sábado, 23 de janeiro de 2016

 

CRÓNICAS PARA FAZER RIR, OU TALVEZ NÃO - I

(Leia só se tiver um fino sentido de humor)

IDENTIDADE

- M. Odette Pinheiro

 

Quando os disparates são demasiado grandes, há duas maneiras de lidar com eles. Ou se lança mão de todos os argumentos da lógica e do conhecimento, ou então… Eu optei por esta segunda alternativa.

 Parece que os inteligentes piraram. Piraram quase todos. É que segundo o jornal “O Público” (e é verdade porque eu vi o respectivo vídeo, para que as culpas não escorreguem para a jornalista) essa gente inteligente gostaria que eu dissesse uma coisa que eu não posso dizer. E não posso, por várias razões.

Começo pela primeira. Sou bisneta de judeu, daqueles que andaram pelo mundo de terra em terra à procura de um lugar onde fossem bem recebidos e onde o seu dinheirinho fosse apreciado em vez de fazer a inveja dos menos industriosos. Os pais do meu bisavô chegaram cá vindos de Marrocos, não sei se por se terem cansado de comer tâmaras, e descobriram o seu oásis em Santo Antão, tendo até direito a campa no cemitério judeu da Ponta do Sol (se quiserem verificar).

Nhô Abron (de Abraão, em Português), meu bisavô, também lá enterrado, quando chegou à idade casadoira, escolheu para sua mulher uma mulatinha bastante escura (como sabem em Cabo Verde há-as de todas as tonalidades, é só escolher) e muito pobre (ai o amor!), e gostou tanto dela que lhe fez nove filhos (e parece que nunca saltou a cerca!): oito meninas e um rapaz que já vieram um pouco menos escurinhos que a minha bisavó, mas não da cor do pai (beije, como a maior parte dos semitas).

Não que isso me interesse, pois cresci sem noção de que a cor da pele tinha a ver com o que estava dentro. Agora parece que se quer voltar ao muito antigamente já longínquo, e destrinçar entre aqueles que são escurinhos, escurinhos, e clarinhos, clarinhos. Que retrocesso! Eu nunca o fiz enquanto crescia. Nunca me olhei ao espelho para ver se estava a ficar demasiado escura. E andava todos os dias no mar e ao sol, ali na Escasinha, Prainha, ou Lajedo, na Ponta de Sol, dali esta paixão que tenho pelo mar. Aprendi a nadar às costas do meu avô, ainda bem pequenina, e nunca mais parei. E adorava o sol.

Gostava da minha bisavó cor de chocolate bem escuro, do meu avô beije, dos irmãos do meu pai, uns escuros e outros claros, e respeitei-os a todos como sendo iguais. Será que precisamos que um Martim Luther King venha desafiar-nos: “Tenho um sonho, que um dia os meus quatro filhos viverão numa nação em que não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo do seu carácter?” Que Deus nos livre, mas precisamos atalhar esta corrente daninha enquanto é tempo, se há gente a tentar fazer a cabeça dos nossos jovens e a incentivá-los a outras coisas que não sejam o aperfeiçoamento do seu carácter (desculpem esta nota de seriedade, mas o problema é sério mesmo. São capazes de os convencer que ainda são escravos, e teremos mais uma revolta dos escravos, só que já não será à moda antiga! Agora, com boca bedjo e tudo).

Para voltar à genealogia e para fazer bem as contas, como o sangue da minha bisavó já era misturado, minha avó deve ter ficado com bastante menos de 50% de sangue vindo de África, 2 donde remotamente haviam vindo uns antepassados. O meu avô era também de sangue misturado, pois o pai era descendente (muito perto) dum português, o primeiro Vera-Cruz destas ilhas. Mistura com mistura dá misturada! Lá saiu a minha mãe quase branca (branca não, que é a cor da neve, novamente beije como o meu bisavô). É que a hereditariedade tem destas coisas. O potencial beije estava lá escondido na avó e no avô, e pumba, veio ao de cima na minha mãe: linda e de um cabelo que lhe dava pelas costas (não me tomem isto como ofensa, mas gostos são gostos! Também gosto do encaracoladinho, curto e com muito gel para ficar cheio de brilho e a emoldurar a cabeça. É uma belezura, como diz o brasileiro! Do que já não gosto tanto é desses prolongamentos artificiais, para fazer parecer o que não é. Como os soutiens muito enchumaçados! Mas é só uma questão de gosto, e não tenho nada contra o gosto de ninguém, e não penso que os gostos em si sejam sinais de insegurança identitária.

Do que a minha mãe teve sorte é de não ter sido menina e moça ao tempo da independência, pois teria de andar a fugir das tesouras dos progressistas que estiveram a correr atrás das meninas que tinham cabelos longos e lisos para lhos cortarem, pois as “africanas” não têm cabelos assim. (Será que ali é que começaram os disparates que lemos em “O Público”?)

De volta ao meu pedigree (com o devido respeito pelos meus antepassados), do lado do meu pai a coisa não é menos complicada pois há uma bisavó filha de inglês (sim, súbdito de Sua Majestade). Aliás, sempre nos consideramos primos dela (ai a alienação!) e até ficámos muito… desculpem que não se diz, “chateadinhos”, quando não recebemos convite para o casamento do primo Charles e da Diana (realmente a família já não é o que costumava ser!). E o Pinheiro é de um Português que umas quatro ou cinco gerações atrás veio cá parar, gostou e ficou. Ou foi obrigado a ficar. Que isto de se precisar de autorização de saída não começou com a independência. Estes copiaram de outros a ideia luminosa.

Mas o que acontece comigo não é excepcional. É o que acontece com grande parte dos caboverdianos, mesmo os lá de Rincão, Ribeirão Manuel e lugares do Santiago profundo, considerados de raça mais pura. Investiguem e vão ver a misturada que encontram, a despeito de opiniões mais doutas de que não há muita mestiçagem física em Cabo Verde! Donde vieram os Lubranos, Veigas, Monteiros, Pintos, Reis Borges, Queridos, Mascarenhas, etc. etc. etc., todos com antepassados bem identificados vindos da estranja, que lhes misturaram o puro-sangue africano? Não me venham dizer que foram só escravos a quem mudaram o nome. E que por terem a cor do chocolate muito escuro só têm genes vindos da mãe África, e não do papá Europa.

É que os genes que determinam a cor da pele são complicados. São poligenes, e por isso aditivos e não funcionam segundo a lei de Mendel (lembram-se, o frade que gostava de brincar com ervilhas, e entretinha-se a cruzá-las?). Quanto à cor da pele, há dois pares de genes, Aa e Bb, em que os chamados alelos designados pelas letras maiúsculas produzem grande quantidade de melanina, enquanto os de letra minúscula produzem pouca quantidade. Adicionam-se, conforme os genes que cada um tem. Assim, duas pessoas (até agora macho e fêmea) com dois pares médios (AaBb) cruzando-se entre si podem dar todas as cambiantes: desde o AABB, pele negra, isto é, chocolatão; até aabb, pele clara (chamada de branca). É por isso que encontramos toda a diversidade em Cabo Verde. Filhos dum pai e duma mãe mulatos médios, podem ser desde o branco ao negro, e é o que acontece em muitas famílias. Se duvidarem, verifiquem na Internet. Nem tudo que aparece lá é verdade, mas isto é de fonte segura.

(http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Genetica/genesnaoalelos4.php).  

Do lado “africano”, se tivéssemos nós tido os nossos Kunta Kintés (do livro de Alex Halley e filme Roots), que, apesar de escravos, teimosamente tivessem contado às suas filhas Kizzys donde eram e as glórias da família, e tivessem insistido em que elas contassem aos seus filhos, e esses aos filhos dos filhos, e assim por diante, talvez pudéssemos dizer exactamente de onde vieram as nossas raízes africanas que se foram diluindo na caboverdianidade. Mas não aconteceu, e só sabemos que remotamente alguns dos nossos antepassados vieram da costa ocidental da mamã África. Com o tempo deixaram de ser o que eram e nós passámos a ser quem e o que somos hoje. HOJE! Como ouvi num filme quando eu era ainda criança, “o passado é uma porta fechada, e a chave está perdida”. O passado já não me pertence, o futuro não sei se o terei. Só tenho o hoje. Carpe diem, como escreveu Horácio. Agarra o presente!

Quanto à segunda razão, e voltando aos nossos inteligentes, o que querem que eu responda quando me perguntam o que eu sou? O que escolher nessa misturada, de avós, bisavós, tetravós? A única resposta lógica e segura é que eu sou caboverdiana. Agora, quando me perguntam onde é que isso fica, digo-lhes que fica a cerca de 400 milhas marítimas da Costa Ocidental da África, um pouco abaixo das Canárias (se se considerar o Norte para cima, isto também pode ser contestado), mais ou menos na linha horizontal (para quem sabe geografia, paralelo) do Senegal. Maior precisão, só no laboratório! Assim toda a gente fica a saber onde ficam estas ilhas onde tive a felicidade de nascer (até pareço o Lúcio na CAN!).

Agora, definir-me a mim ou a minha identidade pelo nome de um continente é absolutamente absurdo, pois ninguém mais no mundo o faz. O brasileiro diz que é brasileiro e não sul-americano, o holandês diz que é holandês e não europeu, o russo, a mesma coisa (doutro modo eles teriam um problema, com essa mania de estarem em dois continentes ao mesmo tempo: teriam de dizer se eram russos europeus ou russos asiáticos!).

Além disso, definir a minha identidade por um continente é uma coisa muito arriscada, pois um continente é uma coisa grandinha demais. Ficariam a pensar se eu sou do Magrebe (e teria a obrigação de ser beije claro, e até de rezar de rabo para o ar), se sou lá das terras de Haile Selassie, com as suas conotações étnicas e religiosas específicas, se sou lá mais para o Sul e sofri o apartheid, se … tantas possibilidades que é impossível mencioná-las todas!

Assim, minha gente, por favor, contentem-se com o facto de nós, que nos consideramos caboverdianos, dizermos que somos caboverdianos. Mas não vão falar mal de nós para os jornais portugueses, que isso é muito feio! É pior que ter os embaixadores estrangeiros a meter-se nos nossos assuntos! Se nos quiserem chamar de complexados ou alienados, o problema é vosso, mas façam-no aqui dentro. Entretanto, leiam Freud e vejam (melhor no sofá, com ajuda) se isso não é o que ele chamou de projecção: atribuir a outrem aquilo com que não estamos confortáveis dentro de nós mesmos. Traumas de infância? Ou então, é show! Politicamente correcto!

2 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Como cheguei atraso aos comentários, transfiro para a continuação deste texto (mais à frente) a minha opinião.

Unknown disse...

Apenas para recordar, àcerca do regresso ao passado, o que eu ouvi no Eden-Park, num documentário comentado em brasileiro que terminava assim: "Como seria bom regressar ao passado...Porém, a porta que conduz ao passado está fechada e a chave, perdida!"
Claro, a gente não pode regressar ao passado, mas a nossa memória, sim!
Mantenha,
Zito

Enviar um comentário