UM POLÍTICO ASSUME E ASSUME-SE!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
A conversa reinante ao longo destas últimas semanas, em todos os espaços públicos e privados em que amigos se encontram, ainda é, incontornavelmente, por um lado, a tirada erudita e culta do PM em considerar o povo cabo-verdiano agressivo e afeito à violência devido, segundo ele, de entre outras causas das quais ressalta, imagine-se, uma vivência infantil de “piratinha”, a uma herança escravocrata na origem da formação da nossa sociedade, que ainda perdura; e por outro, as extemporâneas “confissões” de Aristides Pereira. Qualquer destes dois assuntos já foi de tal forma escalpelizado nos media, impressos e digitais, que estou seguro que nada de novo acrescentarei ao muito que já foi dito. Apenas mais um sintético registo.

1. O PM confunde, à boa maneira de uma boa parte dos paicvistas, o espaço de tempo correspondente ao seu governo com a história de Cabo Verde; igualmente confunde as escaramuças pontuais e previsíveis – antigamente tomavam-se medidas preventivas – das festas populares com a violência permanente e a insegurança generalizada. Talvez ele não consiga destrinçar entre a violência e o sentimento de revolta, a indignação. Esta sim, tem sido permanente. A este propósito, será oportuno e esclarecedor citar um famoso escritor português, conhecido como homem firme e honrado, com a coluna vertical bem direita – Miguel Torga – ao contrário de muitos políticos e pseudo homens de cultura que por aí pululam que já nascem com ela bem torta e sem perspectivas de a endireitarem (cito):

"É um fenómeno curioso:
O país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto.
Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados
" (Fim de citação)

Torga, embora dirigindo-se a uma outra comunidade e num outro tempo, acaba de sintetizar aquilo que o nosso PM classifica de violência congénita.

Para abreviar este assunto que suscitou grande alvoroço e potenciou a indignação nacional, apenas desafio o PM a responder ao seguinte: Que povo violento (mesmo moderadamente) aceitaria ordeira e pacificamente um presidente da república, “eleito” por uma diferença de 12 (doze) votos provados fraudulentos pelos tribunais? Por muito menos, tem havido banhos de sangue no nosso continente. Ou não é assim, senhor PM?

O que aconteceu, é que o PM, na sua missão de bombeiro político, acorrendo a todos os fogos do seu governo sociopoliticamente incendiário, quis apagar mais um, pelos vistos de forma atabalhoada e infeliz, este , provocado por um abaixo-assinado de centenas de mulheres (principais alvos) da Cidade da Praia a queixarem-se contra a violência urbana generalizada que pondo em risco a sua integridade física e a sua vida, condiciona e constrange o seu comportamento social e o seu modus vivendi com a perda inquestionável da sua liberdade de acção. Outros movimentos ou movimentações, provenientes das igrejas cristãs e da própria Câmara da Praia, têm-se igualmente expressado.

À manifesta incompetência e incapacidade do Governo em encontrar uma solução responde o PM, irresponsavelmente, endossando a violência a um suposto código genético da sociedade cabo-verdiana. Uma verdadeira falta de respeito e de consideração ao povo que o elegeu e a que diz pertencer.

2. Também algumas das recentes “confissões” de Aristides Pereira (AP), reveladas após a sua morte, têm sido motivo de conversa e de comentários vários. Não só pelo seu conteúdo, controverso, porque mexe com o bom-nome e a dignidade das pessoas mas também pela sua questionável (in)oportunidade.

A luta para a independência terminou há umas décadas. Pode-se aceitar que o contexto da guerra obrigava-o a conviver com todos aqueles que ele classifica como cara-de-pau – cínico, hipócrita, carreirista, sem escrúpulos, cúmplices de assassínios, etc. etc. Mas na pós-independência bem podia ter-se demarcado de todos eles e assumido as suas responsabilidades de chefe da “tribo” que sempre comandou, separando o trigo do joio. Não o fez e parecia sentir-se cada vez mais acomodado e confortável com o usufruto da condição de patriarca.

AP está já na História de Cabo Verde. É assim a História: uma vez entrado nunca mais de lá se sai. A não ser em regimes totalitários comunistas em que o nome fica proibido de ser pronunciado e, juntamente com a imagem, retirado de todos os documentos. Mas estar na História nem sempre é pelos melhores motivos. Não é o caso de AP. Mas os menos jovens, da minha geração, e com a 4ª classe, sabem que de Egas Moniz a Miguel de Vasconcelos, vai um longo espectro entre um Homem e um ser humano, segundo a História de Portugal.

AP não poupou nenhum dos seus colaboradores mais próximos. Não hesitou em acusar aquele que foi o seu 2º durante, pelo menos, 15 longos anos de homem sem escrúpulos, cego pelo poder e sedento de protagonismo, minorando ou mesmo destituindo as suas pretensões, pelo seu tipo de calculismo, de algum patriotismo e de espírito de missão. A um outro, seu compadre, ironicamente por sua própria iniciativa (quando se esperava o inverso) configurou-o como homem autoritário, violento e intolerante de entre outros enquadramentos menos dignos. Aos jovens turcos de então (anos 80/90), hoje nossos governantes, classificou-os de uma “cambada” de empedernidos anti-democratas, oportunistas e carreiristas. E no meio disto tudo, declara-se amicíssimo de um que diz ter conhecido antes de conhecer Cabral mas, todos bem o sabem que, por actos e omissão, quão mal o tratou em Conacry. E nunca levantou um dedo em sua defesa, bem pelo contrário, fazia coro pelo silêncio, quando aquele era atacado e vilipendiado. Enfim, lixívia para todos os gostos, dando crédito aos que defendem que a história contada só pelo próprio é, sob vários aspectos, uma História sob suspeita.

AP sabia que a maior parte das suas declarações “póstumas” não constitui nenhuma novidade. Mais, que ia ao encontro daquilo que toda a gente pensava mas só alguns o diziam. Tinha, pois, plena consciência de que as suas “não novidades” ditas por ele se transformariam em polémica alargada e poriam em causa uma certa auréola que envolvia os “vindos da Guiné”, na terminologia de um meu amigo, revelando a sua generalizada mediocridade, com a autoridade de quem na verdade devia tê-la. Portanto, a grande surpresa é apenas o facto de terem sido ditas por ele, AP, − um homem discreto, parco de palavras e de ideias, distanciado e que escondia as suas insuficiências por detrás da sua simplória e mal-disfarçada arrogância − o mais consagrado e respeitado dos “compagnons de route” de Amílcar Cabral. Por isso surpreendeu…

Sobre a morte de AC era preferível continuar calado. Nada disse no seu livro “Meu testemunho – Uma Luta. Um Partido, dois Países” em quase mil páginas, remetendo tudo para o embaixador de Cuba, Óscar Oramas, o que é apenas ridículo pelas funções que sempre ocupou no PAIGC e porque na altura do assassínio de AC era ele o responsável pela segurança do partido. Uma fuga às responsabilidades, quiçá, por reconhecer negligência e trágica falha por parte dos serviços de segurança que ele chefiava, não obstante os claros e preocupantes sinais que irradiavam de vários quadrantes.

Acusar uma militante, insidiosamente, de alguma cumplicidade, porque sabia do complot por viver na altura com um “implicado” no assassínio de A. Cabral, dá para pensar. Conferir o estatuto de implicado, mesmo que corresponda à realidade, não pode ser feito pelo mais alto dirigente da organização, sem que tivesse agido em conformidade. É que esse homem “implicado”, que se saiba, nunca foi julgado nem condenado, como muitas centenas de outros que foram espancados e esfaqueados (catana) até a morte e sumariamente fuzilados; e seria no ano seguinte, esse “implicado”, tão simplesmente, o procurador-geral da república no governo de Luis Cabral, na vigência dele, AP, como Secretário-geral do PAIGC.

O campo de especulação do assassínio de AC é um autêntico lodaçal. O CC da URSS (KGB) havia já comunicado a tramóia à direcção do PAIGC; Sekou Touré na manhã do próprio dia do assassínio mandou avisar (2 emissários de alto nível, um deles, o embaixador em Dakar); AP recebe um emissário vindo de Boé no próprio dia da morte dando-lhe conta da conspiração; e segundo Óscar Oramas das mais de 600 pessoas que trabalhavam em Conacry cerca de 400 sabiam que estava algo em preparação. Não faz sentido nenhum, insinuar que só uma única pessoa podia ter tido conhecimento da conspiração. Ainda que pudesse ser verdade, é uma nota despropositada e de má-fé. A história está muito mal contada. Sobretudo quando se endossa, muito comodamente, tudo às autoridades coloniais, de acordo com o 1º comunicado do PAIGC sobre o assunto feito 3 semanas depois do assassínio.

Mas que interesses teriam movido Aristides Pereira para, na hora da sua morte, ou melhor, nos últimos anos da sua vida, rebelar-se contra os seus camaradas de tantas e múltiplas cumplicidades?

Um grande amigo meu, respondeu-me: Quis ser Pilatos! E eu repliquei: Pilatos só lavou as mãos…

Na verdade o que parece é que AP quis lavar-se de algumas das “imundícies” que atribuem e ensombram o PAIGC/CV. Escolheu as mais pequenas e fê-la de forma pequena – pouco elegante e muito pouco digna. Como sói dizer-se: ficou muito mal na fotografia. Podia ter focalizado mais os factos e menos as pessoas. Como por exemplo, falar (verdade) do massacre que se seguiu ao assassínio de Cabral, do assassínio frio dos três majores portugueses, do fuzilamento de centenas de guineenses após a independência sem qualquer julgamento, sendo ele secretário-geral, das prisões arbitrárias, mortes e perseguições antes e depois da independência de Cabo Verde no quadro da unidade, etc. etc.

De todo o modo, como alguém já o disse: foi aberta a caixa de Pandora…

Mas atenção: Não é louvável o “timing” que AP escolheu para fazer as suas “confidências”. Devia tê-las publicado em vida, e aí mereceria seguramente o aplauso da generalidade dos cabo-verdianos pela coragem, frontalidade e pela contribuição dada à História do País e da Luta para as independências. E não lhe faltaram oportunidades nos seus quase 88 anos de vida. Ou então, seria recomendável seguir o exemplo de outros políticos que só permitem que os seus arquivos pessoais sejam abertos algum tempo (5 anos no caso de Kissinger) depois do seu falecimento.

“Um político assume-se” é o título do último livro de Mário Soares. Bastante sugestivo para as declarações postumamente publicadas de AP. Por antinomia. Antes de político é-se homem. E um Homem só o é, quando assume e se assume. E isto só se faz em vida!

A. Ferreira

2 comentários:

Anónimo disse...

Ondina, ler o que tu escreves eh um treat! Nao pares. Em Boston tens um leitor atento e grato.

Anónimo disse...

Ondina, ler o que tu escreves eh um treat! Nao pares. Em Boston tens um leitor atento e grato.

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