«A Cultura da Argumentação, Tradição e Modernidade da Razão Argumentativa» de Carlos Alexandre Bellino Sacadura» - Uma Leitura -

sexta-feira, 28 de março de 2014
O livro «A Cultura da Argumentação – Tradição e Modernidade da Razão Argumentativa» de Carlos Alexandre Bellino Sacadura, convida o leitor, através dos seus nove capítulos, enformados em duas partes, a conhecer, a encontrar e a participar dos fundamentos históricos que de certa forma deram perenidade às teorias da racionalidade argumentativa.

Bem, antes de continuar, eu gostaria de esclarecer o leitor de que a leitura que fiz e o que percebi deste laborioso, meticuloso e profundo estudo histórico e filosófico de Carlos Alexandre Bellino Sacadura – a minha leitura interpretativa, aqui muito “naif” e resumida – é de alguém que não é da área. A minha leitura, dizia, vai para a generalidade da comunidade de leitores em que me incluo e não, longe de mim! Não se dirige a leitores especializado em Filosofia. Logo, as minhas desculpas a algum especialista que eventualmente venha a ler este texto.

Feito o esclarecimento, debrucemo-nos agora sobre o livro. Através de uma bem conseguida sistematização semântica, isto é, partindo da significação mais simples à mais complexa, o autor explica-nos que discurso racional, ou Discurso e razão, tiveram a sua génese na cultura grega, no chamado “Logos” helénico, com particular enfoque nos estudos levados a cabo por Sócrates, sob forma oral e por Platão sob forma escrita em Diálogos, em que subjaz a oralidade. Diálogos esses em que se apresentavam argumentos sobre matérias com interesse para a “Polis”/Cidade Estado, no caso, Atenas, e em que estes argumentos eram questionados, polemizados, originando-se em novos argumentos.

A famosa cultura grega da argumentação fez-se, de acordo com Bellino, e passo a citá-lo: com “o apelo explícito à razão e ao argumento.” Esta constância à razão e ao argumento, torna-se modelo de pensar, ou seja, lança os pilares da racionalidade crítica que por sua vez, fundamenta a atitude científica.

Há da parte do autor um debruçar de forma muito pormenorizada, minuciosa, diria, sobre o pensamento de Platão, conducente àquilo que Platão considera dever ser utilizado para se chegar ao “verdadeiro conhecimento.” Para este grande Filósofo da Antiguidade, seria o discurso e razão, mais a ética.

Ora aqui emerge a Filosofia, o saber dos saberes. Por falar em Ética, recomendo-vos vivamente a leitura do capítulo 5 deste livro, pois que é assaz rico em fundamentos demonstrativos de que a ética deve estar presente na edificação de qualquer tipo de discurso argumentativo. Embora a questão da Ética atravesse quase todos os capítulos do livro.

Igualmente, em páginas importantes, desta excelente e culta análise, o autor lança uma ponte, intenta uma profícua interligação ou uma aproximação, entre o pensamento filosófico fundador grego, mais particularizado na filosofia, de Platão (347 A.C.) e o pensamento de Descartes, René Descartes, século XVII, na produção do seu discurso científico moderno, da importância deste Sábio fundador da chamada Filosofia Moderna. Para além disso, Descartes é nas palavras de Bellino Sacadura, o precursor daquilo que hoje se denomina de difusão em rede do conhecimento. Quero crer que a generalidade de nós outros, conhece ainda que isso possa ser superficialmente, a célebre Dúvida Metódica, ou o “cogito ergo sum” (penso, logo existo) ou mesmo o Discurso do Método de Descartes. O livro de Carlos Bellino ocupa-se com profundidade não só destas questões como as alia à retórica e à imaginação que perpassam no discurso de Descartes.

Mas antes de continuar com a leitura comparada que o autor estabelece entre Platão e Descartes, gostaria de dizer que retive do livro, o seguinte: há nele também a inscrição de uma tese que é cara ao autor e que se não é a tese maior desta obra, ela é, sem dúvida, uma das suas conclusões mais apelativas. Carlos Bellino afirma aqui, sob forma de uma espécie de recusa, daquilo a que ele chama e passo a citá-lo: “de fragmentação dos saberes, com cada disciplina a querer impor os seus critérios de compreensão como únicos.”

Este negar, provando, a não fragmentação de saberes, encerra uma atitude e um pensamento actual em alguns cientistas e filósofos aos quais se junta o autor deste livro.

Pois bem, para o Prof. Bellino Sacadura, e um pouco para contrariar esta tendência que fez e continua a fazer escola e que contaminou em larga medida, o pensamento filosófico e científico, dividindo-os em campos por vezes, numa simplificada oposição, entre “ ora aqui começa a filosofia e ora ali acaba o discurso cientifico”, e não se tocam. Para o autor, ao contrário, faz todo o sentido interligar, ou estabelecer a tal convergência, pois que já vinha implicado no pensamento grego antigo, ou helénico, no livro, representado por Platão, que promoveu, e cito o autor: “uma racionalidade plural (racionalidade argumentativa, lógica e empírica) ”. E isto converge com o pensamento cartesiano, que afinal, acabou por se revelar, volto a citar o autor: “o paradigma da impossibilidade de separação total” dos saberes, e/ou das duas abordagens, a filosófica e a científica que já se complementavam e já se interligavam afinal, no discurso de Platão e mais tarde na retoma de Descartes no seu método científico. No fundo, o primado da transversalidade dos saberes entre si.

Outro assunto que trata o livro, e para mim, muito Interessante e que li com entusiasmo, e atenção foi a análise dedicada aos símbolos e à alegoria platónica, assim conhecidos, e que diferentes correntes literárias incorporaram e, exercitaram-nos com especial realce, para a poesia. Aliás, foi intertextualidade recorrente na Literatura dita ocidental europeia, durante séculos.

De modo abreviado direi, recorrendo-me a Bellino Sacadura e a Hernâni Cidade professor e investigador da Literatura portuguesa do século XX, que a alegoria platónica, afirma ou sugere que as almas “viviam primeiro na esfera inteligível, na contemplação das realidades perfeitas, das realidades-ideias; por qualquer pecado, caíram na esfera sensível e ei-las agora corporeamente apreendendo as sombras,” ou seja, apenas, as realidades que os sentidos captam. Mas as almas não perderam por completo a memória do seu primeiro estado de clara visão racional e, pelo esforço da reminiscência, pelo caminho dialéctico, poderão fazer a ascensão da esfera sensível à esfera inteligível, da sombra ao real é assim que, por exemplo, o poeta, projecta a ideia de Beleza sobre o objecto amado. É assim que encontrámos em Camões um grande cultor da alegoria platónica, o exemplo máximo do neoplatonismo na poesia portuguesa renascentista dos séculos XV e XVI. Um dos seus poemas mais claramente ilustrativo da aplicação da alegoria é o poema “Babel e Sião” em que escreve: Mas ò tu, terra de Glória, / Se eu nunca vi tua essência / Como me lembras na ausência? / Não me lembras na memória, / Senão na reminiscência; / Que a alma é tábua rasa/ Que, com a escrita doutrina / Celeste, tanto imagina, / Que voa da própria casa/ E sobe à Pátria divina / donde esta alma descendeu, / E aquela humana figura / Que cá me pôde alterar / Não é quem se há-de buscar: / É raio da Formosura / Que só se deve amar.

O considerado neoplatonismo literário/poético atinge em Camões a expressão maior no soneto: “Transforma-se o Amador na coisa amada.”

Mas o magistério de Platão, através da sua alegoria, e dos seus símbolos, percorreu várias correntes poéticas na Literatura portuguesa, e em diferentes momentos. No romantismo vamos encontrar em Almeida Garret, poemas em que ele “pressente” a ideia do amor. Mais tarde entrando, no século XIX, no Realismo, os versos atormentados e densos de Antero de Quental, lançam interrogações e inquietações sobre a “luz” que o poeta persegue e que vem da – volto a citar Bellino – “gnosiologia e da ontologia da luz de Platão e que se abre para o filósofo como uma mística, uma iluminação espiritual. Que se tornaria numa das fontes do neoplatonismo.” Fim de citação. Sobre os símbolos e a alegoria platónica é de todo o interesse que se leia o capítulo 3 com o subtítulo: Retórica, dialéctica e imagética do conhecimento em que o autor explana os pontos fundamentais contidos na obra «Banquete» de Platão, analisados e interpretados em vários e respeitáveis escritos de pensadores hodiernos da obra platónica.

Para finalizar esta minha intervenção gostaria de dizer que Carlos Bellino Sacadura, apoia as hipóteses e as teses que são apresentadas ao leitor ao longo deste livro, em várias escolas e/ou correntes filosófica, em diferentes épocas e diferentes pensadores e estudiosos. Para exemplificar, direi que ele passa em cuidadas análises, pelos sofistas, pelos retóricos, pormenoriza a discussão entre estes e Platão (afinal, está presente no livro, a questão da boa e da má Retórica) vai a Pitágoras, conclama Kant e Bacon, entre outros, que no livro são citados, os quais, em argumentação e em contra – argumentação com eles próprios e com outros autores, vão construindo teses que confluem com propriedade e com contexto no discurso ou, já agora, no “Logos” e na dialéctica com que o autor deste livro, Carlos Alexandre Bellino Sacadura, tece a sua argumentação, já reformulada, já própria e já original.

Para terminar mesmo, gostaria de agradecer ao autor a proveitosa leitura que o livro propicia, convidando o leitor que o leia pois que, no final da leitura, sairá certamente, culturalmente mais enriquecido.

Nota informativa: Carlos Alexandre Bellino Sacadura é Professor de Filosofia na Universidade de Cabo Verde. É Luso-cabo-verdiano. É doutorado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Braga/ Universidade Católica Portuguesa. O seu campo de investigação incide na Filosofia da Educação e na Filosofia da Ciência, Fenomenologia e Hermenêutica

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