SENTIMENTOS
RETROACTIVOS
Aquela
“rapariga branca”
De vez em quando, acordo de madrugada e
sou repentinamente assaltado pela recordação de episódios remotos da minha vida.
Guardados na memória, de onde nunca saíram nem se deliram nos seus pormenores, estão
arrumados em prateleiras que a mente constrói para não colapsar sob o peso do
quanto vai sendo acumulado.
Em Julho de 1967, era, desde há quase dois
anos, comandante de um pelotão no Leste de Angola (Zona de Intervenção Leste),
que se tornara de intensa actividade de guerrilha, a partir do momento em que o
MPLA resolveu abrir a chamada “Frente Leste”, reduzindo a pressão no Norte. No
decurso de várias acções, diferidas no tempo, o meu pelotão havia perdido em
combate duas praças, um cabo e um soldado, e sofrido dois feridos com alguma
gravidade, mas que regressaram à actividade depois de hospitalizados e
recuperados. O pelotão, que era independente, isto é, não integrado em
companhia, estava de reforço a um batalhão sediado num lugar que se chamava
Gago Coutinho, hoje designado Lumbala Nguingo.
Por essa altura da nossa comissão, entendendo
os comandos superiores que as tropas da zona já tinham a dose suficiente de desgaste
físico e moral, foi ordenada a sua rendição e transferência para região mais
tranquila. O batalhão foi para as zonas de Benguela, Lobito e Moçâmedes, onde
não havia guerra, e o meu pelotão para Luanda, integrando a Reserva da Região
Militar de Angola. Foi assim que deixámos o mato e rumámos a Luanda, num
percurso terrestre de quase dois mil quilómetros, tendo ficado aquartelados no
Campo Militar do Grafanil, uma mega infra-estrutura militar localizada nos
arredores daquela cidade. Para trás ficaram dezanove meses de isolamento e
constante tensão psíquica.
No Grafanil, ficámos disponíveis para a
escala de missões de escolta a colunas de reabastecimento para a Zona de
Intervenção Norte. Mas foi sol de pouca dura a permanência em Luanda. Um mês
depois, éramos transferidos para a Fazenda Tentativa, um colossal empreendimento
agro-industrial, cerca de sessenta quilómetros a norte de Luanda. A Fazenda
Tentativa integrava uma extensíssima plantação de cana-de-açúcar, cujos
canaviais se espraiavam pelas margens do rio Dande, e uma fábrica para a
transformação no produto final – o açúcar. Tudo isso pertencia à Companhia de
Açúcar de Angola, que exportava o produto para todos os cantos do império. Nunca
tinha visto um empreendimento daquela extensão, possuidor de muitas valências e
autónomo nas suas funcionalidades orgânicas e sociais. Com efeito, a Fazenda
possuía apoio sanitário próprio, igreja, hospital, farmácia, laboratório de
análises, escola, um cinema ao ar livre, e até um improvisado campo de futebol.
A infra-estrutura fabril, com vários armazéns, era enorme e debitava
continuamente na sua função de produzir açúcar e outros derivados, mas com o
inconveniente de poluir o ar com a fuligem das suas chaminés, conspurcando as
roupas de quem estava nas imediações. A cana crescia livremente nos extensos
hectares formando um matagal intransponível, a qual, depois de cortada, era
transportada em pequenos vagões que rolavam por carris de ferro puxados por
tractores desde o local da colheita até à fábrica.
A mão-de-obra agrícola era privativa,
instalada num grande aldeamento tipo roça, constituído
por modestas habitações de alvenaria para alojar os trabalhadores e suas
famílias, que seriam de muitas centenas se não milhares. A direcção e os
funcionários dos serviços administrativos viviam em moradias com os requisitos
normais de conforto. Enfim, aquele complexo surpreendia pela sua grandiosidade
e pela modernidade da sua concepção, embora se questione a óbvia exploração da
mão-de-obra barata que era garantida pela população indígena, e também por
cabo-verdianos, que suponho terão ido para Angola com contratos que não
difeririam muito dos das roças de S. Tomé no que concerne à questão laboral.
Tinham, é certo, habitação e assistência sanitária, e eram-lhes fornecidos alguns
géneros alimentícios essenciais (farinha, peixe seco, óleos), mas a remuneração
monetária era indubitavelmente de valor irrisório, como viria a saber.
Em instalações adaptadas dentro do
perímetro da Fazenda, encontrava-se sediado um comando de batalhão, apenas com
uma das suas companhias orgânicas, estando as restantes três aquarteladas no
Grafanil. Esse comando de batalhão exercia o comando de um subsector militar naquela
região, o qual integrava ainda duas companhias de origem diferente, instaladas,
respectivamente, na vila do Caxito e na localidade das Mabubas, onde havia uma barragem
hidroeléctrica.
Toda esta sucinta descrição serve para
introduzir o que vem a seguir, que é do foro mais íntimo. Na Fazenda Tentativa,
onde reencontrei alguns camaradas alferes que eu já conhecia, por terem
embarcado comigo para Angola na mesma viagem do navio Vera Cruz, ao tempo
transformado em transporte de tropas para a guerra do Ultramar, foi-me
proporcionado algum retorno à “civilização”. No entanto, apesar da situação de
descompressão que passámos a fruir, fomos empenhados em certas missões, como
aconteceu com a protecção militar à safra do café na região de Uíge e a
ocupação durante um mês do destacamento militar da Barra do Dande, junto ao
mar.
Depois da minha chegada à Tentativa, soube
logo que havia dois cabo-verdianos funcionários dos serviços administrativos da
Fábrica, ambos naturais de Santo Antão e pertencentes a duas famílias
conhecidas da Vila da Ribeira Grande, respectivamente, de apelidos Medina e
Benrós, com os quais viria a estabelecer contacto e relações pessoais, tendo,
inclusivamente, sido convidado para o almoço do dia de Natal em casa do Benrós,
que era casado. Ambos eram bem mais velhos que eu, pelo que não havia um
conhecimento pessoal que remontasse ao tempo do liceu Gil Eanes.
Certo dia, um alferes disse-me: − “Lima,
há uma rapariga cabo-verdiana branca entre os pretos do aldeamento dos
trabalhadores. Ela é mais ou menos da nossa idade e parece que vive com um
deles. Destoa completamente naquele meio”. Respondi-lhe que podia, de facto,
dar-se o caso que lhe atraiu a atenção, já que em Cabo Verde o processo da
nossa miscigenação ocasionou e continua a ocasionar os mais diferentes tipos
étnicos, embora com predomínio da cor escura. Mais adiantei que na nossa terra,
dum modo geral, o comum das pessoas não interioriza a cor da pele como um
factor de diferenciação social, sendo até vulgar verem-se pessoas de cor branca
em condição muito modesta e outras de tez escura bem instaladas na vida. Prestado
este esclarecimento, o tempo foi fluindo, entre as rotinas da vida militar e as
horas de ócio. Um dos passatempos era o jogo de cartas, em que o
tenente-coronel comandante participava. Bracarense, era homem de poucas palavras
e pouco aberto a elucubrações, fossem elas de teor genérico ou, muito menos
ainda, de natureza política. Mas um dia, a dado passo da conversa, teve este
desabafo: “ Estamos aqui desterrados a guardar tudo isto, que não passa de um
negócio de exploração de mão-de-obra barata para não dizer escrava. Os donos
vivem principescamente nos seus palacetes no Estoril e em Cascais e estes
desgraçados são pagos com uma macheia de farinha e um salário miserável”.
Surpreendeu-me ouvir isso de quem ostentava um ar sisudo do alto da sua
avantajada estatura.
Aconteceu que, certo dia, estando eu em
frente da instalação que funcionava como messe/bar para os oficiais,
apercebi-me de uma jovem mulher que vinha na companhia de outra igualmente
jovem. A diferença entre as duas é que uma era branca e outra escura, mas ambas
descalças e com vestes modestas, em tudo denunciando-se a sua condição social.
A branca poderia, como é normal em Cabo Verde, ser mestiça, mas as suas
características pouco ou nada o denunciavam. A outra, embora de tez escura, pareceu-me
do tipo cabo-verdiano, pelas feições regulares e até pela sua pose natural. A
branca susteve o passo e simulou continuar a conversa com a companheira, mas
ficando a olhar detidamente para a minha pessoa, pouco ou nada disfarçando a
curiosidade. Tal como eu soube que havia uma cabo-verdiana “branca entre os
pretos”, ela, provavelmente, terá tido conhecimento de que havia chegado um
oficial cabo-verdiano à guarnição militar. Por momentos, senti-me algo confuso porque
a mulher olhava-me da cabeça aos pés, ao passo que eu, pela discrição que me é
própria, não correspondia com igual desfaçatez, mas sem deixar de notar que ela
possuía um rosto atraente, de tez bem clara, feições regulares e cabelos
castanhos lisos e corridos. Seria ela a tal cabo-verdiana “branca” de que me
falara o meu camarada? Viria a saber que sim e que ela era do Fogo e vivia com
um natural da sua ilha, de outra cor de pele. Admiti que ela poderia estar a trabalhar
na Fazenda em trabalhos domésticos e não propriamente na actividade da fábrica
ou da plantação.
Tempos depois, estando eu no cinema da
Fazenda a ver um filme dos que ali se projectavam regularmente, verifiquei que
a jovem em causa e, supostamente, o marido, ou companheiro, estavam sentados
mais à frente e obliquamente ao sítio onde eu me encontrava. De novo, ela voltou
a incidir a atenção sobre a minha pessoa, virando constantemente a cabeça para
me olhar, pouco se importando com a presença do par ao lado. Houve mesmo uma
altura em que este se virou para olhar na mesma direcção, talvez estranhando
que a mulher persistisse naquela sua curiosidade.
Depois disso, não me recordo de ter
voltado a encontrar a rapariga no meu trajecto dentro do imenso espaço da
Fazenda. Até porque estive afastado da guarnição em duas missões diferentes e
prolongadas, como atrás referi. De vez em quando, percorria de jeep a área do
empreendimento, passando pelo vasto aldeamento dos assalariados, em tarefas
ligadas à fiscalização da segurança militar do perímetro. Será que no meu
íntimo a queria reencontrar, sabe-se lá movido por que instigações íntimas? Na
verdade, não a esquecera. Sei que arrisco a que se veja nas minhas palavras o
recalcamento de um inconfessável desejo secreto. Todavia, não houvera qualquer
contacto entre nós, sequer uma conversa, apenas uma silenciosa e tensa
curiosidade recíproca, ostensivamente assumida por ela e convenientemente
mitigada por mim. Mas é aí que radica uma arreliadora ambiguidade no meu
comportamento. Se lhe tivesse prestado uma especial atenção por causa da sua
cor, estaria a cair na mesma armadilha mental que o meu camarada alferes. Ambas
as raparigas que eu vi pela primeira vez frente à instalação da messe/bar eram
cabo-verdianas. O interesse que me poderiam despertar a mim, um cabo-verdiano,
só poderia ser em função do seu valor humano e não da cor da pele. Só que uma
delas, a branca, é que aparentou uma atitude de interesse focalizado na minha
pessoa, suscitado por mera curiosidade ou outro motivo. Daí eu admitir que
talvez pudesse ter tido um comportamento diferente para com ela.
A esse tempo, eu era um jovem tão discreto
como hoje sou por natureza, contudo sem a actual capacidade de introspecção,
fruto do posterior amadurecimento dado pelo tempo e de uma contínua reflexão
sobre o sentido da vida. Hoje, com outro suporte interior, tento reproduzir,
psicanaliticamente, e por mera hipótese, o que essa moça terá congeminado com
os seus botões ao avistar o alferes conterrâneo. Oriunda de uma terra em que as
diferenças étnicas eram quase irrelevantes nas suas consequências mais directas,
terá encontrado nas paragens onde passou a viver, uma realidade diferente. Percebeu
que havia discriminação pela cor da pele e que a estratificação social não era
indiferente àquela condição. No entanto, ela, branca, ou quase, estava entre os
“pretos”, sujeita ao mesmo fadário de pobreza e sonhos trancados. Com escassa
instrução escolar, estava condenada a viver irremediavelmente no mais baixo
patamar de vida, sem que a cor da pele lhe acrescentasse especial valia. Do
outro lado, via alguém de tez semelhante à dela e no entanto possuindo um
estatuto social diferente, vivendo entre os “brancos”. Porque é que, sendo
ambos filhos de terra minguada de recursos, viviam em realidades opostas? Que
oportunidades divergentes houve para justificar a deriva dos seus percursos de
vida? Claro que as respostas a estas perguntas são do nosso conhecimento. Os
trâmites da vida não são lineares, emaranham-se em teias que o destino tece ou
o homem lhe proporciona com as suas acções.
Pois, é pouco provável que a jovem
foguense, espírito simples, tenha entrado nesse intrincado campo de cogitações.
Naquela idade, os seus impulsos humanos seriam, certamente, tão instintivos e
naturais quanto eram então os do jovem alferes. Uma simples curiosidade feminina
apenas a terá movido, não a conseguindo conter dentro dos limites das
conveniências sociais, ignorando códigos de conduta mais sofisticados. Todavia,
hoje penitencio-me de não ter mandado bugiar as convenções ou a prudência que
me impediram de tomar a iniciativa de lhe falar para saber algo sobre a sua
vida, não necessariamente por causa dela ou por reacção à sua indiscreta
curiosidade, mas para saber dos nossos conterrâneos que ali trabalhavam de sol
a sol para angariar o sustento. Quem sabe prestar-lhe, a ela e a outros, algum
favor pessoal dentro das minhas possibilidades. Em boa verdade, os contactos na
Fazenda que me permiti foram com pessoas mais próximas do meu estrato social e
cultural. Era a atitude mais cómoda e mais conveniente para quem ainda andava
na incipiência do amadurecimento psicológico, mais atraído para o óbvio e o
senso comum, sem suficiente consciência de si para lançar âncora em fundos
abissais. Embora com o arcaboiço psicológico de quem já tinha convivido com a
Senhora Morte, o jovem Adriano ainda dormia a noite toda o sono tranquilo da
inocência e não acordava de madrugada assaltado por longínquas recordações de
factos e acontecimentos que não foram resolvidos em toda a plenitude da sua
humanidade.
Que é feito dessa jovem conterrânea branca,
pobre, de pés descalços, que me fitou demorada e enigmaticamente naquela manhã
africana e naquela noite no cinema? Provavelmente seguiu o mesmo destino
daquela terra martirizada pela guerra civil e pela selvajaria demencial. Deve
ter comido o pão que o diabo amassou, como tantas outras criaturas inocentes e
indefesas que sofreram penas e horrores por culpa directa ou indirecta daqueles
que as queriam “libertar”. Confortar-me-ia que ela tivesse regressado ao Fogo e
reconstituído a sua vida, quem sabe emigrando para a América ou outro destino
risonho, deliciando-se com a presença de netos como eu.
Quando, em Janeiro de 1968, deixei a
Fazenda Tentativa para embarcar de regresso à Metrópole, observei pela última
vez os extensos canaviais que se perdiam de vista no horizonte, ondulando ao
sopro da brisa. Da portentosa riqueza restam hoje apenas destroços, como pude
ver em imagens actuais obtidas através da net. Mas o esqueleto de toda aquela infra-estrutura
ali permanece como um fantasma que, após a morte física, se obstina em não
abandonar o mundo dos vivos. Foi certamente daqueles escombros de memória que emergiu
a imagem da conterrânea foguense para acordar o meu espírito na madrugada
passada, meio século depois.
Tomar, 1
de Agosto de 2016
Adriano
Miranda Lima
1 comentários:
O autor foi escrupuloso (ou teria tido medo momentâneo?) e nada fez para saber como vivia a "rapariga branca" sua conterrânea. Hoje deve arrepender-se.
Não o julgo mas... eu agiria diferentemente. Mesmo assim aplaudo o gesto e a narrativa que é, ao fim e ao cabo, um emocionante capitulo da vida de um homem
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