Pigikintá…Pinginkinti…Pigingotá… raio de nome difícil! Ehn!! - Que
nos idos e agitados tempos dos primórdios da independência - nem
os então “irmãos” (1974-1980) cabo-verdianos o sabiam pronunciar e muito menos
escrevê-lo com alguma aproximação correcta! Por muito que quisessem descrever o
conflito laboral que se passou em 1959 na cidade de Bissau, como sendo
iniciativa do PAIGC.
Lembro-me então como nos ríamos às
gargalhadas quando ouvíamos os políticos locais, com ares sérios e solenes, falarem ou discursarem (por ocasião do 3 de
Agosto) ora de “pindgikiti,” ora de “pindgiguitá” e ora ainda de “pindgigotá”…
Sim, tão revolucionários e tão conhecedores da
gloriosa luta de independência da Guiné e de Cabo Verde, a qual,
ufanamente exibiam à época! Mas quando chegava a Pidgiguiti, aí, para além
de não saberem pronunciar correctamente o nome do cais, acrescentavam fantásticas e fabulosas histórias, então
contadas, na rádio, nos jornais e na voz dos “melhores filhos” leiam-se: os combatentes vindos do mato e os
revolucionários surgidos nas cidades.
Isto, passava-se aqui nas ilhas,
após o Movimento dos Capitães de Abril em Portugal..
Na mesma linha, na Guiné, e naqueles
tempos - da malfadada unidade Guiné-Cabo Verde, sob a égide do Paigc - na rádio
em Bissau, escutavam-se programas e entrevistas com descrições por vezes
empolgadas, sobre o triste episódio.
Tudo isto também, porque os
combatentes do PAIGC, vindos da Guiné profunda e, particularmente aqueles
ligados à antiga Rádio Libertação,
haviam trazido na sua bagagem, uma fita contendo uma espécie de teatro radiofónico
que antes passariam na referida Rádio em Conackry.
Ora bem, mal chegados a Bissau em
1974, toca de difundi-lo na rádio Bissau por várias vezes.
Obviamente que houve figuras protagonistas
e secundárias) completamente
diabolizadas nessas - umas, reais, outras, bem efabuladas - narrações radiofónicas, sobre a revolta dos
marinheiros em Bissau, há 60 anos ( a 3 de Agosto de 1959) algumas delas,
militares e policiais com intervenção directa nos acontecimentos, mas houve
também gente, injustamente incluída.
E de entre as figuras injustamente arroladas,
e várias vezes citadas no folhetim radiofónico, destaca-se a do nosso insigne estudioso etnógrafo, historiador, António Barbosa
Carreira (1905-1988).
Pois é, foi uma das figuras mais diabolizadas
nesse imbróglio foi precisamente António Carreira.
Apenas relembrar que em 1959 -Guiné
Portuguesa - aí nesse local, o porto, o cais de Pidgiguiti, em Bissau - se terá
passado um conflito laboral, sangrento e violento entre marinheiros
maioritariamente da etnia mandjaca, ao serviço da Casa Gouveia, e a autoridade
militar e policial, vigente em Bissau.
Ora bem, o conflito ,(reivindicação
dos marinheiros ao serviço daquela casa comercial) mais tarde, após a
independência, ganhou novos e inventados contornos nas reconstituições feitas pelos
jornalistas e demais escribas e depoentes ao serviço da nova causa; ao
conectá-lo como sendo emanação directa do PAIGC.
Recordo com um rasgado sorriso, a
entrevista que ouvi na rádio, desse meu patrício vulcânico (vulcânico mesmo!)
nos idos anos de 1974, a tentar explicar ao Jornalista, que ele, Carreira nada
tivera com o caso. A determinada altura da entrevista, perdendo um pouco a
paciência com as perguntas, um pouco repetitivas que o Jornalista lhe fazia sobre
um assunto que pertencera à esfera militar e policial de Bissau, o nosso Historiador;
para pôr termo à irritante, e falsa
acusação que queriam sobre ele fazer pender, e a maneira como o Jornalista
queria conduzir a entrevista, como se de réu se tratasse, Carreira soltou uma
expressão mais forte e a aparentar um “palavrão,” pois que ele não tinha
paciência alguma com questões que considerava idiotas e deu fim à entrevista.
Espírito frontal, directo e sem falsos rodeios, assim expressava ele a sua quase
sempre, assertiva opinião.
De facto, a entrevista acabou por
ser de certa forma, hilariante.
Creio que, após isso, todos, ou quase todos,
mesmo aqueles que injustamente o incriminaram se aperceberam do grande erro
cometido. Só que essa gente não conhece a tão bem-vinda e esperada expressão:
Pedir desculpas... Sim, comete-se um erro tão grosseiro! e não há um pedido de
desculpa ??...
Agora, e um pouco mais seriamente, convém situar António Carreira na Guiné portuguesa, onde fez
a sua carreira de Administrador de Concelho ou de Circunscrição, no interior daquele
país, então denominada Província Ultramarina. Terá chegado uma altura, deduzo,
que querendo ir viver para Bissau, ou para a escolarização dos filhos
possivelmente, ou mesmo, por cansaço do mato, ou razões outras, deixou a
administração civil, tendo passado a ser Sub-Gerente da Casa Gouveia, empresa
comercial de muito peso na então Guiné. Sobretudo na comercialização do arroz.
Mais tarde, A. Carreira, foi arquivista e
investigador do então denominado Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde
fez um meritório trabalho de inventariação, catalogação e de arrumação com
metodologia e muito trabalho do vasto acervo escrito aí então existente. Deixou
esse precioso legado que eu vi com lágrimas nos olhos, a ser posto
na rua (literalmente) em meados de 1975. Possivelmente por mãos e mentes que
não sabiam ou, não avaliaram o valor daquilo que estavam a retirar das
prateleiras e colocado no chão (sem cuidado) do passeio em frente à porta do
aludido Centro, na altura transformado em outro serviço.
Pois bem, continuando, A. Carreira,
imagino eu, que terá sido também desses tempos, enquanto ele foi responsável do
Centro de Estudos em Bissau - possivelmente um tempo de estudo e de reflexão -
a elaboração do seu projecto, mais tarde obras de referência sobre algumas das
muitas etnias guineenses, sobre o trânsito esclavagista da chamada costa da
Guiné, as migrações e, a formação da sociedade cabo-verdiana. Tudo isto versado
em livros, que se tornaram de consulta fundamental para as teses e para trabalhos
académicos.
António Carreira, como quadro da
Administração Civil da Guiné Portuguesa,
Carreira pôde frequentar a antiga Escola Colonial em Lisboa, mais tarde,
nos finais dos anos 50, tornado Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas Ultramarinas.
Fundamentalmente autodidacta, estudioso empenhado, prosseguiu
A. Carreira, ele próprio, a sua formação enquanto etnógrafo e historiador.
Simplesmente espantoso!
Carreira também foi orientador de
teses de muitos formandos e académicos, mestrados e doutoramentos, daqueles que
buscavam na História das antigas colónias portuguesas, temas para os seus
trabalhos de fim de curso.
Nos anos 70, do séc. XX, A. Carreira
encontra-se em Portugal, onde, a convite de Adriano Moreira, dá aulas no
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, antigo ISCPU.
Para nós uma enorme admiração! Não é? Mas
nestas ilhas havia gente assim, no antigamente da vida... Abro aqui um pequeno
parêntesis para estabelecer uma comparação, embora desfasada em tempo, e
lembrar casos similares; de Guilherme
Ernesto, de Guilherme Dantas, de Eugénio
Tavares, de Januário Leite, de José Lopes e de tantos e tantos outros que
deixaram um legado escrito de incontestável valor para a Literatura e para a
História de Cabo Verde e que não possuíam qualquer diploma de estudos
superiores! Eles é que assentaram e
fundaram a sua vasta cultura –através de
leituras e de estudos aturados – nas palavras
de Arnaldo França, nas suas «Notas sobre poesia e ficção cabo-verdiana» 1962: “... um aceno de simpatia aqueles que sem um
liceu, sem jornais literários, sem rádio, sem cinema, sem viagens à metrópole,
deram em seu tempo, uma nota de dignidade e de elevação espiritual à apagada
tristeza reinante na pequenez dos agregados urbanos das ilhas.” Fim de transcrição. Eles criaram o seu próprio
saber e o seu invulgar engenho para o difundir e o perpetuar. Fecho o
parêntese.
E retomo A. Carreira mais actual, autor
de obra importante na historiografia cabo-verdiana, área na qual deixou um
vasto legado escrito em artigos, ensaios
e livros. A sua obra mais conhecida e citada é: «Cabo Verde – Formação e
Extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878).»
Nasceu em São Filipe,
ilha do Fogo em 1905. Filho de António Carreira e Isaura Barbosa. Casou com
Cármen de Medina Carreira, natural da ilha Brava. Faleceu em Lisboa, Portugal, em 1988. Os
restos mortais foram trasladados para a sua ilha natal em 1995.
E com estes apontamentos,
termino o escrito, não sem antes deixar ao leitor uma, diria, extensa e
ilustrativa biografia de António Barbosa Carreira.
P. S. – As notas que se
seguem foram transcritas do “blog” de Jorge Sousa Brito.
“...Encontra-se
sepultado no Fogo. (...). Reformou-se em 1954. Mais tarde, já como investigador
de reconhecido mérito, estabeleceu-se em Portugal. Foi, póstumamente, em 5 de
Julho de 1994, feito Oficial da Ordem do Vulcão pela República de Cabo Verde.
Homem com uma grande curiosidade intelectual, na primeira fase das suas
investigações debruçou-se exclusivamente sobre a actual Guiné-Bissau cujas
tribos começou por estudar (fazendo uma pesquisa de campo) tendo deixado
colaboração dispersa pela imprensa da então colónia. Colaborou também em várias
revistas de caracter cultural como Revista do Centro de Estudos de Cabo Verde -
Série de Ciências Humanas, Raízes, Ponto & Vírgula, Boletim Cultural da
Guiné, Garcia de Orta, Revista Geográfica, Revista Ultramar, Revista do Centro
de Estudo Demográfico do Instituto Nacional de Estatistica, Revista de História
Económica e Social, Cadernos de Antropologia, etc. Publicou os seguintes
trabalhos, na maioria, de carácter etnológico: Mandingas, ed. Cosmos, Lisboa,
S/D, 39 p.; Costumes Mandingas, ed. Cosmos, Lisboa, 1936, 28 p.; Vida, Religião
e Morte dos Mandingas, id., id., 1938, 46 p.; Mandingas da Guiné Portuguesa,
id., id., 1947, 324 p.; Vida Social dos Manjacas, id., id., 1947, 184 p.;
Subsídios para o estudo da língua Manjaca, id., 1947, 175 p., co-autor;
Mutilações Corporais e Pinturas Cutâneas Rituais dos Negros da Guiné
Portuguesa, Bissau, 1950; Movimento Natural da População não Civilizada da
Circunscrição Administrativa de Cacheu; Censo geral da População não Civilizada
de 1950; O fundamento dos etnónimos na Guiné Portuguesa, (Garcia de Horta, vol.
10, nº 2, 1962); Duas cartas topográficas de Graça Falcão (1894-1897) e a
expansão do islamismo no rio Farim, (Garcia de Horta, vol. 11, nº 2, 1963),
editado também em Separatas. Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, nº
6, 24 p.; Contribuição para o estudo das mutilações genitais na Guiné
Portuguesa. Do arrancamento da pele dos cadáveres e da necrofagia na Guiné
Portuguesa, Lisboa, 1963, in: Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português,
Junta de Investigações do Ultramar, Série Estudos, Ensaios e Documentos, nº
102, vol. 3; Antroponímia da Guiné Portuguesa, co-autor com Fernando Quintino,
2 vols, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1º vol. Memória no 49, 1964,
432 p. e 2º vol., nº 52, 1966, 187 p. Depois, voltou a sua atenção para a sua
terra natal e seguiram-se então os trabalhos de carácter históricos: Panaria
cabo-verdiano guineense, Imprensa Portuguesa, Porto, 1969, 175 p. (2ª ed. do
Instituto Caboverdeano do Livro, 1983, 226 p. + 72 extra-textos); As companhias
pombalinas de navegação comércio e tráfico de escravos entre a costa africana e
o nordeste brasileiro, Imprensa Nacional, Porto, 1969, 565 p.; Cabo
Verde-Formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878), Centro de
Estudos da Guiné Portuguesa, Imprensa Portuguesa, Porto, 1972, 580 p. (2ª ed.
do Instituto de Promoção Cultural, Praia, 2001, c/ o patrocínio do Banco de
Cabo Verde); Cabo Verde - Classes sociais . Estrutura familiar . Migrações,
Lisboa, 1977, Edições Ulmeiro, 88 p.; Migrações, nas ilhas de Cabo Verde,
Lisboa, 1977, Univ. Nova de Lisboa, (2ª ed. do Instituto Caboverdeano do Livro,
1983, 322 p.) traduzido para o inglês por Christopher Fyje com o título
"The people of the Cape Verde Islands - Explotation and Emigration",
Connecticut, 1982, (printed in Hong Kong), 224 p.; Notas sobre o tráfico
português de escravos, Lisboa, 1978, Univ. Nova de Lisboa, 82 p.; O tráfico
português de escravos na Costa Oriental Africana nos começos do século XIX.
(Estudo de um caso), Lisboa, 1979, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar, série Estudos de Antropologia Cultural e Social, nº 12, 135 p.; O
tráfico de escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850),
Lisboa, 1981, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 55 p.; Estudos de
Economia Caboverdeana, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1982, 344 p.;
O crioulo de Cabo Verde - Surto e expansão, edição do autor, Lisboa, 1982, 94
p.; Documentos para a História das ilhas de Cabo Verde e "Rios de
Guiné", edição fac-similada, Lisboa, 1983, 306 p.; Cabo Verde. (Aspectos
sociais. Secas e fomes do século XX), Lisboa, 1984, Ulmeiro, 208 p. (edição
revista e aumentada de Cabo Verde - Classes sociais... de 1977); Os portugueses
nos Rios de Guiné (1500-1900), Lisboa, 1984, ed. do autor, 206 p.; Descrições
oitocentistas das ilhas de Cabo Verde, 1987, Mem Martins, Portugal, 276 p.;
etc.
• O que se conta desta pessoa. Era
conhecido pela familia por Antoninho de Mintinha. Mintinha era a avó
Clementina.”
Fim de transcrição
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