esse partido
distorce deliberadamente a realidade objectiva, isto é, aquela que resulta de
uma análise rigorosa e imparcial baseada em informação estatística, sem
interferência de motivações espúrias como é o partidarismo ou o facciosismo.
Concluindo, o uso da palavra percepção tem sido mais na sua estrita relação com
a subjectividade, não se justificando aqui uma abordagem teórica do seu
significado no campo da filosofia e da neurociência.
Bem, nenhum mal trará ao
mundo o uso excessivo ou abusivo das palavras “narrativa” e “percepção”,
excepto quando se serve da sua sonoridade retórica para mascarar a
superficialidade ou o vazio do discurso político, sem preocupação de contribuir
para o enriquecimento da política mediante um debate profundo, inovador e
criativo. É o que acontece quando o mesmo facto ou acontecimento se torna
objecto das mais diferentes interpretações subjectivas (percepções) e das mais
desencontradas versões explicativas (narrativas).
Particularmente, no que
concerne à palavra narrativa, o seu uso tende a superlotar o espaço onde a
ideologia foi postergada e, sobretudo, onde e quando a rarefacção de ideias põe
em causa a política enquanto actividade nobre e realizadora da felicidade humana,
conforme a concebeu Aristóteles há 350 anos a.C. Tal degradação pode ter várias
explicações, mas é sobretudo consequência de dois fenómenos que se conjugam: a
erosão das ideologias e a formatação da realidade pela comunicação social em
função de critérios editoriais muitas vezes não alinhados com o interesse
público.
Desta forma, em vez de
laboratórios para produção e ensaio de ideias, valores e princípios, as
ideologias hoje em dia parecem exauridas de vitalidade, quase limitando-se a
uma repetição sistemática de dogmas e estereótipos, o que é sintoma de uma
estagnação da sua capacidade criativa. Há que tomar consciência do quanto isso
prejudica a política e abre caminho a forças que atentam contra o que ela tem
de mais valorativo, mestres que são na arte da demagogia e manipulação dos
incautos. Evidências gritantes deste risco surgem, infelizmente, no seio de
membros da União Europeia e, neste momento, nos Estados Unidos da América, que,
sob a administração de Donald Trump, dificilmente serão o grande pilar do mundo
livre que sempre foram.
Nota: este texto foi
escrito conforme a anterior ortografia.
Tomar, 7 de Abril de 2025
1 comentários:
Concordo com o autor do texto.
De facto a conotação actual do vocábulo "narrativa," ganhou uma conotação, diria que irónica e negativa por via do apossamento do mesmo na linguagem política. Para nós, "narrativa" - para além das significações correctas, insertas no texto - significa e remete também para o acto criador, ficcionista de uma prosa literária. E é nisso que narrativa ganha sentido pleno.
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