domingo, 4 de setembro de 2016
Por achar interessante o texto “A pessoa que ele é” aqui o publico com a devida vénia ao autor, cujos textos aprecio e que leio com alguma regularidade.  Bom Domingo para todos!

A pessoa que ele é
Amar os filhos porque são filhos, e não gostar das pessoas que eles são
Não sei se os leitores têm uma ideia da frequência com que fala dos filhos quem procura consultas de psicologia ou psiquiatria. Ainda que a razão mais imediata seja outra, mais cedo ou mais tarde estamos a conversar sobre eles e elas – como agora se diz, para não ofender as mentes politicamente corretas...
Na nossa vida, a partir do momento em que os rebentos aparecem, e até à morte, estão sempre dentro de nós, para o bem e para o mal. Há-os para todos os gostos: os porreiros, que não complicam nada a vida; os assim-assim, que têm fases complicadas mas depois vão ao sítio; e os muito chatos que nos xingam os miolos por tudo e por nada.
Em grande parte por nossa culpa; nossa, dos técnicos, que meteram na cabeça dos pais que os filhos são fotocópias genéticas. Passamos a vida a pensar: ”Mas o que é que eu fiz de errado para me sair esta prenda?” De vez em quando conseguimos respirar fundo e dizemos para outro progenitor: “Não ligues, já nasceu assim, não temos culpa nenhuma, os outros são diferentes, este é que nasceu 'com os pés para a frente'.”
Nunca mais me esqueço de um homem, já com 60 anos, que me procurou por uma situação que não tinha nada a ver com os filhos. Quadro de uma empresa, estava farto do que fazia e cheio de projetos diferentes para o futuro, mas hesitava sobre o que fazer, sobretudo por questões de lealdade a quem trabalhava com ele. Falámos algumas vezes neste contexto, até que um dia me perguntou se podia falar dos filhos. “Claro que pode!”
“Eu tenho dois filhos, já estão os dois a trabalhar, um já casou, o outro vive acasalado, tenho um neto e vem uma neta a caminho. Mas há uma coisa que me persegue desde há muitos anos. Não consigo ser igual com os dois. Claro que do ponto de vista material, não faço nenhuma diferença, sempre lhes dei o que podia e achava adequado. O senhor doutor tem filhos?” Disse-lhe que sim. “Então, se calhar, percebe o que lhe vou dizer, só consigo falar disto com a minha mulher e, felizmente, nunca atirámos culpas um ao outro. O mais velho, desde pequenino, sempre foi mais difícil, dormia pior, comia pior, não tivemos uma noite sossegada durante uns bons anos. Mas dissemos um para o outro: ”Isto vai passar.' A pouco e pouco, nem sei bem explicar como, comecei a sentir que havia uma barreira entre mim e ele, esforçava-me por quebrá-la, mas à mínima aproximação ele dava-me com os pés e à mãe também. Revoltei-me e culpei-me, acordei a meio da noite várias vezes a pensar nisto, mas com o tempo foi-se instalando uma coisa terrível para mim. Comecei a dizer para mim próprio que, se tivesse conhecido este tipo socialmente, não o aturava nem um minuto, e dei por mim a fugir dele, mas não deixando de cumprir as minhas obrigações de pai. O doutor percebe isto que lhe estou a contar?” E começou a chorar, convulsivamente. “Desculpe eu estar a chorar. É que não gosto da pessoa que ele é.”
José Gameiro in “Diário de um Psiquiatra”
(Revista “EXPRESSO” de 23/Abril/2016)


3 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Um dilema terrível vive o homem que se confessou ao médico. Felizmente, não tenho este problema. As minhas filhas não são cópias chapadas dos progenitores, nem uma é cópia da outra. O mesmo posso dizer dos netos.

Armindo Ferreira disse...

Não era minha intenção comentar este interessante e pertinente texto, embora sem novidades. Depois de alguma hesitação faço-o agora por dever de consciência. Percebo a expressão popularizada “nascer com os pés para a frente” como ser diferente, o que é lógico, pelo menos estatisticamente. Não deve é obrigatoriamente significar ser má pessoa, ter "mau feitio" ou mesmo algum trauma. E neste contexto apresento o meu caso familiar, que não sendo uma amostra significativa, desmente de certa forma a metáfora. Os meus dois filhos (uma menina e um rapaz, já mulher e homem com filhos) nasceram ambos com os “pés para a frente” (apresentação pélvica e sem “possibilidade” de cesariana). São bem diferentes um do outro e dos progenitores e são pessoas bem normais que eu escolheria, como outras pessoas amigas, para o meu convívio social mais próximo.

Armindo Ferreira disse...

Não era minha intenção comentar este interessante e pertinente texto, embora sem novidades. Depois de alguma hesitação faço-o agora por dever de consciência. Percebo a expressão popularizada “nascer com os pés para a frente” como “ser diferente” ou, melhor, "ter sido diferente" - o nascimento - o que é comprovado estatisticamente. Não deve é significar obrigatoriamente “má pessoa”, ter “mau feitio” ou mesmo ter algum “trauma”. E neste contexto apresento o meu caso familiar, que não sendo uma amostra significativa, desmente de certa forma a metáfora. Os meus dois filhos (uma menina e um rapaz, já mulher e homem com filhos) nasceram ambos com os “pés para a frente” (apresentação pélvica e sem “possibilidade” de cesariana). São bem diferentes um do outro e dos progenitores e são pessoas bem normais que eu escolheria, tal como o fiz para outras pessoas amigas, para o meu convívio social mais próximo.

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