quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Como é bom revisitar os textos de Henrique Teixeira de Sousa! São pedaços da nossa cultura, caldeados em informações credíveis e bem fundamentadas que dão gosto (re) ler.
Desta feita, fui ao jornal «Terra Nova» nº 318 de Maio de 2003  - periódico onde o distinto médico e escritor foi colaborador assíduo – repescar o texto, que se segue.
PRIMEIRA MORNA
H. Teixeira de Sousa
NHÂ DIXA-M

Odjo di nhâ é más doce
Qui uba tchon di Môstero
Graça di nhâ é más fresco
Qui sombra di mamosêro.

Refrão
Ái câ châ spiaâ-m
Nhâ dixa-m
Ca nhâ dá-m
Baria na coraçã.

Odjo di nhâ tem quel lumi
Qui stâ dentro vulcã.
Nhâ tenê moços di bila
Co baria na coraçã

Atribui-se a letra desta morna a Jorge Barbosa e a música a B. Leza. Ela foi composta em S. Filipe na década de trinta. Em que data exactamente? Fiz diligências para a precisar, mas não cheguei a conclusão inequívoca, nem sobre o ano nem sobre os autores da letra e da melodia. A primeira vez que a ouvi cantar, foi numas férias escolares, em S. Filipe, entre 1936 e 1938. Nessa altura, nem Jorge Barbosa, nem B. Leza se encontravam já na ilha, aquele como funcionário aduaneiro e este como funcionário dos correios e telégrafo. Sempre relacionei o aparecimento da canção com o regresso do colégio Bom Sucesso (Lisboa) de Ilda Medina Matos, minha antiga colega da escola primária. Na verdade, e com todo o respeito, esse regresso pôs em alvoroço os moços di bila. Ela viria a casar-se pouco tempo depois com João Barbosa de Matos, distinto funcionário administrativo, que serviu na Guiné, Cabo Verde e Moçambique, onde atingiu o posto de governador distrital. No Verão do ano passado, entrei em contacto telefónico com a minha amiga Ilda para conseguir alguma informação sobre o assunto. Ela informou-me de que regressou definitivamente do colégio, no Verão de 1938, data em que parti para Lisboa para frequentar a universidade. Ela, ao mesmo tempo, disponibilizou-se para me ajudar nessa pesquisa. Dias depois, enviou-me pelo correio, a letra e a música de Nhâ Dixa-m, que conseguiu junto de Abel Pires Ferreira. Mais uma vez, muito obrigado, Ilda. Isso veio acompanhado da informação de que na realidade foram Jorge Barbosa e B. Leza os co-autores da morna em causa. Em Setembro do ano passado, nos Estados Unidos, falei no assunto ao meu amigo Armindo Barbosa Vicente ao qual me apontou aquele poeta e aquele trovador, como os co-autores de Nhâ Dixa-m. Mais me disse. Que foi uma rapariga de Chã das Caldeiras, descendente do tronco Armand Mont’Rond, a musa inspiradora da morna em referência.
Existe outra versão. Que a letra teria sido de autoria de Mário Macedo Barbosa, primo, aliás, de Jorge Barbosa. Confesso ter estado sempre inclinado para a hipótese dum autor de cepa foguense. Porquê? Por motivo do estilo dos versos, tão foguense, que faz lembrar a poesia crioula de Pedro Cardoso. As imagens, a linguagem, o lirismo rude à Ana Procópio, também caracterizaram as criações de Mário Barbosa. A menos que Jorge Barbosa, na estadia no Fogo, tivesse assimilado essa expressão poética da ilha. Neste caso, o registo de nascimento da morna, arrecuaria para antes de 1938. Esta é outra hipótese, apesar do que atrás ficou dito.
Não estou a ver Jorge Barbosa a comparar a graça da diva com a sombra da árvore do mamão, espécie rara e apenas existente em zona muito restrita dos Mosteiros. Nem sei mesmo se ainda existe algum exemplar, após tantos e tantos anos de duras secas. Nem vejo, J.B. a tratar a moça por nhâ, tratamento tipicamente foguense, mesmo na abordagem amorosa, especialmente quando fosse grande a distância social entre o apaixonado e o alvo deste sentimento. Digo, fosse porque nos dias de hoje fica longe no tempo aquela sociedade classista doutrora. Ninguém, actualmente, dirige piropos a quem quer que seja, no estilo da morna em referência. Eis a grande evolução operada através dos anos.
Acaso tenha sido Mário Macedo Barbosa o autor da letra, e a melodia, outro natural da ilha, isso teria um significado muito especial para a história musical do Fogo. Até a década de 30 do século passado, não se conheceu nenhuma morna totalmente foguense, letra e música elaboradas por natural da ilha. B. Leza, mindelense de gema, compôs algumas mornas durante a sua estadia em S. Filipe, que teve início nos finais da década de vinte e se prolongou até os princípios da década de trinta. Mas ele não era foguense, culturalmente falando. As suas canções não mergulharam no húmus local. Está a parecer-me que Nhâ Dixa-m terá sido a primeira morna genuinamente foguense, feita por alguém retintamente vulcânico, tal como Brada Maria terá sido a primeira morna da Brava, pelo menos a mais antiga que se conhece, segundo Eugénio Tavares. As canções do Fogo eram o galope e a mazurca, e não a morna. Esta é a razão pela qual me interessei por Nhâ Dixa-m, cuja toada difere da de Nhâ Codé de Pedro Cardoso, ambas de estilo lírico sobreponível, porém de compasso musical diferente. Nhâ Codé é galope. Nhâ Dixa-m é morna. O ritmo paradigmático da ilha do Fogo é a Atalaia-a-Abaixo, canção que emerge do recesso mais fundo da alma daquele povo. Ouço-a sempre com muita emoção.
De resto, Eugénio Tavares, no seu livro MORNAS (cantigas crioulas) publicado em 1930, e no respectivo prefácio , diz:  ̶  «O poeta Pedro Cardoso, artista de mérito, não teve ainda a felicidade de ver as lindas letras das suas mornas, emolduradas em músicas originais.». Diz mais:  ̶  «Na ilha do Fogo, o compasso de polca serviu para cantar os amores de Nhô Dondon, nessa deliciosa toada de manchê, tão doce no ritmo quanto áspera e inexpressiva na letra». Em suma, em 1930, Eugénio Tavares não considerava o Fogo como ilha de mornas. Viria a havê-las mais tarde, quem sabe, como herança do estro de B. Leza cuja presença em S. Filipe terá sido decisiva nesse sentido.

In «Terra Nova» nº318. Maio de 2003.



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