Por se tratar hoje, de uma
data marcante para a Guiné-Bissau, segue - com a
devida vénia aos seus autores e ao jornal Público - um texto alusivo a esta
data.
Por Braima Mané
e Inácio Semedo*
1.Hoje, 24 de
Setembro, dia apelidado de “vitorioso” por alguns, vão-se multiplicar
cerimónias oficiais com declarações solenes e festas para celebrar a
independência da Guiné-Bissau — que é neste momento o país mais atrasado de
África e, consequentemente, do mundo.
Temos a palmilhar o nosso chão pátrio
um milhão e quinhentas mil almas, divididas entre pobres e miseráveis. São
excepção uns duzentos ou trezentos iluminados que nos têm mantido na mais
completa servidão, numa nova forma de colonização bastante peculiar e cínica,
porque é levada a cabo por quem deveria estar na primeira linha de defesa do
povo.
Em 44 anos de “independência”, o
Estado não foi capaz de cumprir com as suas funções essenciais para o bem
comum: prover educação, saúde, assegurar segurança e justiça. Na educação, há
toda uma geração que concluiu o ensino liceal que não sabe escrever nem falar
correctamente o português, em resultado de greves sistemáticas desde os anos
noventa e da falta de formação adequada dos próprios professores. Na saúde, a
situação é de tal ordem dramática que muitos recorrem a curandeiros por receio
das condições dos hospitais! Não há justiça nos tribunais porque os juízes ou
são corruptos ou são condicionados. Os crimes de sangue não são julgados nem
condenados. Os de lesa-pátria não são sequer considerados crimes e a impunidade
reina solitária!
As contas públicas não têm controlo
orçamental efectivo, e ocorre, com regularidade, o insólito de desvios de somas
avultadas (que podem atingir milhões de euros!), sem que haja uma instituição
idónea para investigar. Sem referir, ainda, que alguns senhores recebem de
pensão de reforma até cerca de dez vezes o seu salário na vida activa! Um caso
único no mundo e financiado, em certa medida, pela denominada “ajuda ao
desenvolvimento” a um país que prefere ser um eterno mendigo.
A corrupção está institucionalizada,
a droga chegou e não tem vontade de partir, a pedofilia está quase normalizada,
a gravidez na adolescência é frequente. Os valores de referência na sociedade
estão subvertidos e criminosos e bandidos tomaram o lugar de heróis — o crime
passou a compensar. Os valores da família e identidade enquanto povo estão a
ser aniquilados.
Com a sua agenda de iliteracia e
pobreza, os senhores de Bissau forçam grande parte do povo a acreditar que a
sua pobreza é destino de Deus, que o guineense está condenado a nascer, viver e
morrer pobre!
Além disso, somos, provavelmente, o único país
a ter dirigentes analfabetos, constituindo um enorme obstáculo ao progresso.
Como se tem visto, a mediocridade e a incompetência têm lugar cativo no topo da
hierarquia daquilo a que chamam Estado e que, sem surpresas, se tem limitado a
exercer uma gestão corrente letárgica, sem visão nem estratégia, durante estes
44 anos.
2. Nós temos
recursos mais do que suficientes para vivermos desafogadamente e não
continuarmos nesta indignidade de Estado pedinte.
Temos recursos naturais e marinhos,
fauna e flora diversas, além de muita chuva, sol e solo fértil. Mas continuamos
a importar grandes quantidades de arroz que, muitas vezes, é impróprio para
consumo! A manga é abundante, mas não é exportada, nem processada, apodrecendo
no pico do amadurecimento! A castanha de caju é exportada como matéria-prima,
mas não há indústria transformadora, geradora de emprego e de mais valor
acrescentado para a economia nacional.
Circulam nas nossas estradas
esburacadas e pantanosas carros topo de gama, nascem vivendas de luxo como
cogumelos em torno da capital, quase todos os governantes possuem bens no
estrangeiro, enquanto a população vive na miséria absoluta. Bissau de 2018 é um inferno comparado com
1974!
3. Como foi
possível chegarmos a esta situação?
A luta armada contra o colonialismo
estava no auge quando o líder e pai fundador, Amílcar Cabral, foi cobardemente
assassinado, às mãos dos seus irmãos guineenses. Escrevia-se, assim, o primeiro
capítulo do grande Manual de Ódio e Vingança que tem caracterizado o arco de
governação da nossa Guiné.
O partido que reclama os louros da
libertação nunca conseguiu fazer a devida separação entre um partido de
guerrilha e um partido democrático. E alberga no seu seio gente sem
competências, vingativa, e sem visão.
A alternativa tanto sonhada nada
renovou, pois não passa da emanação do cancro político, em forma de dissidência
e, muitas vezes, com pendor tribalista. Limita-se, em nome de interesses
inconfessos, a deambular ao sabor de conveniências, sempre que o sistema se
fragmenta, desvirtuando a vontade popular expressa nas urnas. Isto explica
porque em 24 anos do que chamam democracia nenhum governo eleito conseguiu
terminar o seu mandato!
A carta magna não é respeitada! Isso,
a nosso ver, porque existe uma manta de retalhos chamada Estado, moribunda e
corrupta, incapaz de assumir compromissos de pessoa de bem, e de garantir a
dignidade do título e da população que representa.
As próximas eleições, de novo,
dependentes de ajuda internacional, são mais um exercício de baralhar e ficar
na mesma. São festas em que tudo e todos entram menos o debate de ideias e
projectos. Só servem para os pseudopolíticos sorverem dinheiro em nome da
democracia, cujos valores renegam no rescaldo do plebiscito, com a chancela (ou
indiferença?) dos parceiros de desenvolvimento e da própria ONU. E mais de
quatro dezenas de partidos políticos para tão diminuto eleitorado! Por isso, a
haver eleições, ganhe quem ganhar, nós vamos perder sempre!
Conforme já mencionámos, temos um
país rico, a começar pelas próprias pessoas, que vivem harmoniosamente no
respeito mútuo das diferenças étnicas e culturais, caso único em África e,
talvez, no mundo. Além da beleza natural do continente e a singularidade do
arquipélago de Bijagós, uma das 200 reservas da biosfera do mundo, somos terra
de artistas, escritores e desportistas talentosos. País berço do Kora, temos
riqueza cultural e histórica ímpar, com o carnaval mais autêntico do mundo. E,
ainda, a diáspora, sem dúvida a franja de população melhor qualificada e
preparada, pode desempenhar um papel essencial no desenvolvimento do país.
Como povo, julgamos merecer gente
honrada e disposta a servir com sentido de Estado uma nação erguida à custa de
muito sangue, suor e lágrimas. Gente capaz de promover a democracia e o
progresso, com um ideal nobre e não oportunista.
Por isso, apresentamos uma proposta,
que constitui o projecto de uma nova nação, detalhada no documento “O que a
Guiné fez dos seus 40 aninhos”, acessível nas redes sociais.
A solução que propomos consiste em
estabelecer um Programa de Reforma
Institucional e Desenvolvimento, sob a égide da ONU, pelo período de tempo
necessário para a refundação do Estado e credibilização das instituições da
República, promovendo o tão adiado desenvolvimento económico e social.
No âmbito deste programa, e
obedecendo a critérios rigorosos de competência, experiência e idoneidade ética
e moral, dever-se-á nomear um representante, guineense, para formar e dirigir o
Governo de Refundação do Estado e criar um Parlamento ad hoc, com uma
representatividade expressiva da sociedade civil. Dever-se-á ainda constituir
uma Comissão de Verdade e Reconciliação, inspirada por Nelson Mandela, como via
para sarar feridas profundas que alimentam o ódio; acabar com vinganças recorrentes
e com o reino de impunidade, unindo o povo na sua caminhada em busca de paz e
progresso.
4. Acreditamos
que estabelecido um quadro institucional sólido, a nova nação guineense se pode
lançar na empreitada de desenvolvimento, bem delineada no referido documento,
podendo alcançar, em dez anos, o patamar de um país de desenvolvimento médio.
Ou seja, mais do que se fez em mais de quatro décadas.
Findo o período do programa poderá
ser possível lançar as sementes da alternância democrática por via de eleições
verdadeiramente livres, justas e transparentes.
*Dirigentes da Associação Movimento Cantanhez
In “Público” de 24.09.2018
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