Por
achar interessante o texto “A pessoa que ele é” aqui o publico com a devida
vénia ao autor, cujos textos aprecio e que leio com alguma regularidade. Bom Domingo para todos!
A
pessoa que ele é
Amar
os filhos porque são filhos, e não gostar das pessoas que eles são
Não
sei se os leitores têm uma ideia da frequência com que fala dos filhos quem
procura consultas de psicologia ou psiquiatria. Ainda que a razão mais imediata
seja outra, mais cedo ou mais tarde estamos a conversar sobre eles e elas –
como agora se diz, para não ofender as mentes politicamente corretas...
Na
nossa vida, a partir do momento em que os rebentos aparecem, e até à morte,
estão sempre dentro de nós, para o bem e para o mal. Há-os para todos os
gostos: os porreiros, que não complicam nada a vida; os assim-assim, que têm
fases complicadas mas depois vão ao sítio; e os muito chatos que nos xingam os
miolos por tudo e por nada.
Em
grande parte por nossa culpa; nossa, dos técnicos, que meteram na cabeça dos
pais que os filhos são fotocópias genéticas. Passamos a vida a pensar: ”Mas o
que é que eu fiz de errado para me sair esta prenda?” De vez em quando
conseguimos respirar fundo e dizemos para outro progenitor: “Não ligues, já
nasceu assim, não temos culpa nenhuma, os outros são diferentes, este é que
nasceu 'com os pés para a frente'.”
Nunca
mais me esqueço de um homem, já com 60 anos, que me procurou por uma situação
que não tinha nada a ver com os filhos. Quadro de uma empresa, estava farto do
que fazia e cheio de projetos diferentes para o futuro, mas hesitava sobre o
que fazer, sobretudo por questões de lealdade a quem trabalhava com ele.
Falámos algumas vezes neste contexto, até que um dia me perguntou se podia
falar dos filhos. “Claro que pode!”
“Eu
tenho dois filhos, já estão os dois a trabalhar, um já casou, o outro vive
acasalado, tenho um neto e vem uma neta a caminho. Mas há uma coisa que me
persegue desde há muitos anos. Não consigo ser igual com os dois. Claro que do
ponto de vista material, não faço nenhuma diferença, sempre lhes dei o que
podia e achava adequado. O senhor doutor tem filhos?” Disse-lhe que sim.
“Então, se calhar, percebe o que lhe vou dizer, só consigo falar disto com a
minha mulher e, felizmente, nunca atirámos culpas um ao outro. O mais velho,
desde pequenino, sempre foi mais difícil, dormia pior, comia pior, não tivemos
uma noite sossegada durante uns bons anos. Mas dissemos um para o outro: ”Isto
vai passar.' A pouco e pouco, nem sei bem explicar como, comecei a sentir que
havia uma barreira entre mim e ele, esforçava-me por quebrá-la, mas à mínima
aproximação ele dava-me com os pés e à mãe também. Revoltei-me e culpei-me,
acordei a meio da noite várias vezes a pensar nisto, mas com o tempo foi-se
instalando uma coisa terrível para mim. Comecei a dizer para mim próprio que,
se tivesse conhecido este tipo socialmente, não o aturava nem um minuto, e dei
por mim a fugir dele, mas não deixando de cumprir as minhas obrigações de pai.
O doutor percebe isto que lhe estou a contar?” E começou a chorar,
convulsivamente. “Desculpe eu estar a chorar. É que não gosto da pessoa que ele
é.”
José Gameiro in “Diário de um Psiquiatra”
(Revista “EXPRESSO” de 23/Abril/2016)
3 comentários:
Um dilema terrível vive o homem que se confessou ao médico. Felizmente, não tenho este problema. As minhas filhas não são cópias chapadas dos progenitores, nem uma é cópia da outra. O mesmo posso dizer dos netos.
Não era minha intenção comentar este interessante e pertinente texto, embora sem novidades. Depois de alguma hesitação faço-o agora por dever de consciência. Percebo a expressão popularizada “nascer com os pés para a frente” como ser diferente, o que é lógico, pelo menos estatisticamente. Não deve é obrigatoriamente significar ser má pessoa, ter "mau feitio" ou mesmo algum trauma. E neste contexto apresento o meu caso familiar, que não sendo uma amostra significativa, desmente de certa forma a metáfora. Os meus dois filhos (uma menina e um rapaz, já mulher e homem com filhos) nasceram ambos com os “pés para a frente” (apresentação pélvica e sem “possibilidade” de cesariana). São bem diferentes um do outro e dos progenitores e são pessoas bem normais que eu escolheria, como outras pessoas amigas, para o meu convívio social mais próximo.
Não era minha intenção comentar este interessante e pertinente texto, embora sem novidades. Depois de alguma hesitação faço-o agora por dever de consciência. Percebo a expressão popularizada “nascer com os pés para a frente” como “ser diferente” ou, melhor, "ter sido diferente" - o nascimento - o que é comprovado estatisticamente. Não deve é significar obrigatoriamente “má pessoa”, ter “mau feitio” ou mesmo ter algum “trauma”. E neste contexto apresento o meu caso familiar, que não sendo uma amostra significativa, desmente de certa forma a metáfora. Os meus dois filhos (uma menina e um rapaz, já mulher e homem com filhos) nasceram ambos com os “pés para a frente” (apresentação pélvica e sem “possibilidade” de cesariana). São bem diferentes um do outro e dos progenitores e são pessoas bem normais que eu escolheria, tal como o fiz para outras pessoas amigas, para o meu convívio social mais próximo.
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