Dada a ocasião – a celebração dos 75 anos do movimento “CERTEZA” – tomei a liberdade de aqui
transcrever com a devida vénia à autora, a Jornalista Otília Leitão e publicada por Joaquim Saial no blog. «Praia de Bote», uma entrevista, uma conversa, com
um dos organizadores - Nuno Miranda - daquele movimento literário, surgido em Mindelo, em 1944.
N. B. A entrevista foi feita em 2013. Embora já com algum tempo, o seu
conteúdo, ilustra de forma interessante e viva, o poeta, romancista e crítico
literário, Nuno Miranda, nascido em Mindelo em 1924.
Otília Leitão (Jornalista)
Sobre a secretária do seu escritório,
onde se resume uma vida, Nuno de Miranda, um cabo-verdiano sobrevivente da
revista “Certeza” de que foi co-fundador (1944) e editor do movimento
“Claridade” (1936), mostra-me um livro pronto a editar, “Fogo e Alimento”
(notas ensaístas), enquanto burila as palavras de um novo romance que começa em
Bragança, uma cidade transmontana de que gosta muito e, inevitavelmente, como
aliás toda a obra, vai perpassar Cabo Verde.
O escritor, natural de S. Vicente, e que
viveu um dos períodos mais agitados da política portuguesa como chefe do
protocolo e do gabinete de imprensa do Conselho da Revolução (1976 /79), segue
o fio da História, numa conversa que, pela sua sabedoria e lucidez, esmaga os
sinais da cronologia do tempo sobre a matéria humana - nasceu em 1924.
Deixa transparecer uma frescura
romântica quando, esboçando um sorriso, me aponta na estante: “esta pedrinha
(com uma flor em estanho gravada) pertencia ao espólio do antigo jornal “O
Século” que comprei à jovem que o vendia e por ela me apaixonei”. Ela é hoje
Natércia Miranda, uma distinta médica de saúde pública e que tem também obra
escrita na sua área profissional.
Na sua casa, num local calmo da cidade
de Lisboa apenas perturbado quando em dias de euforia do futebol no Estádio do
Benfica, ali perto, o poeta aceita o desafio de me levar ao imaginário do seu
mundo, pela palavra. É português de nacionalidade, a mesma que o arquipélago
cabo-verdiano possuía na sua época colonial mas, Nuno Álvares de Miranda, que
conviveu numa elite do regime do Estado Novo e prosseguiu na Democracia, é uma
evidência de que um ser humano tem múltiplas pertenças.
E é na simbiose de vivências que o poeta
revela em toda a sua obra e na sua postura actual a transparência da alma
cabo-verdiana, ou seja, a raiz ao espaço telúrico onde está enterrado o seu
umbigo. Desde logo, quando se lê “Cais de Ver Partir”, Lisboa, Orion, 1960, o
livro que um seu amigo, Alfredo Margarido, levou à editora de Orlando
Gonçalves, dono do jornal “Notícias da Amadora” - e o apresentou já publicado,
de surpresa. Com esta obra, Nuno Miranda ganhou o prémio literário Camilo Pessanha em 1961.
Deste livro e, por me parecer profundo e
significativo, transcrevo: “Os homens estão cansados/ das suas graves amarras/
são estáticos barqueiros, no seus mares decifrados. Os homens estão cativos/
sem qualquer explicação/ tensos de riba da onda/ vinda rolar do mais longe. Os
homens estão ancorados/ em sua nave incorpórea/ o rio ao largo a lembrar/ falas
de amor e segredo”.
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Voltou a ganhar o mesmo prémio, em 1964,
com “Cancioneiro da Ilha”, Braga, Ed. Pax, em paralelo com José Hermano
Saraiva, o famoso professor que já então se notabilizava em História,
distinguido com o prémio “João de Barros” pelo livro “Formação do Espaço
Português” (Boletim Geral do Ultramar, Fevereiro de 1964).
Nuno de Miranda foi condecorado pelo
Ministério das Relações Exteriores do Brasil, pelos “serviços culturais”
prestados e também pelo Instituto brasileiro de Antropologia da Amazónia. Foi
também distinguido pela Academia Brasileira de Letras, pela sua participação na
“Palavra de Poeta- África”, um projecto que englobou a faceta “Palavra de
Poeta-Portugal” e “Palavra de Poeta-Brasil”.
Considera-se “um conservador” para quem
escrever um romance em crioulo é “uma aberração”, pois “apenas será lido a
nível interno”, diz. As suas obras são em português, língua que a sua mãe,
professora, cultivava com exigência e rigor, proibindo que falasse o crioulo em
casa, mas “não na rua”, sorri.
Além da ficção “Cais de Pedra” (1989) e
do primeiro romance “Caminho Longe” (1974), o autor possui ainda outras obras,
quer em prosa, quer em poesia, sempre incluindo elementos da cabo-verdianidade:
“Gente da Ilha”, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1961; “Poema”, in Sul,
Florianópolis, 1954; “Recado”, in Cabo Verde, Praia, 1958; “Um poema do Cais de
Ver Partir”, in Cabo Verde, 1959; “Crepuscular” in Garcia de Orta, Lisboa,
1961; “O Chá”, in Cabo Verde, 1962.
Ao longo da sua carreira, em cargos
destacados do funcionalismo público - talvez o cabo-verdiano que mais alto
tenha subido durante o regime do Estado Novo - o poeta sempre escreveu artigos
na imprensa portuguesa e brasileira onde enaltecia a cultura cabo-verdiana. Tal
se pode apreciar em “A propósito do Pilão”, S. Paulo, 1941, e “A propósito da
Hospitalidade cabo-verdiana”, 1961.
Destaca-se um curioso artigo “sobre
educação e desenvolvimento em Cabo Verde” (1961) onde o autor dava conta do
número de alunos que frequentavam a universidade em Lisboa (34) e criticava o
“marcante predomínio pelas profissões ditas clássicas” (Direito e Letras).
“Será esta a propensão, aconselhada para o caso de Cabo Verde”, (...) na hora
em que se conjugam esforços de realizações que nos dizem serem adequadas para
subtrair a nossa terra e o nosso povo aos círculos tradicionais que trazem a
marca do flagelo?”, instava, ao mesmo tempo que concluía: “tudo indica que não
e o bom senso preconiza o desvio da referida propensão”.
Não contive uma gargalhada quando,
desfiando a memória, Nuno de Miranda “me transportou” ao Cais do Sodré lisboeta
onde, nos anos 50, vindo de Cabo Verde, foi comprar seis lagostas para oferecer
à pessoa que o haveria de encaminhar (Castro Fernandes, administrador do BNU),
à sua chegada à então Metrópole, com vista a prosseguir os estudos
universitários e arranjar emprego: “trouxe de Cabo Verde esta lembrança do meu
tio António, o médico, seu amigo...”, recorda, rindo-se do próprio episódio.
Instalado na capital portuguesa, aqui se
licenciou em Letras pela Universidade Clássica de Lisboa, áreas de Filosofia e
História, além de cursos de Visualização Artística, na ARCO e de Animação
Cultural, em França.
Foi numa das manhãs em que habitualmente
passava pelo Palácio Foz, na baixa pombalina, local onde à época se tomava café
e lia os jornais, que Nuno de Miranda se apercebeu da importância da sua
poesia, através de um homem, que mais tarde soube ser o jornalista e crítico
literário Luís Forjaz Trigueiros, que lhe terá perguntado: “Conhece Nuno de
Miranda? É que desde 1945 que procuro saber dele, pois Maria Barroso (mulher do
ex-presidente Mário Soares, naquela época declamadora) diz poemas dele!”.
“Fiquei surpreendido ao saber que sou o primeiro poeta cabo-verdiano a ser
declamado e disse: Sou eu!”.
E foi nesse deambular pelos centros de
tertúlia da cidade que conheceu personalidades com relevância em diversas áreas
do saber. E foi através do professor Almeida Lessa que chega ao professor
Adriano Moreira e este o admitiu na Junta de Investigação Científica do
Ultramar onde esteve entre 1958 a 1973.
Na sua sala de estar, de onde se avistam
verdes campos de ténis, e onde passa grande parte do dia, pela melhor
acessibilidade à musica e à televisão, são visíveis as fotos de família do
casal. Dos seus ancestrais, lá está a sua mãe, Maria Amélia (em honra da Rainha
D. Amélia), neta do seu bisavó originário de Loulé, Algarve.
Foi dela que herdou uma cultura pela
qual sempre se sentiu fascinado. “Um dia, lá em S. Vicente, o Eduíno Brito
Silva, chamou-me, aos gritos, para ver umas coisas que tinham chegado de
barco... Fiquei deslumbrado quando ele me pôs a ouvir as fadistas Amália
Rodrigues e Fernanda Baptista. “Decidi que queria viver em Lisboa...”, mas
tinha apenas o sexto ano e para prosseguir os estudos universitários era
preciso o sétimo ano, recorda o escritor, cuja força anímica o fez completar o
grau necessário, em apenas quatro meses. E, quando pensava estar pronto para
viajar para Lisboa, a família colocou-o no Banco Nacional Ultramarino, no
Mindelo, em Cabo Verde.
Do seu pai, João Baptista, que veio para
Lisboa aos nove anos para estudar e mais tarde foi para a Guiné, Nuno de
Miranda guarda a herança crioula. “Vivíamos bem em Cabo Verde, mas o sonho era
Lisboa e isso só foi conseguido, um tempo depois, mediante uma troca com outro
funcionário”.
Com uma vida muito preenchida ao longo
da história, ingressou na Direcção Geral de Comunicação Social como consultor
em 1966, na qual, três anos depois, foi Chefe de Secção de Realizações
Artísticas, lugar de grande satisfação por se relacionar com a arte através de
congressos e exposições que organizava.
Em 1984 foi a Mindelo e Praia para
apresentar a 1ª exposição de Gravura Portuguesa Contemporânea, em que pela
primeira vez Cabo Verde pôde ver trabalhos de Júlio Pomar, António Quadros,
Maria Keil, Nikias Skapinakis, Júlio Resende, Grechem Wohlwill, Sá Nogueira,
Maria Velez, entre outros. Para assinalar o doutoramento Honoris Causa do então
ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, na Universidade de Évora,
organizou a exposição de Literatura afro-lusa.
Nuno de Miranda organizou colóquios com
estudantes cabo-verdianos e lê-se no Boletim de Cabo Verde de Março de 1960 que
“aproveitando a passagem por Lisboa a caminho de Angola do Dr. Júlio Monteiro,
para assumir o cargo de Intendente Administrativo, Nuno Miranda fez reunir a 23
de Fevereiro desse ano, num dos anexos do centro de Estudos Políticos e Sociais
(...) estudantes universitários e mais elementos da colónia cabo-verdiana, para
serem informados de alguns aspectos da vida actual do Arquipélago”.
Jornalista na televisão e Emissora nacional,
foi demitido de redactor do Telejornal (1973) tendo a PIDE (polícia política do
regime de Salazar) posto um carimbo no despacho de demissão: “inconveniente o
seu ingresso nos quadros”.
O poeta soube do “25 de Abril”,
revolução que derrubou o regime ditatorial em 1974, quando vinha da sua casa em
Cascais para o Palácio Foz, percurso que estranhou nessa manhã estar deserto. À
sua chegada, num carro Mercedes, foi surpreendido com gritos chamando-lhe
“fascista!”. Lá dentro foi informado pelo director de que tinha havido um golpe
de estado.
Depois da designada “revolução dos
cravos”, - pelos milhares de cravos vermelhos que circulavam de mão em mão,
símbolo da liberdade - Nuno de Miranda foi chamado, em 1976, para o Conselho da
Revolução, a convite de Almeida Santos para trabalhar com o capitão Sousa e
Castro, que era na altura chefe dos serviços de extinção da PIDE, e em comissão
de serviço, foi Chefe do Gabinete de Imprensa e do Protocolo até 1979.
Reformou-se do Palácio Foz, de que era quadro da Direcção Geral de Comunicação
Social, no início dos anos 90.
Nuno de Miranda nunca faltou ao trabalho
e, de 1984 a 1989, obteve cada ano, como funcionário público, a qualificação de
“Muito Bom”. Hoje continua apaixonado pela escrita.
No final de uma conversa pela tarde
dentro, na Sexta-feira Santa, aceitando um chá preparado pela sua mulher,
fiquei a saber que a filha Joana e o genro do casal, estavam a aprender
crioulo. Achei curioso e exclamei: uma herança do pai, provavelmente! Fixei,
nesse momento, o poeta e li-lhe aquiescência no brilho do seu olhar!
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