UMA AGENDA POLÍTICA ESCONDIDA?

quinta-feira, 26 de maio de 2016
O político, sobretudo o do topo, é uma pessoa objectivamente imodesta. Ele tem que acreditar e ostentar publicamente a sua superioridade em relação ao adversário. Noblesse oblige! Fá-lo quase sempre em nome pessoal, não obstante usar o majestático. Ele é o maior, considera-se sem nunca o dizer. Os seus projectos de sociedade são os que melhor servem o País; o seu programa de governo – mesmo quando o não tenha – é aquele que melhor satisfaz os interesses da Nação; as suas ideias socio-políticas são as mais avançadas, progressistas e inovadoras; as suas tácticas e estratégias as mais bem concebidas. E tem que os exibir e torná-los convincentes, pelo menos no plano retórico. Ele – e toda a sua parafernália conceptual – é um produto para venda e como tal deve revestir-se de marketing e propaganda que o torna apetecível. Desta forma “todos” os dirigentes políticos de topo, com particular incidência nos líderes partidários são um pouco narcisistas, preocupados acentuadamente com o seu umbigo.

No seu exacerbado egotismo – passe o pleonasmo – o dirigente político de topo menospreza a equipa que o alcandorou ao lugar em que se encontra que considera algo secundário e negligenciável em razão do que pensa ser o seu prestígio e a sua imagem e dá-se ao desprimor de julgar que poderá dizer, directamente ou por interposta pessoa, o que entender e quando o quiser, que as suas palavras serão sempre aplaudidas e bem-recebidas. Esquece, muitas vezes, os valores fundamentais que devem orientar a sua conduta no grupo a que pertence; confunde eventual amizade pessoal com a conivência política sem questionar minimamente ou debruçar-se sobre a amizade de “última” hora; e estabelece o seu calendário pessoal, transferindo não só esta sua agenda pessoal mas também as suas amizades “políticas” como facto consumado para o partido ou grupo que lidera convencendo-o, normalmente, com alguma intrínseca ou, quiçá, artificial ingenuidade, de táctica de captação de votos adversários.

É nesta linha de ideias que podemos analisar duas declarações de governos diferentes e de efeitos também diferentes e que têm de comum apenas o facto de nos surpreender. Então vejamos:

Num País que tem o FMI aqui mesmo atrás da porta – com a nossa dívida pública (120% do PIB sem contar a das empresas públicas) e sem riquezas naturais para hipotecar não é preciso ser-se adivinho ou bruxo para o saber; que tem uma taxa efectiva de desemprego jovem de mais de 30%; que tem um sistema educativo (núcleo fundamental de qualquer desenvolvimento sustentável) anacrónico e desqualificado – vide o nível dos nossos licenciados que são incapazes de escrever ou articular correctamente uma ideia em português, língua em que foram alfabetizados e instruídos; que luta com um índice de pobreza acima dos 20%; que tem um sistema de saúde carente de organização, de equipamentos e de valências fundamentais não só para a sua população como para o desenvolvimento do seu sector de aposta – o turismo – e responder com eficiência aos custos inerentes à natureza arquipelágica do País; que tem empresas públicas em estado de falência técnica; que aguarda para 2017 um serviço da dívida que deve roçar os 35 milhões de euros; que cresceu muito, é um facto, mas que não se desenvolveu pois ainda não provou a sua viabilidade económica, a sua sustentabilidade (ser capaz de viver sem donativos); e que sabe, logicamente, que tem uma capacidade de endividamento absolutamente limitada.

Pois bem, é neste País e nestas circunstâncias que vem o Governo recém-empossado, que nem tinha sido investido de poderes governamentais, declarar, pela voz de um dos seus membros, que por sinal, me é simpático e muito considero, como preocupação melhorar as condições dos combatentes da liberdade da Pátria, de gente que recebe neste momento, no mínimo cerca de sete salários mínimos como subsídio sem contar os outros benefícios e que nem sequer está no desemprego. Ninguém duvida que por detrás da tão ufanosa quão despropositada e descabida declaração estará uma agenda política (que configura virtual amiguismo ou mesmo nepotismo) que os eleitores do MpD desconheciam (ou desconhecem) e que não votaram.

Esperemos todos que para além de se concordar ou não com mais benesses aos combatentes da liberdade da pátria, haja bom senso e discernimento para se pensar primeiro nos doze meses de salários anuais dos funcionários públicos e dos pensionistas do Estado entre preocupações sociais bem urgentes. Não se trata de saber se a declaração do ministro tem peso (impacto) ou não no Orçamento do Estado, mas do sinal que dá do seu significado na hierarquia das prioridades do Governo.

Com toda a franqueza, isto não pode ser agenda do MpD!

Um outro exemplo que mostra a assumpção de declarações insólitas de efeito contrário mas não menos surpreendentes é a feita pelo PM cessante quando confessou publicamente estar a Administração do Estado toda partidarizada. Mau grado ser uma verdade de La Palice, ao ser dita pelo próprio PM parece ter sido um objectivo planeado e atingido. “Ufanar-se” deste feito depois de 15 anos ininterruptos de governação (mentor e executante) não parece curial. Ninguém percebeu os motivos que estiveram subjacentes a tão bombástica como surpreendente declaração. Tem aspectos masoquistas como também sádicos. Por um lado, porque a partidarização do aparelho do Estado só constitui objectivo, porque é seu fundamento, num regime de Partido Único sendo em democracia uma desavergonhada e inadmissível perversão. Por isto não deve o seu feito – e o PM seguramente que o não espera – merecer aplauso de nenhum democrata.

Por outro lado, pode ser um sério aviso para o sucessor antevendo e deleitando-se, a priori, e com algum sadismo, as dificuldades que um novel PM terá em desmantelar um edifício que ele orgulhosamente erigiu.

De todo o modo foi um péssimo serviço que prestou ao País com a promoção do regresso “democrático” a um passado de má memória em que se tinha que jurar lealdade e fidelidade ao PAIGC e depois ao PAICV para ingressar na Administração do Estado.

Caminhamos seriamente para uma porta muito estreita. É preciso tomar consciência das manobras adversárias. A defesa do Partido único pode começar a ganhar forma e assumir-se com uma outra dimensão: a dos partidos da governação não serem mais do que duas facções ou correntes dentro de um mesmo “partido” como alguns, jocosamente, já o adiantam.
Impõe-se, pois, uma séria análise nosológica do funcionamento dos nossos partidos políticos incidindo sobre as cumplicidades e as promiscuidades.

Confesso que a apresentação no Parlamento do Programa do Governo bem como a sua defesa trouxeram-me alguma tranquilidade, ao caracterizar um MpD fiel aos seus princípios fundadores e ao estabelecer uma clara e nítida dicotomia de programas, de projectos de sociedade e de objectivos entre os dois partidos da governação inclusive no de assumpção inequívoca da cabo-verdianidade.

Creio, e aqui reside toda a minha esperança, que as bases do MpD e os seus deputados, estarão atentos e não aceitarão qualquer aliança espúria e oportunista feita do topo para a base bem à moda do ‘centralismo democrático’.

A. Ferreira

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Por todas as razões expostas e bem escalpelizadas neste artigo é que actualmente atingi um ponto de saturação, algo ainda indeterminado mas cada vez mais consciente, relativamente à estirpe de gente que ciranda pela coisa política. Em Portugal, são raros os colunistas e fazedores de opinião que já me merecem atenção, farto de banalidades, discursos redondos, ambiguidades e autênticos atentados à inteligência (e paciência) do leitor. Debates, fujo deles, sessões na Assembleia Legislativa, a mesma coisa. Fico assim com mais tempo para ler alguma coisa de quem merece ser lido e selecciono criteriosamente os programas televisivos que não me faíscam nas meninges. Tenho-me deliciado com os programas do arquivo do José Hermano Saraiva, sobre História, e frequento programas de alguns canais sobre Ciência e História, sem esquecer que o RTP2 é o mais decente dos canais generalistas portugueses.
Quanto ao que se passa em Cabo Verde, não me desliguei ainda por três razões. Primeiro, porque a distância a que observo o que lá se passa faculta-me uma apreciação sem o impacto directo dos acontecimentos, ou seja, com algum amortecimento. Segundo, porque penso que desligar-se da coisa política cabo-verdiana é uma intolerável traição, é permitir que o arbítrio de alguns fique com rédea solta para o que lhes convém, embora longe de mim presumir que eu ou quem esteja fora possa alumiar por pouco que seja as sombras e incertezas que pairam sobre a nossa terra. A terceira razão é estar ligado a um grupo de cinco conterrâneos que discute sobre Cabo Verde, sendo-me impossível de momento libertar-me desse compromisso. O objectivo essencial da nossa pugna é que se faça uma profunda reforma do Estado que devolva mais poder às ilhas que bóiam na periferia de Santiago e que se poupe recursos onde é devido. Para mim, uma das reformas importantes seria extinguir as forças armadas e reconvertê-las em forças de segurança, terrestre e marítima.
É lastimável a inoperância das forças de segurança e da Justiça e a placidez dos serviços públicos em geral. Quanto ao exército cabo-verdiano propriamente dito, é um autêntico desperdício de recursos, cuja evidência só nos assombra quando acontecem casos trágicos como os do Monte Tchota.
Eu também tenho um vago pressentimento de que os dois principais partidos podem ser as duas faces do mesmo partido único. O José Maria congratulou-se, espantosamente, com a partidarização da administração pública, sabendo ele, ou pelo menos prevendo, que o seu partido ia deixar o perder? Não será isso o reconhecimento da relatividade da fronteira entre um e outro partido?
Bem, ficaremos a aguardar os próximos acontecimentos da governação. Mas não é auspiciosa essa declaração pública de um membro do governo sobre a melhoria das condições de vida dos libertadores da pátria. Grande prioridade nacional!

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