Junho e Julho são os meses das independências
das antigas colónias portuguesas de África, com excepção de Angola e
Guiné-Bissau por razões que bem se conhecem. A de Moçambique é já a 25 de
Junho, a de Cabo Verde a 5 de Julho e a de São Tomé e Príncipe a 12 do mesmo
mês. O período que antecedeu a estas independências foi vivido com grande
intensidade em Portugal sob o lema da “descolonização”.
Não foi fácil, nem simples, nem isento, nem linear, nem transparente. Bem ao
contrário, foi um período muito conturbado, truculento, nebuloso, doloroso ̶ para
centenas de milhares ou mesmo milhões de portugueses ̶ e de
festa (para outros tantos) da História de Portugal com as suas colónias de
África. Este período, em que quase tudo se decidiu para as então colónias foi
apelidado, no seu auge, de “Verão Quente”
que depois deu lugar ao PREC (Processo Revolucionário Em Curso), que só
terminaria a 25 de Novembro de 1975. É sobre ele que recuperamos, por nos
parecer oportuno ̶ estamos a celebrar as independências ̶ recordar esse tempo
da nossa História comum, um pequeno artigo de autoria de Helena Matos, publicado no
“Público” em 2004 que, com a devida vénia, a seguir transcrevemos:
A
descolonização é o principal e quase exclusivo tópico da agenda política de
Portugal nesse Verão de 1974, em que, recorde-se, o país está ainda muito longe
do clima revolucionário das ocupações e nacionalizações que o há-de
caracterizar meses depois. Antes pelo contrário, as greves são frequentemente
apresentadas como reaccionárias pelo PCP e pelo MFA, sublinha-se mesmo que os
trabalhadores portugueses são, na Europa, dos que usufruem horários mais
reduzidos e mobilizam-se os trabalhadores para trabalharem um domingo,
oferecendo o salário desse dia “à Nação”. A revolução podia esperar. A
descolonização não. A expressão “acelerar o processo de descolonização”
torna-se recorrente, após o 28 de Setembro, nas páginas dos jornais, na boca
dos responsáveis, e alinhava-se, numa desconcertante harmonia, ao longo das colunas
dos mesmos periódicos que garantiam semanas antes que Angola teria direito a
três deputados na futura Assembleia Constituinte. Pura esquizofrenia é talvez a
expressão que melhor define a forma como nesse Verão de 1974 os jornais
portugueses acompanham o que acontece nas então colónias portuguesas:
celebra-se a sua libertação do colonialismo português e simultaneamente
apresenta-se como positivo entregar os destinos desses povos e territórios a
líderes não só fortemente antidemocráticos como até, em alguns casos, a
movimentos recompostos na urgência da anunciada independência. A este título é
exemplar o caso do MPLA que em Agosto de 1974, se reunia em Lusaca para “in
extremis” conseguir apresentar um líder e sanar as profundas divergências entre
Agostinho Neto, Mário de Andrade e Daniel Chipenda.
Com a mesma
reverência com que durante décadas reproduziram as declarações de Salazar, os
jornais portugueses enchem, nesse Verão de 1974, páginas e páginas com
declarações oficiais. Mas com a diferença substancial de que já não existia
censura. Nesse Verão de 1974, sem sombra de lápis azul a cortar-lhes alguma
observação menos adequada, os jornais portugueses transformaram-se numa espécie
de imenso “Diário da Manhã” (jornal de propaganda do salazarismo). Uma das
traves mestras desta imprensa de propaganda é a tese de que África estava a ser
libertada e quando alguma notícia sai desta versão oficial é evidente a
dificuldade da nova classe política portuguesa em lidar com jornalistas que se
assumam como jornalistas e não como amigos, companheiros ou camaradas.
Recorde-se,
por exemplo, a entrevista que Vasco Gonçalves dá à BBC em Setembro de 1974, e
em que é patente o seu desconforto pela cobertura que a BBC fizera da revolta
de Lourenço Marques: “A BBC era uma fonte de informação séria no regime
anterior ao 25 de Abril. (…) Ora, aquando da rebelião em Lourenço Marques ,
a BBC deu guarida às afirmações, mentiras e calúnias que esse grupo de
mercenários e criminosos atirava para o ar através do Rádio Clube de Moçambique,
que tinha ocupado.”
Antes pelo
contrário, da imprensa portuguesa pouco tinha Vasco Gonçalves para se queixar.
De facto, fora como “mercenários e criminosos” que sumariamente foram rotulados
por boa parte da imprensa portuguesa aqueles que contestaram quer os acordos de
Lusaca quer todos os outros acordos que definiram as condições da independência
das colónias. Nesta linha mais de propaganda do que de informação, os jornais
portugueses, ao mesmo tempo que faziam títulos como “Libertar o povo de Cabo Verde
das grilhetas colonialistas”, atiravam, para o final destas empolgadas
notícias, umas breves e veladas referências à contestação pelos cabo-verdianos
desta independência que os amarrava à Guiné. Mesmo questões simbolicamente tão
importantes quanto a reabertura do campo de concentração do Tarrafal são
votadas ao silêncio. Aliás, não deixa de ser significativo que ainda hoje
raramente se refira que o Campo do Tarrafal foi reaberto pelas autoridades portuguesas
após o 25 de Abril, para aí serem internados vários cabo-verdianos que se
opunham ao PAIGC. Note-se, contudo, que o destino destes presos foi apesar de
tudo melhor que aquele que foi reservado aos comandos guineenses que haviam
integrado o exército português: enquanto estes presos cabo-verdianos do Tarrafal
vieram para Portugal, em 1975, com as últimas tropas portuguesas, o fuzilamento
foi o destino de muitos dos comandos guineenses.
Os
portugueses não queriam ver estragada a sua festa e estavam dispostos a fechar
os olhos àquilo que a conspurcasse. Inicialmente Portugal não quer ouvir falar
de ponte aérea entre as antigas colónias e Lisboa. A própria ajuda
internacional para os refugiados começa por ser recusada com receio de que
imagem de Portugal seja prejudicada.
Enquanto
eles não se deitaram à espera de nada no aeroporto da Portela, enquanto não se
lhes viram os filhos brancos, pretos e mulatos, enquanto não se lhes viram as
mãos e o rosto marcados pelo sol de África, foi fácil estigmatizá-los na figura
do grande explorador racista, de chicote na mão. E uma vez chegados a Portugal,
muitos deles vão conseguir mais facilmente um subsídio ou alojamento pago pelo
Estado português em hotéis de luxo do que inscrever-se num sindicato ou ter
acesso a um emprego nas empresas nacionalizadas. Eles não podiam ter sido
simples trabalhadores. Eles tinham tido de ser capitalistas. Há escolas em que
se aprovam moções contra a admissão de professores vindos das ex-colónias dado
o seu reaccionarismo. Como claramente intuiu Gabriel García Márquez nas
reportagens que, em 1975, faz em Portugal: “Uma má solução em Angola obrigará
ao regresso a Portugal de 600 mil colonos ressentidos, que irão reforçar as
fileiras da reacção e criar conflitos económicos.” Empenhado e militante,
Gabriel García Márquez sabia que esses refugiados, a que ele chama “colonos
ressentidos”, serão um forte borrão de dor nesse universo festivo que ele e
tantos outros jornalistas desenhavam da revolução dos cravos. Dessa revolução
em que se usaram flores em vez de balas. Em que não houve vítimas… Quando eles
chegaram, estragaram a festa. No desespero que traziam estampado nos olhos, os
portugueses viram o reverso das utopias libertadoras. Desconheço se a imagem
dos seus caixotes arrumados ao longo do Tejo terá contribuído para que algumas
chefias militares e políticas que tinham fechado os olhos à catástrofe da
descolonização resolvessem dar por encerrado o PREC. Mas independentemente dos
motivos que tenham detonado as acções de cada um dos protagonistas, encontramos
um bizarro fio teimando em ligar a agonia de Angola ao destino de Portugal:
catorze dias depois de o alto-comissário português em Angola ter entregue
simbolicamente o poder ao povo angolano tinha lugar, em Portugal, o 25 de
Novembro. A festa acabara em Portugal. Em África, a farsa podia continuar. (Fim
de transcrição)
*Título da nossa responsabilidade
2 comentários:
Na verdade, com o 25 de Novembro se pôs termo à rebaldaria em Portugal e quem, como eu, estava nos quartéis respirou de alívio. Mas há um facto curiosíssimo sobre o qual não se tem reflectido. Cheguei de Moçambique em Julho e surpreendi-me por verificar que a maioria da aspirantada colocada nos quartéis era marxista, trotskista ou maoísta. Claro que quem, como eu, remava contra a maré da indisciplina, passou maus bocados (panfletagem, contestações, tentativas de insubordinação dos soldados, etc). Porém, e estranhamente, a seguir ao 25 de Abril, os marxistas, trotskistas e maoístas desapareceram milagrosamente. A partir dessa data, a rapaziada se tornou quase toda ela politicamente silenciosa ou conservadora. Nunca mais tivemos problemas. É por esta e por outras que me pergunto várias vezes se este povo não é cobarde do ponto de vista cívico, como na altura disse o ditador Franco quando soube da revolução lusa. A mesma pergunta coloco em relação ao comum dos jornalistas, que repentinamente se adaptaram à nova situação, despedindo o discurso extremista e radical de esquerda.
De que é que essa gente (por exemplo, aspirantada e jornalistas, só para citar estes) tinha medo para passar por aquilo que se calhar nada tinha a ver com as suas pessoas? É este fenómeno (o da cobardia cívica ou simplesmente inconsciência) que merece ser objecto de estudo.
Só que as consequências da dita rebaldaria foram trágicas para os povos das antigas colónias. A imposição das independências em pleno Verão quente tinha forçosamente de acabar mal. E o mal continua a fazer o seu caminho com os rostos mais diversos.
Rectifico esta seguinte passagem do meu comentário, em que, por lapso, escrevi 25 de Abril em vez de 25 de Novembro: "Porém, e estranhamente, a seguir ao 25 de Novembro, os marxistas, trotskistas e maoístas desapareceram milagrosamente.
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