Como é bom revisitar os textos de Henrique
Teixeira de Sousa! São pedaços da nossa cultura, caldeados em informações
credíveis e bem fundamentadas que dão gosto (re) ler.
Desta feita, fui ao jornal «Terra Nova» nº 318
de Maio de 2003 - periódico onde o
distinto médico e escritor foi colaborador assíduo – repescar o texto, que se
segue.
PRIMEIRA
MORNA
H. Teixeira de Sousa
NHÂ DIXA-M
Odjo di nhâ é
más doce
Qui uba tchon
di Môstero
Graça di nhâ é
más fresco
Qui sombra di
mamosêro.
Refrão
Ái câ châ
spiaâ-m
Nhâ dixa-m
Ca nhâ dá-m
Baria na
coraçã.
Odjo di nhâ tem
quel lumi
Qui stâ dentro
vulcã.
Nhâ tenê moços
di bila
Co baria na
coraçã
Atribui-se
a letra desta morna a Jorge Barbosa e a música a B. Leza. Ela foi composta em
S. Filipe na década de trinta. Em que data exactamente? Fiz diligências para a
precisar, mas não cheguei a conclusão inequívoca, nem sobre o ano nem sobre os
autores da letra e da melodia. A primeira vez que a ouvi cantar, foi numas
férias escolares, em S. Filipe, entre 1936 e 1938. Nessa altura, nem Jorge
Barbosa, nem B. Leza se encontravam já na ilha, aquele como funcionário
aduaneiro e este como funcionário dos correios e telégrafo. Sempre relacionei o
aparecimento da canção com o regresso do colégio Bom Sucesso (Lisboa) de Ilda
Medina Matos, minha antiga colega da escola primária. Na verdade, e com todo o
respeito, esse regresso pôs em alvoroço os moços
di bila. Ela viria a casar-se pouco tempo depois com João Barbosa de Matos,
distinto funcionário administrativo, que serviu na Guiné, Cabo Verde e
Moçambique, onde atingiu o posto de governador distrital. No Verão do ano
passado, entrei em contacto telefónico com a minha amiga Ilda para conseguir
alguma informação sobre o assunto. Ela informou-me de que regressou
definitivamente do colégio, no Verão de 1938, data em que parti para Lisboa
para frequentar a universidade. Ela, ao mesmo tempo, disponibilizou-se para me
ajudar nessa pesquisa. Dias depois, enviou-me pelo correio, a letra e a música
de Nhâ Dixa-m, que conseguiu junto de
Abel Pires Ferreira. Mais uma vez, muito obrigado, Ilda. Isso veio acompanhado
da informação de que na realidade foram Jorge Barbosa e B. Leza os co-autores
da morna em causa. Em Setembro do ano passado, nos Estados Unidos, falei no
assunto ao meu amigo Armindo Barbosa Vicente ao qual me apontou aquele poeta e
aquele trovador, como os co-autores de Nhâ
Dixa-m. Mais me disse. Que foi uma rapariga de Chã das Caldeiras,
descendente do tronco Armand Mont’Rond, a musa inspiradora da morna em
referência.
Existe
outra versão. Que a letra teria sido de autoria de Mário Macedo Barbosa, primo,
aliás, de Jorge Barbosa. Confesso ter estado sempre inclinado para a hipótese
dum autor de cepa foguense. Porquê? Por motivo do estilo dos versos, tão
foguense, que faz lembrar a poesia crioula de Pedro Cardoso. As imagens, a
linguagem, o lirismo rude à Ana Procópio, também caracterizaram as criações de
Mário Barbosa. A menos que Jorge Barbosa, na estadia no Fogo, tivesse
assimilado essa expressão poética da ilha. Neste caso, o registo de nascimento
da morna, arrecuaria para antes de 1938. Esta é outra hipótese, apesar do que
atrás ficou dito.
Não
estou a ver Jorge Barbosa a comparar a graça da diva com a sombra da árvore do
mamão, espécie rara e apenas existente em zona muito restrita dos Mosteiros.
Nem sei mesmo se ainda existe algum exemplar, após tantos e tantos anos de
duras secas. Nem vejo, J.B. a tratar a moça por nhâ, tratamento tipicamente foguense, mesmo na abordagem amorosa,
especialmente quando fosse grande a distância social entre o apaixonado e o
alvo deste sentimento. Digo, fosse porque nos dias de hoje fica longe no tempo
aquela sociedade classista doutrora. Ninguém, actualmente, dirige piropos a
quem quer que seja, no estilo da morna em referência. Eis a grande evolução
operada através dos anos.
Acaso
tenha sido Mário Macedo Barbosa o autor da letra, e a melodia, outro natural da
ilha, isso teria um significado muito especial para a história musical do Fogo.
Até a década de 30 do século passado, não se conheceu nenhuma morna totalmente
foguense, letra e música elaboradas por natural da ilha. B. Leza, mindelense de
gema, compôs algumas mornas durante a sua estadia em S. Filipe, que teve início
nos finais da década de vinte e se prolongou até os princípios da década de
trinta. Mas ele não era foguense, culturalmente falando. As suas canções não
mergulharam no húmus local. Está a parecer-me que Nhâ Dixa-m terá sido a primeira morna genuinamente foguense, feita
por alguém retintamente vulcânico, tal como Brada
Maria terá sido a primeira morna da Brava, pelo menos a mais antiga que se
conhece, segundo Eugénio Tavares. As canções do Fogo eram o galope e a mazurca,
e não a morna. Esta é a razão pela qual me interessei por Nhâ Dixa-m, cuja toada difere da de Nhâ Codé de Pedro Cardoso, ambas de estilo lírico sobreponível,
porém de compasso musical diferente. Nhâ
Codé é galope. Nhâ Dixa-m é
morna. O ritmo paradigmático da ilha do Fogo é a Atalaia-a-Abaixo, canção que
emerge do recesso mais fundo da alma daquele povo. Ouço-a sempre com muita
emoção.
De
resto, Eugénio Tavares, no seu livro MORNAS (cantigas crioulas) publicado em
1930, e no respectivo prefácio , diz: ̶ «O poeta Pedro Cardoso, artista de mérito, não
teve ainda a felicidade de ver as lindas letras das suas mornas, emolduradas em
músicas originais.». Diz mais: ̶ «Na ilha do Fogo, o compasso de polca serviu
para cantar os amores de Nhô Dondon, nessa deliciosa toada de manchê, tão doce no ritmo quanto áspera
e inexpressiva na letra». Em suma, em 1930, Eugénio Tavares não considerava o
Fogo como ilha de mornas. Viria a havê-las mais tarde, quem sabe, como herança
do estro de B. Leza cuja presença em S. Filipe terá sido decisiva nesse
sentido.
In «Terra Nova» nº318.
Maio de 2003.
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