Das narrativas e das percepções

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Por Adriano Miranda Lima

Há alguns anos, a palavra narrativa começou a invadir o espaço público, designadamente no meio político, no jornalismo e no comentário televisivo. Foi como se ela de repente tivesse sido ungida pela graça da ubiquidade ao substituir-se a palavras com mais identidade semântica para as situações em que passou a ser utilizada. Consultando o Dicionário Online Priberam de Português, encontrei como significado do vocábulo narrativa: “acto de narrar”. E como sinónimos: “relatos, informações, explicações, apresentações, exposições, histórias, descrições”, etc. Acontece que esta palavra começou a pontificar com o significado de “versão dos factos”, e tanto quanto me lembro, com o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Foi em 2013, quando, depois de ter saído do governo, o político deu a primeira entrevista na televisão (RTP 1) e explicou que o que fez cair o seu governo nada tinha a ver com certas “narrativas” que se construíram. Assim, pode dizer-se que há cerca de 12 anos este vocábulo como que foi tomado de empréstimo ao mundo literário, que é onde, na verdade, encontra a justificação mais plausível para a sua existência. Na literatura, a narrativa é precisamente o relato de acontecimentos cujo espaço de materialização é o romance, a novela, a fábula e o conto. A narrativa compõe-se dos seguintes elementos: enredo, narrador, personagens, tempo e espaço, que são essenciais para que se concretize uma narração. Fica assim esclarecido o contexto preciso que mais justifica o uso desta palavra.

Outra que entrou com inusitada frequência no discurso político e jornalístico é a palavra “percepção”, pelo menos desde há uns 8 anos. Indo à Wikipédia, encontrei que “percepção é a capacidade para captar, processar e entender a informação que os nossos sentidos recebem. É o processo cognitivo que permite interpretar o ambiente com os estímulos que recebemos através dos órgãos sensoriais.” Não podendo considerar-se que o uso desta palavra esteja a ser completamente desconectado do seu significado, a sua utilização comum tem sido, contudo, na acepção mais simplificada em que é pura expressão da subjectividade. Quando, por exemplo, se diz que o Chega tem procurado explorar politicamente a percepção por si forjada de que a criminalidade violenta está a crescer de uma forma sem precedentes em Portugal, quer isto significar que esse partido distorce deliberadamente a realidade objectiva, isto é, aquela que resulta de uma análise rigorosa e imparcial baseada em informação estatística, sem interferência de motivações espúrias como é o partidarismo ou o facciosismo. Concluindo, o uso da palavra percepção tem sido mais na sua estrita relação com a subjectividade, não se justificando aqui uma abordagem teórica do seu significado no campo da filosofia e da neurociência.

Bem, nenhum mal trará ao mundo o uso excessivo ou abusivo das palavras “narrativa” e “percepção”, excepto quando se serve da sua sonoridade retórica para mascarar a superficialidade ou o vazio do discurso político, sem preocupação de contribuir para o enriquecimento da política mediante um debate profundo, inovador e criativo. É o que acontece quando o mesmo facto ou acontecimento se torna objecto das mais diferentes interpretações subjectivas (percepções) e das mais desencontradas versões explicativas (narrativas).

Particularmente, no que concerne à palavra narrativa, o seu uso tende a superlotar o espaço onde a ideologia foi postergada e, sobretudo, onde e quando a rarefacção de ideias põe em causa a política enquanto actividade nobre e realizadora da felicidade humana, conforme a concebeu Aristóteles há 350 anos a.C. Tal degradação pode ter várias explicações, mas é sobretudo consequência de dois fenómenos que se conjugam: a erosão das ideologias e a formatação da realidade pela comunicação social em função de critérios editoriais muitas vezes não alinhados com o interesse público.

Desta forma, em vez de laboratórios para produção e ensaio de ideias, valores e princípios, as ideologias hoje em dia parecem exauridas de vitalidade, quase limitando-se a uma repetição sistemática de dogmas e estereótipos, o que é sintoma de uma estagnação da sua capacidade criativa. Há que tomar consciência do quanto isso prejudica a política e abre caminho a forças que atentam contra o que ela tem de mais valorativo, mestres que são na arte da demagogia e manipulação dos incautos. Evidências gritantes deste risco surgem, infelizmente, no seio de membros da União Europeia e, neste momento, nos Estados Unidos da América, que, sob a administração de Donald Trump, dificilmente serão o grande pilar do mundo livre que sempre foram.

Nota: este texto foi escrito conforme a anterior ortografia.

Tomar, 7 de Abril de 2025 

1 comentários:

Ondina Ferreira disse...

Concordo com o autor do texto.
De facto a conotação actual do vocábulo "narrativa," ganhou uma conotação, diria que irónica e negativa por via do apossamento do mesmo na linguagem política. Para nós, "narrativa" - para além das significações correctas, insertas no texto - significa e remete também para o acto criador, ficcionista de uma prosa literária. E é nisso que narrativa ganha sentido pleno.

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