O Equívoco de Pidgiguiti E a figura de António Carreira

domingo, 24 de março de 2019



Pigikintá…Pinginkinti…Pigingotá…  raio de nome difícil! Ehn!!  -  Que nos idos e agitados tempos dos primórdios da independência  -  nem os então “irmãos” (1974-1980) cabo-verdianos o sabiam pronunciar e muito menos escrevê-lo com alguma aproximação correcta! Por muito que quisessem descrever o conflito laboral que se passou em 1959 na cidade de Bissau, como sendo iniciativa do PAIGC.
Lembro-me então como nos ríamos às gargalhadas quando ouvíamos os políticos locais, com ares sérios e solenes,  falarem ou discursarem (por ocasião do 3 de Agosto) ora de “pindgikiti,” ora de “pindgiguitá” e ora ainda de “pindgigotá”…
 Sim, tão revolucionários e tão conhecedores da gloriosa luta de independência da Guiné e de Cabo Verde, a qual, ufanamente  exibiam à época!  Mas quando chegava a Pidgiguiti, aí, para além de não saberem pronunciar correctamente o nome do cais, acrescentavam  fantásticas e fabulosas histórias, então contadas, na rádio, nos jornais e na voz dos “melhores filhos” leiam-se:  os combatentes vindos do mato e os revolucionários surgidos nas cidades.
Isto, passava-se aqui nas ilhas, após o Movimento dos Capitães de Abril em Portugal..
Na mesma linha, na Guiné, e naqueles tempos - da malfadada unidade Guiné-Cabo Verde, sob a égide do Paigc - na rádio em Bissau, escutavam-se programas e entrevistas com descrições por vezes empolgadas, sobre o triste episódio.
Tudo isto também, porque os combatentes do PAIGC, vindos da Guiné profunda e, particularmente aqueles ligados à antiga  Rádio Libertação, haviam trazido na sua bagagem, uma fita contendo uma espécie de teatro radiofónico que antes passariam na referida Rádio em Conackry.
Ora bem, mal chegados a Bissau em 1974, toca de difundi-lo na rádio Bissau por várias vezes.
Obviamente que houve figuras protagonistas e secundárias)  completamente diabolizadas nessas  -  umas, reais, outras, bem efabuladas  -  narrações radiofónicas, sobre a revolta dos marinheiros em Bissau, há 60 anos ( a 3 de Agosto de 1959) algumas delas, militares e policiais com intervenção directa nos acontecimentos, mas houve também gente, injustamente incluída.
E de entre as figuras injustamente arroladas, e várias vezes citadas no folhetim radiofónico, destaca-se a do  nosso insigne estudioso  etnógrafo, historiador, António Barbosa Carreira (1905-1988).
 Pois é, foi uma das figuras mais diabolizadas nesse imbróglio foi precisamente António Carreira.
Apenas relembrar que em 1959 -Guiné Portuguesa - aí nesse local, o porto, o cais de Pidgiguiti, em Bissau - se terá passado um conflito laboral, sangrento e violento entre marinheiros maioritariamente da etnia mandjaca, ao serviço da Casa Gouveia, e a autoridade militar e policial, vigente em Bissau.
Ora bem, o conflito ,(reivindicação dos marinheiros ao serviço daquela casa comercial) mais tarde, após a independência, ganhou novos e inventados contornos nas reconstituições feitas pelos jornalistas e demais escribas e depoentes ao serviço da nova causa; ao conectá-lo como sendo emanação directa do PAIGC.
Recordo com um rasgado sorriso, a entrevista que ouvi na rádio, desse meu patrício vulcânico (vulcânico mesmo!) nos idos anos de 1974, a tentar explicar ao Jornalista, que ele, Carreira nada tivera com o caso. A determinada altura da entrevista, perdendo um pouco a paciência com as perguntas, um pouco repetitivas que o Jornalista lhe fazia sobre um assunto que pertencera à esfera militar e policial de Bissau, o nosso Historiador;  para pôr termo à irritante, e falsa acusação que queriam sobre ele fazer pender, e a maneira como o Jornalista queria conduzir a entrevista, como se de réu se tratasse, Carreira soltou uma expressão mais forte e a aparentar um “palavrão,” pois que ele não tinha paciência alguma com questões que  considerava idiotas e deu fim à entrevista. Espírito frontal, directo e sem falsos rodeios, assim expressava ele a sua quase sempre, assertiva opinião.
De facto, a entrevista acabou por ser de certa forma, hilariante.
 Creio que, após isso, todos, ou quase todos, mesmo aqueles que injustamente o incriminaram se aperceberam do grande erro cometido. Só que essa gente não conhece a tão bem-vinda e esperada expressão: Pedir desculpas... Sim, comete-se um erro tão grosseiro! e não há um pedido de desculpa ??...
Agora, e um  pouco mais seriamente, convém situar  António Carreira na Guiné portuguesa, onde fez a sua carreira de Administrador de Concelho ou de Circunscrição, no interior daquele país, então denominada Província Ultramarina. Terá chegado uma altura, deduzo, que querendo ir viver para Bissau, ou para a escolarização dos filhos possivelmente, ou mesmo, por cansaço do mato, ou razões outras, deixou a administração civil, tendo passado a ser Sub-Gerente da Casa Gouveia, empresa comercial de muito peso na então Guiné. Sobretudo na comercialização do arroz.
 Mais tarde, A. Carreira, foi arquivista e investigador do então denominado Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde fez um meritório trabalho de inventariação, catalogação e de arrumação com metodologia e muito trabalho do vasto acervo escrito aí então existente. Deixou esse precioso legado que eu vi com lágrimas nos olhos, a ser posto na rua (literalmente) em meados de 1975. Possivelmente por mãos e mentes que não sabiam ou, não avaliaram o valor daquilo que estavam a retirar das prateleiras e colocado no chão (sem cuidado) do passeio em frente à porta do aludido Centro, na altura transformado em outro serviço.
Pois bem, continuando, A. Carreira, imagino eu, que terá sido também desses tempos, enquanto ele foi responsável do Centro de Estudos em Bissau - possivelmente um tempo de estudo e de reflexão - a elaboração do seu projecto, mais tarde obras de referência sobre algumas das muitas etnias guineenses, sobre o trânsito esclavagista da chamada costa da Guiné, as migrações e, a formação da sociedade cabo-verdiana. Tudo isto versado em livros, que se tornaram de consulta fundamental para as teses e para trabalhos académicos.
António Carreira, como quadro da Administração Civil da Guiné Portuguesa,  Carreira pôde frequentar a antiga Escola Colonial em Lisboa, mais tarde, nos finais dos anos 50, tornado Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas.
 Fundamentalmente  autodidacta, estudioso empenhado, prosseguiu A. Carreira, ele próprio, a sua formação enquanto etnógrafo e historiador. Simplesmente espantoso!
Carreira também foi orientador de teses de muitos formandos e académicos, mestrados e doutoramentos, daqueles que buscavam na História das antigas colónias portuguesas, temas para os seus trabalhos de fim de curso. 
Nos anos 70, do séc. XX, A. Carreira encontra-se em Portugal, onde, a convite de Adriano Moreira, dá aulas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, antigo ISCPU.
 Para nós uma enorme admiração! Não é? Mas nestas ilhas havia gente assim, no antigamente da vida... Abro aqui um pequeno parêntesis para estabelecer uma comparação, embora desfasada em tempo, e lembrar  casos similares; de Guilherme Ernesto, de Guilherme Dantas, de  Eugénio Tavares, de Januário Leite, de José Lopes e de tantos e tantos outros que deixaram um legado escrito de incontestável valor para a Literatura e para a História de Cabo Verde e que não possuíam qualquer diploma de estudos superiores!  Eles é que assentaram e fundaram  a sua vasta cultura –através de leituras e de estudos  aturados – nas palavras de Arnaldo França, nas suas «Notas sobre poesia e ficção cabo-verdiana» 1962: “... um aceno de simpatia aqueles que sem um liceu, sem jornais literários, sem rádio, sem cinema, sem viagens à metrópole, deram em seu tempo, uma nota de dignidade e de elevação espiritual à apagada tristeza reinante na pequenez dos agregados urbanos das ilhas.”  Fim de transcrição. Eles criaram o seu próprio saber e o seu invulgar engenho para o difundir e o perpetuar. Fecho o parêntese.
E retomo A. Carreira mais actual, autor de obra importante na historiografia cabo-verdiana, área na qual deixou um vasto legado escrito em  artigos, ensaios e livros. A sua obra mais conhecida e citada é: «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878).» 
Nasceu em São Filipe, ilha do Fogo em 1905. Filho de António Carreira e Isaura Barbosa. Casou com Cármen de Medina Carreira, natural da ilha Brava.  Faleceu em Lisboa, Portugal, em 1988. Os restos mortais foram trasladados para a sua ilha natal em 1995.
E com estes apontamentos, termino o escrito, não sem antes deixar ao leitor uma, diria, extensa e ilustrativa biografia de António Barbosa Carreira.
P. S. – As notas que se seguem foram transcritas do “blog” de Jorge Sousa Brito. 
“...Encontra-se sepultado no Fogo. (...). Reformou-se em 1954. Mais tarde, já como investigador de reconhecido mérito, estabeleceu-se em Portugal. Foi, póstumamente, em 5 de Julho de 1994, feito Oficial da Ordem do Vulcão pela República de Cabo Verde. Homem com uma grande curiosidade intelectual, na primeira fase das suas investigações debruçou-se exclusivamente sobre a actual Guiné-Bissau cujas tribos começou por estudar (fazendo uma pesquisa de campo) tendo deixado colaboração dispersa pela imprensa da então colónia. Colaborou também em várias revistas de caracter cultural como Revista do Centro de Estudos de Cabo Verde - Série de Ciências Humanas, Raízes, Ponto & Vírgula, Boletim Cultural da Guiné, Garcia de Orta, Revista Geográfica, Revista Ultramar, Revista do Centro de Estudo Demográfico do Instituto Nacional de Estatistica, Revista de História Económica e Social, Cadernos de Antropologia, etc. Publicou os seguintes trabalhos, na maioria, de carácter etnológico: Mandingas, ed. Cosmos, Lisboa, S/D, 39 p.; Costumes Mandingas, ed. Cosmos, Lisboa, 1936, 28 p.; Vida, Religião e Morte dos Mandingas, id., id., 1938, 46 p.; Mandingas da Guiné Portuguesa, id., id., 1947, 324 p.; Vida Social dos Manjacas, id., id., 1947, 184 p.; Subsídios para o estudo da língua Manjaca, id., 1947, 175 p., co-autor; Mutilações Corporais e Pinturas Cutâneas Rituais dos Negros da Guiné Portuguesa, Bissau, 1950; Movimento Natural da População não Civilizada da Circunscrição Administrativa de Cacheu; Censo geral da População não Civilizada de 1950; O fundamento dos etnónimos na Guiné Portuguesa, (Garcia de Horta, vol. 10, nº 2, 1962); Duas cartas topográficas de Graça Falcão (1894-1897) e a expansão do islamismo no rio Farim, (Garcia de Horta, vol. 11, nº 2, 1963), editado também em Separatas. Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, nº 6, 24 p.; Contribuição para o estudo das mutilações genitais na Guiné Portuguesa. Do arrancamento da pele dos cadáveres e da necrofagia na Guiné Portuguesa, Lisboa, 1963, in: Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português, Junta de Investigações do Ultramar, Série Estudos, Ensaios e Documentos, nº 102, vol. 3; Antroponímia da Guiné Portuguesa, co-autor com Fernando Quintino, 2 vols, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1º vol. Memória no 49, 1964, 432 p. e 2º vol., nº 52, 1966, 187 p. Depois, voltou a sua atenção para a sua terra natal e seguiram-se então os trabalhos de carácter históricos: Panaria cabo-verdiano guineense, Imprensa Portuguesa, Porto, 1969, 175 p. (2ª ed. do Instituto Caboverdeano do Livro, 1983, 226 p. + 72 extra-textos); As companhias pombalinas de navegação comércio e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro, Imprensa Nacional, Porto, 1969, 565 p.; Cabo Verde-Formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878), Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Imprensa Portuguesa, Porto, 1972, 580 p. (2ª ed. do Instituto de Promoção Cultural, Praia, 2001, c/ o patrocínio do Banco de Cabo Verde); Cabo Verde - Classes sociais . Estrutura familiar . Migrações, Lisboa, 1977, Edições Ulmeiro, 88 p.; Migrações, nas ilhas de Cabo Verde, Lisboa, 1977, Univ. Nova de Lisboa, (2ª ed. do Instituto Caboverdeano do Livro, 1983, 322 p.) traduzido para o inglês por Christopher Fyje com o título "The people of the Cape Verde Islands - Explotation and Emigration", Connecticut, 1982, (printed in Hong Kong), 224 p.; Notas sobre o tráfico português de escravos, Lisboa, 1978, Univ. Nova de Lisboa, 82 p.; O tráfico português de escravos na Costa Oriental Africana nos começos do século XIX. (Estudo de um caso), Lisboa, 1979, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, série Estudos de Antropologia Cultural e Social, nº 12, 135 p.; O tráfico de escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850), Lisboa, 1981, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 55 p.; Estudos de Economia Caboverdeana, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1982, 344 p.; O crioulo de Cabo Verde - Surto e expansão, edição do autor, Lisboa, 1982, 94 p.; Documentos para a História das ilhas de Cabo Verde e "Rios de Guiné", edição fac-similada, Lisboa, 1983, 306 p.; Cabo Verde. (Aspectos sociais. Secas e fomes do século XX), Lisboa, 1984, Ulmeiro, 208 p. (edição revista e aumentada de Cabo Verde - Classes sociais... de 1977); Os portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), Lisboa, 1984, ed. do autor, 206 p.; Descrições oitocentistas das ilhas de Cabo Verde, 1987, Mem Martins, Portugal, 276 p.; etc.
• O que se conta desta pessoa. Era conhecido pela familia por Antoninho de Mintinha. Mintinha era a avó Clementina.”
 Fim de transcrição


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