Contou-me a minha querida amiga Neusa Monteiro Freitas um episódio que já tem seguramente cinco décadas. Passou-se com ela ainda aluna, em Mindelo, S. Vicente.
Um certo dia, a professora de português entrou na sala de aula e pediu à turma que fizesse uma redacção sobre o tema: «Portugal».
À minha amiga, isso pareceu-lhe algo demasiado vago e muito complicado para uma redacção. Auto-questionou-se o que é que sobre isso saberia escrever? Uma espécie de aflitiva interrogação e de nervosismo apossaram-se da aluna.
Antes de continuar a historieta, sobre a qual me encontro devidamente autorizada a reportar, pois como disse a autora dela, hoje em dia ela já conta isso como quase anedota, devo abrir um parêntesis para situar melhor o leitor.
Estava-se bem nos inícios dos anos 60 do século XX e a PIDE, a polícia política de Salazar tinha vindo para Cabo Verde. Mal chegados a S. Vicente foram à procura do renomado compositor de mornas Jorge Fernandes Monteiro, também conhecido por Jotamonte ou Jorge Cornetim.
E porquê o interesse da PIDE pelo pai da minha amiga? Porque naquela altura, a morna intitulada: «Fidjo Maguado» (Filho Magoado) cujos versos aqui transcrevo parcialmente:
«Nha Terra bô ca ta imaginá
Tristéza q’ mi bo fidjo ‘m ta senti/
Ora qu’m tôdjá-bo ta sofrê
Nha alma ca ta podé resisti
Ma tem fé na No S’nhor
qu’ êss trsteza ês dor
sofrimento profundo
que ca tem ôto na mundo/
el ta cabâ um dia
pa nu sinti lígria/
pa nô podê vivê
Sim c’mâ tude gente ta q’ rê (…)»
(tradução aproximada: «Minha terra, tu não podes imaginar a tristeza que eu, teu filho sinto quando te vejo a sofrer, a minha alma não consegue aguentar! Mas tenho fé em Nosso Senhor, que toda esta tristeza, esta dor, sofrimento profundo que no mundo não há igual há-de conhecer o fim, um dia, para sentirmos alegria e viver como toda a gente gostaria de viver (...)
Pois bem, a morna havia sido adoptada como indicativo (hino de abertura e de fecho) das emissões da “Rádio Libertação” do PAIGC, em Conacri, partido que se encontrava na altura em guerra com Portugal pelas independências da Guiné e de Cabo Verde.
O autor, mesmo tendo provado que, enquanto compositor, fizera a inscrição da dita morna na Sociedade de Autores em Portugal, muito antes do início luta do PAIGC, a PIDE não o deixava em paz, convencida como estava de que a música lhe fora encomendada.
Então, um pouco para se demarcar de algo de que ele não tinha tido a culpa e que nem podia controlar, compôs a seguinte canção que depois ofereceu às escolas e aos Liceus para as aulas da disciplina de Canto Coral, de que ele era também um dos professores. Vai aqui reproduzida a letra. Espero que a memória não me traia, tentarei transcrever os versos, embora apenas parcialmente:
«Portugal continua sem cessar
A ser um grande país de liberdade
E enquanto existir um Salazar
Mostrará sempre que ela é uma realidade
Portugal terra de paz
Portugal guiado por DEUS
Será sempre um país de liberdade
São os sinceros votos meus (…)»
A filha que já andava com a letra da canção copiada num dos seus cadernos da escola, muito antes da sua plena divulgação, não esteve com rebuços e a redacção dela a toda a página (em prosa) foi exactamente a letra da canção do que o pai havia recentemente composto. Fecho o parêntesis.
Mas feito isto e entregue o trabalho à professora, sobreveio o medo de que fosse descoberto o plágio e que ela fosse castigada.
Chega o dia da entrega das referidas redacções corrigidas, a Neusa vê a turma toda a receber e ela… nada. O coração agitou-se e o temor de que havia sido apanhada aumentou.
Eis que no fim da distribuição, a professora abeira-se dela e diz-lhe toda embevecida: «Querida Neusa a tua redacção está tão bem feita, tão tocante, que resolvi guardá-la como recordação!» E hoje, a minha amiga ri-se às gargalhadas quando se lembra da história sobre a qual não se atreveu a dizer em casa ao pai. Pois, segundo ela, se para a professora fora interessante, pois nada descobrira, do pai ela havia de receber uma boa reprimenda pelo descaramento.
E já agora, para finalizar e um pouco também em jeito de memória, recordo o que me contou o saudoso maestro Jorge Monteiro, então professor de música no Liceu do Sal nos finais dos anos 70. Disse-me que se havia inspirado para compor a morna «Fidjo Maguado» no ambiente decadente de miséria e de desemprego por que passava a ilha de S. Vicente com a desactivação dos depósitos de carvão e o declínio do belo e então movimentado Porto Grande do Mindelo.
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