Nótula ao Leitor
José Fortes Lopes,
natural da ilha de São Vicente, Professor universitário e estudioso da História contemporânea de Cabo Verde; dos acontecimentos que envolveram a independência,
(1975) e da emergência do regime Democrático (1990) nas ilhas. O autor fixa neste
ensaio um ponto de vista para o qual, convidamos o leitor a partilhar numa leitura que
esperamos reflexiva e crítica.
SUBSÍDIOS
PARA HISTÓRIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA DE CABO VERDE
Introdução:
Estes
Subsídios (em duas partes) têm por objectivo contribuir para uma melhor
compreensão da História Política Contemporânea de Cabo Verde.
Não
sou historiador nem cientista político, mas as circunstâncias e o meu
envolvimento cívico em prol de Cabo Verde, nomeadamente a minha ilha natal, S.
Vicente, tem-me levado por vias que no âmbito da minha actividade normal nem
imaginaria e nunca teria antecipado. Esta tarefa rouba do meu tempo, mas a
situação de Cabo Verde chegou a tal ponto de degradação social, cívica
intelectual e cultural que não deixa indiferente o menos justo dos cristãos,
que no passado teve a felicidade de conhecer um país que tinha muito para dar
certo, sobretudo boa gente, e encontra-se num impasse e em vias de se
inviabilizar. Assim, se puder contribuir para alguma reposição de Verdades e do
Bem, então a minha tarefa não é inglória. Este é o meu propósito e móbil.
Assiste-se
hoje a manipulações grosseiras da história, a omissão de factos e dados, a
exageros e inverdades e mesmo situações que configuram fraudes científicas do
ponto de vista do tratamento de material histórico. Fruto da guerra civil
ideológica e política ocorrida no arquipélago durante cerca de 60 anos, os
protagonistas do sistema partidarizado tentam, em função das conjunturas, colar
a realidade histórica às suas narrativas. A história política do arquipélago,
reescrita segundo os novos cânones partidários, resume-se, hoje, a uma
dialéctica entre os dois principais partidos, o PAIGC/CV e o MPD, que se
consideram demiurgos da nacionalidade, da liberdade e da democracia cabo-verdiana.
De acordo com os seus pontos de vista, a nação cabo-verdiana pura e
simplesmente não existia antes da independência ou da liberdade,
considerando-se os pais criadores. Criaram Homens Novos, numa Nova Nação que,
usando a lógica das suas teses, emergiu de geração espontânea, po isso somente
os militantes do PAICV e do MpD têm existência e legitimidade política e
histórica. Factos, personagens e dados importantes da história de Cabo Verde,
anteriores ou contemporâneos, mas não simpáticos para com as suas narrativas,
são assim pura e simplesmente apagados. Cidadãos e comunidades que não lêem o
mundo pelas suas narrativas são marginalizados ou desaparecem das narrativas.
Mesmo os que
contribuíram para que tais partidos
alcançassem o poder, podem cair na desgraça, ao passo que o número de heróis e
participantes nas lutas é inflacionado para gerir as novas clientelas
partidárias e impressionar os mais jovens, normalmente a faixa etária com menos
de 40 anos. Acresce que o centralismo pretende resumir todo Cabo Verde à ilha
de Santiago. ‘Faits divers’ locais transformam-se em eventos de dimensão
histórica nacional, ao passo que outros acontecimentos que marcaram a história
tornam-se irrelevantes e omitidos. Séculos da história de Cabo Verde não são
revelados ou tidos em consideração. A este fenómeno chama-se Revisionismo
Histórico, um aspecto típico de sistemas totalitários que pretendem manipular e
moldar as mentalidades de acordo com obediências ideológicas. Participam nesta
operação a sociedade inteira, mais precisamente, os médias, intelectuais e a
classe política que daí tira dividendos. Estaremos ainda numa situação
totalitária em regime demiocrático?
1-
A mitologia oficial sobre a paternidade da fundação de Cabo-Verde, da
independência e da democracia cabo-verdianas
Sobre
a história de Cabo Verde, duas leituras exclusivas e antagónicas estão a
perfilar-se no momento actual: a da Independência e do Patriotismo e seus
Heróis; a da Liberdade e da Democracia e seus protagonistas. Ambas
circunscrevem a história de Cabo Verde a um período bastante delimitado, cuja
génese é o nascimento do PAIGC, que se reclama de partido fundacional da
nacionalidade cabo-verdiana e consagra o seu protagonismo com a independência
política conquistada em 1975, sob a égide da luta armada no mato da Guiné,
denominada Luta de Libertação Nacional, embora em solo estrangeiro. Depois, com
a cisão ocorrida no seio do PAIGC em 1980, nasce o PAICV, pondo-se termo ao
utópico e contranatura projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde, mas a perspectiva
ideológica mantém-se inalterável nos seus princípios e na sua prática. Mais
tarde, o ano de 1990 marcaria o fim da primeira leitura, a da Independência e
dos Heroísmos, com a queda do famoso artigo IV da Constituição de Cabo Verde,
que sustentava o regime do Partido Único, e consagrava o PAICV como luz e guia
de Cabo Verde.
É
a partir daí, com a liberalização do regime, que se abre o espaço para a outra
leitura, a da Liberdade e da Democracia, e de que se reclama o MpD, o partido
que se forma em 1990 com base em dissidentes do PAIGC original e uma maioria de
militantes saída do
PAICV. É assim que, em oposição ao
PAICV, o MpD considera-se o pai da “Democracia e da Liberdade”.
Estas
são, pois, as duas narrativas oficiais que, aparentemente, tendem a prevalecer
na actual historiografia cabo-verdiana, cobrindo um curto período de 60 anos no
máximo, desde 1960 (data do nascimento de movimentos nacionalistas na Guiné que
incorporavam Cabo Verde no seus propósitos, à actualidade). Todo o período
histórico anterior fica omisso ou encoberto em especulações de cariz
demasiadamente ideológicos. No entanto, entre as duas narrativas não há sequer
espaço para inserir a mais fina folha de papel. Acresce um fenómeno recente, as
narrativas revisionistas do Fundamentalismo originário de Santiago, estribado
no Centralismo Político e Cultural em voga em Cabo Verde, que vem ocupando
progressivamente todo o espaço das narrativas políticas, reescrevendo uma
versão da História, que usa ‘faits divers’ locais, trasformados em factos históricos
de dimensão nacional, ao mesmo tempo excluindo a contribuição do Norte de Cabo
Verde, nomeadamente a ilha de S. Vicente, o palco da História contemporânea de
Cabo Verde, dos últimos dois séculos. Eventos, factos e personagens oriundos
destas regiões são censurados e omissos deliberadamente e mesmo boicotados.
Há,
pois, de artificioso e falso nas narrativas actuais, já que demasiado
restritivas na interpretação da história e na análise sociológica do processo
de consciencialização político-cultural do homem cabo-verdiano. De resto,
costuma-se dizer que a história é escrita, ou reescrita, pelos vencedores e os
detentores do poder, e é por isso que o PAIGC/PAICV, o MpD e os
Fundamentalistas, cada um reclamando o seu quinhão de vitória, se julgam com direito
à sua própria narrativa fundacional e de tentar impô-las.
Sem
querer recuar muito no tempo para uma clarificação conceptual, bastará citar o
sociólogo, especialista da Emigração/Diáspora, Luiz Silva, quando afirma que
Cabo Verde não nasce no 5 de Julho, mas existiu muito antes. Silva defende que
Cabo Verde como nação, como conceito ideológico, nasceu na emigração /diáspora
com núcleos autónomos que cultivavam a sua cabo-verdianidade do local de
origem. Na realidade esta construção ocorreu durante várias etapas, ao longo
dos 500 anos da História de Cabo Verde, desde que se descobriu e povoou o
arquipélago.
Pode
considerar-se como acontecimento inaugural e simbólico do processo de
construção da nacionalidade cabo-verdiana, a criação da Cidade Velha na ilha de
Santiago, a primeira fundada por
europeus nos trópicos e que foi o pivot do tráfego de escravos africanos. Cabo
Verde cresce e floresce, pois, a partir do comércio transatlântico entre a
Europa e a América, contribuindo para o povoamento deste continente. Todavia,
as vicissitudes históricas, as condições climatéricas desfavoráveis e a
escassez de recursos naturais, não propiciaram as melhores condições para que o
arquipélago progredisse economicamente e crescesse demograficamente.
Na
verdade, até inícios do século XX, a população de Cabo Verde apenas atingia as
100 mil almas. Com a queda da Cidade Velha, nunca mais se constituíram centros
populacionais expressivos em Santiago até inícios do século XX. A própria
cidade da Praia, a capital administrativa, onde residia o governador e o seu
staff, até à data da independência não passava de um pequeno burgo com algumas
ruas, onde residia a burguesia local afecta à máquina administrativa, sem
infra-estruturas adequadas. Todo o resto consistia em populações rurais vivendo
na mais extrema pobreza, habitando povoados dispersos pela ilha e sem
significado.
Espanta
obviamente que a cidade da Praia fosse ainda em 1975 algo precário e carente de
vitalidade urbana, sendo ela a capital da colónia, onde residia o governador e
estavam sediadas as estruturas da governação colonial. Mas a única razão
plausível é que a cidade não possuía uma sociedade civil dinâmica, imaginativa
e produtiva, situação a que se acomodou o governo colonial. A cidade vivia
basicamente da empregabilidade assegurada pela administração pública à sua
elite, e a ilha subsistia dos magros recursos da agricultura de sustentação em
regime de sequeiro, num arquipélago no seu todo fustigado por secas e
emigração.
Em
meados do século XIX, com o povoamento de S. Vicente, a cidade do Mindelo,
graças ao Porto Grande e à presença britânica, torna-se o mais importante
centro populacional, económico, político, intelectual e cultural de Cabo Verde,
a metróple cabo-verdiana, com o reconhecimento da administração colonial e da
ex-Metrópole. O arquipélago torna-se de novo viável e autosufiente graças a
actividade económica desenviolvida no Porto Grande. A ilha de S. Vicente, à
escala de Cabo Verde, adquiria uma actividade económica, comercial e industrial
que lhe permitia o desenvolvimento de fenómenos tipicamente urbanos: lutas
sindicais, sociais e políticas, assim como actividades culturais e intelectuais
relevantes. Para ela afluem gentes de todo o arquipélago e da Metrópole, assim
como
estrangeiros, nomeadamente italianos e
judeus, que passam a incorporar uma sociedade civil dinâmica e criativa. É por
mérito exclusivo desta, que a ilha passa a destacar-se consideravelmente no
contexto do arquipélago, abrindo-se para o progresso e para o futuro e
introduzindo a modernidade no território. É nela que ocorrem os movimentos
literários e políticos do século XX, de que é exemplo mais destacado a
Claridade. S. Vicente é em todos os sentidos uma ilha de cultura liberal, não
sendo por acaso que é no seu chão que o 25 de Abril encontra eco no
arquipélago, acolhendo-o com incontidas explosões libertárias, enquanto o resto
de Cabo Verde passa praticamente ao lado dos acontecimentos. Desta maneira, com
o contributo activo do MFA, S. Vicente é que proporcionou as condições para a
instalação prematura em Cabo Verde do PAIGC e para a montagem do palco do
discurso libertador que haveria de condicionar o futuro do território e
influenciar a sua história (Continua em 2- Contestação da alegada paternidade
da independência e da democracia cabo-verdianas).
Janeiro
de 2017
José Fortes Lopes
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