Inesperadamente, sem que nada o pudesse
prever, eis que o roubo de explosivos, munições e outros artefactos militares detectado
nos paióis de Tancos, veio trazer mais combustível para o festim da comunicação
social. O tema das Forças Armadas, ou da Defesa Nacional, nunca ou raramente é
objecto de tratamento mediático sério e responsável, como se se tratasse de uma
simples excrescência no organismo nacional. Mas basta algo que saia da
normalidade para saltarem à ribalta opinantes de todo o tipo e perfil, com
explicações e juízos os mais variados, mesmo que não saibam a diferença entre
uma granada de mão ofensiva e uma granada de mão defensiva, invertendo as
características da sua letalidade, como aconteceu com um jornalista ou
comentador. Ou que chamem “armamento pesado” ao material roubado, como também
se ouviu a vários noticiadores.
Normalmente ficam pela espuma
dos acontecimentos, porque é onde podem meter o canudo para fazer bolinhas de sabão,
já que a química das matérias subjacentes não lhes interessa ou aí não funciona
aquele instrumentozinho de diversão. É intrigante como ninguém traz à baila a extinção
do Serviço Militar Obrigatório (SMO), aprovada num dos governos de Cavaco
Silva, que não conseguiu contrariar a pertinaz militância do então presidente
da JSD, Pedro Passos Coelho, em prol daquela medida. É que uma das causas,
ainda que indirectamente, da ocorrência em Tancos pode ter também uma relação
com a tremenda restrição de efectivos com que os comandantes das unidades
militares hoje se debatem para cumprir as tarefas mais básicas da sua
actividade orgânica. De igual modo, ninguém questiona os cortes orçamentais que
ao longo dos anos têm reduzido sucessivamente a capacidade operativa das
unidades militares. Só assim se explica que a reparação do sistema electrónico
de vigilância aos paióis em causa não tenha merecido uma resposta imediata.
Contudo, não é aceitável invocar aquelas
duas condições limitadoras como justificação, já que um paiol é área crítica
numa instalação militar, normalmente considerado “ponto sensível”, requerendo por
isso atenção prioritária no elenco das actividades internas. Se há avaria no
sistema de vigilância electrónico, cuja função é apenas adjuvante no conjunto
de medidas de protecção, os meios humanos têm de ser reconvertidos ou
reajustados à nova realidade, quer em número quer no modus faciendi operativo.
Certamente por assim pensar é que o General
Chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) entendeu que o problema era da estrita
responsabilidade das unidades militares envolvidas no processo de segurança a
esses paióis. “Exonerados temporariamente” das suas funções, esta medida é,
reconheça-se, inusitada nos cânones de procedimento, mas é sobretudo
indiciadora de uma violação do “Princípio da Unidade de Comando”, um dos mais
determinantes na arte da guerra. O coronel reformado David Martelo explica-o
bem no seu artigo O “Pentavirato” de Tancos e as Virtudes Perigosas, de
08/072017 (1). Com efeito, ao atribuir-se, em regime rotativo, a função de guarda
e vigilância àqueles paióis a cinco unidades militares diferentes, uma delas
fora do perímetro de Tancos (o Regimento de Infantaria 15, de Tomar), criou-se
uma condição propiciadora das seguintes consequências: tendência para a
diminuição da eficácia e rigor no cumprimento da missão, por não haver uma
única entidade supervisora e (re)avaliadora em permanência dos actos e
procedimentos da sua conduta; dificuldade de apuramento de responsabilidades
objectivas no espaço e no tempo certos.
Pois bem, a seguir aos fogos de Pedrógão
Grande rebenta esta bomba no seio da instituição militar e a oposição política,
esfregando as mãos de contente, vê desferir-se por mão invisível mais uma
machadada no estado de graça que muito justamente o actual governo vinha
gozando. A oposição aponta mais uma “falha do Estado” e insinua, se não
sentencia mesmo, uma óbvia responsabilidade do ministro da tutela, mas sem
explicar à puridade os pontos de conexão, no caso em apreço, entre a responsabilidade
operacional e a responsabilidade política. Sim, porque na verdade tudo o que de
mal ou bem acontece no país envolve teoricamente a figura do Estado. Temos tendência para ver o Estado como uma
abstracção, incapazes de perceber e inscrever sequer as nossas
responsabilidades individuais onde nos comprometam as nossas acções, as nossas
omissões ou as nossas demissões. A isto ninguém está imune, nem comunicação
social, nem governos, nem oposição, nem órgãos de execução, nem cidadão comum. Há
um colectivo comum de responsabilidades que nos obriga a rever de alto a baixo
a nossa prática cidadã, se quisermos valorizar o nosso estado de direito
democrático.
E é neste estado de confusão que o CEME
decidiu desarmadilhar a bomba política, assumindo a responsabilidade
institucional pelo assalto aos paióis, escudando assim o ministro mas expondo-se
a estilhaços.
Tomar, 10 de Julho de 2017
Adriano Miranda Lima (coronel do exército
na reforma)
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