Antes de mais felicitar a
oportuna e feliz iniciativa do Jornal «Expresso das Ilhas» nesta reedição
completa dos números de «Certeza – Folha da Academia».
Relembrar
que foram três números. Dois em 1944 e um em 1945.
O texto que se segue foi uma intervenção
feita nas celebrações dos 75 anos do Movimento «Certeza» e a convite do Jornal
aqui referido.
É
interessante reler os textos dos organizadores e dos autores pertencentes a esta corrente literária. Isto,
por várias razões, entre as quais distinguiria três :
Uma
dessas razões, e a primeira, tem a ver com a juventude dos seus fundadores, 18
e 20 anos de idade, sendo ainda alunos liceais, a cultura que demonstram -
estruturada e madura - aliada à sede, e à a vontade de aumentar a dimensão da “redescoberta
social e psicológica” das ilhas, iniciada por «Claridade», em 1936. No dizer de
Manuel Ferreira.
São
eles, entre fundadores e organizadores: Nuno Miranda, Arnaldo França, Guilherme
Rocheteau, José Spencer, Silvestre Faria, Filinto Meneses, Orlanda Amarílis e Tomaz Martins. Sendo
Director Eduíno Brito Silva e Editor; Joaquim Ribeiro.
Tudo
isto aconteceu em Mindelo, em 1944/45. Mindelo a cidade portuária com o seu Liceu; com as suas tertúlias, para
os de Certeza, tertúlias da Academia «Cultivar»; com os mais velhos, os da «Claridade» em plena pujança criativa; com
as informações que constantemente chegavam
à ilha-cidade, através do Porto Grande aberto ao mundo e aqui entramos já no
segundo motivo ou razão de interesse do Movimento «Certeza», a influência da II
Grande Guerra Mundial nas preocupações e na escrita dos seus autores.
Justificada por Arnaldo França da
seguinte forma, nas suas preciosas «Notas sobre poesia e Ficção cabo-verdianas»
de 1962 – Separata do Boletim Cabo Verde.
Diz
o Dr. França a determinada altura, e passo a citar: “ ...o aparecimento da revista em 1944 é significativo. Nessa altura
desenhava-se já no horizonte o triunfo
das forças aliadas no campo da guerra europeia, e mais pressentidos que conscientemente
esperados, desenhavam-se os fecundos tempos em que ainda vivemos.” Fim de citação.
Ora
bem, a influência do conflito mundial terá sido tema presente e marcante na
produção dos jovens «Certeza». E para
ilustrar a forma como os seus poetas o viviam não resisto a transcrever excertos do
poema “Testamento para o Dia Claro” de Arnaldo França em que a própria
terminologia reflecte esse tempo bélico vivido um pouco por todo o mundo, e em Mindelo
também, nos idos anos da década de 40 do século passado - um tempo horrendo -
mas sempre na esperança do “Dia Claro”....
Cito: “Quando no fundo da noite vier o
eco da última palavra submissa / E a pátina do tempo cobrir a moldura do herói
derradeiro // Quando o fumo do último ovo de cianeto / se dissipar na atmosfera
de gases rarefeitos / E a chama da vela da esperança / se acender em sol de
madrugada do novo dia...
E
continua: (...) “ Quando só restar na
franja da memória // lapidada pelo buril dos tempos ácidos. (...) Sejais vós ao
menos infância renovada da minha vida // A colher uma a uma as pétalas
dispersas / da grinalda dos sonhos interditos.”
Claro,
que como texto poético que é o «O testamento para o Dia claro» é
plurissignificativo e suporta várias análises e diferentes desmontagens.
Ainda
um outro motivo de interesse dos jovens membros do movimento «Certeza», é a
preocupação da procura do saber e de actualização literária, daí que uma das
correntes influenciadoras dos seus poetas, dos seus ensaístas e prosadores, foi
ou, tenha sido o Neo-Realismo português. O Neo-realismo, que somos sobre isso
elucidados, pois Manuel Ferreira a
prestar serviço militar em São Vicente, à época e que à «Certeza» se juntou, lhes terá dado a
conhecer obras e autores desse movimento, tais foram Mário Dionísio, Alves
Redol, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, entre outros, então notáveis
neo-realistas portugueses.
Pois
bem, é também o próprio Manuel Ferreira ( «No Reino de Caliban», vol. I 1974) que
destaca –na opinião dele - como único poeta saído do movimento, Arnaldo
França. Este, por sua vez, e nas “Notas” já aqui já citadas, e escritas em 1962
diz que o movimento apenas produziu um
romancista: Nuno Miranda e que não produziu poeta. Não se fala aqui dos nomes de António Nunes e nem de Teixeira de Sousa
pois que eles foram de uma adesão, é certo, mas à
distância e posteriores, não foram presenciais - embora ideologicamente muito
próximos do ideário de «Certeza». Não é por acaso, que no nº. 2 de «Certeza»
venha na primeira página, os emblemáticos versos do “Poema de Amanhã” de
António Nunes.
Faço-vos
aqui um desabafo, uma espécie de confidência intramuros, numa espécie de
à parte:
Uma
das coisas que sempre me encantou no homem intelectual que foi Arnaldo
França, é aquilo a que chamarei, para comodidade de
expressão: uma modéstia culta, ao falar ou ao escrever sobre si, sobre a
produção escrita do seu tempo por exemplo, sobre a sua participação, no movimento «Certeza». Creio que ele
pertence ao grupo de pessoas de espírito e de mente profundamente cultos e
civicamente instruídos que não se deslumbra e por isso diz as coisas com toda a naturalidade, com simplicidade, sem necessidade de se pôr em
”bicos de pés” Um encanto! Que infelizmente, hoje está a rarear ou, mesmo a desaparecer entre a classe
dos literatos, pois encontramo-los entre nós, os que se gabam, se citam
excessivamente, e se auto-projectam à primeira redacção bem feita. Enfim... desculpem-me este à parte, que vou fechar não
sem antes dizer que o exemplo de probidade e de humildade intelectual de dr.
França deviam ser bem seguidos.
Continuando,
Nuno Miranda e Arnaldo França – foram de facto, quem melhor consubstanciou - porque
o projectaram, e o vivenciaram - o
ideário dos jovens oriundos da academia «Cultivar» e apresentados publicamente
na Folha «Certeza». ambos na poesia, e um no Conto e no Romance. Em matéria de
análise cultural, literária também se deve destacar o nome de Guilherme Rocheteau.
Gostaria
de distinguir o contista e romancista que é Nuno Miranda e que reflectiu de
forma explicita e alongada, no seu romance: «Cais de Pedra» esse ideário
“certeziano”. Obra, creio eu que tardiamente publicada. O meu exemplar é de
1989, publicado pelo antigo Instituto
cabo-verdiano do Livro.
Ora
bem, dizia eu que o autor reconstruiu,
através dos ambientes mindelenses e dos diálogos das personagens, do seu «Cais
de Pedra» os anos da década de 40.
Trata-se de uma ficção em que as personagens
mais intervenientes são «Torna-viagem». Abro aqui um pequeno parêntesis,
para dizer que na minha opinião, é na ficção de Nuno Miranda que apareceu pela
primeira vez, o «Torna-viagem» como protagonista da narrativa. Mais tarde, Teixeira de Sousa,
retoma esse perfil de personagem no seu romance «Xaguate». Fecho o parêntesis.
Para
exemplificar, em «Cais de Pedra», o protagonista Guilherme veio da Argentina,
onde fora um emigrante, bem sucedido, Eduardo
regressa dos Estado Unidos, também bem-sucedido. As falas deles deixam
transparecer o alter-ego, aliás são
vários os alter-egos do autor e de alguns referentes reais recortados dentro do
Movimento «Certeza». Outras personagens
do romance, regressam também de Portugal, da Europa, todas elas carregadas de
teorias desenvolvimentistas e de ideias novas, modernas, ideias que o leitor se
apercebe, saídas afinal do programa de «Certeza» e sobre as quais, discutem a sua
realização, efectivação em São Vicente, em Santo Antão, nas outras ilhas... Enfim,
um romance de personagens em diálogo permanente, que deixam perceber que as boas ideias, para terem credibilidade
islenha, teriam de vir fora e da parte do mundo considerada, desenvolvida, industrializada e civilizada... Assim
questionam e interagem as personagens do romance, «Cais de Pedra» de Nuno
Miranda, cujo conteúdo, terá sido modelado e transfigurado no ideário de
«Certeza» que hoje aqui homenageamos..
E isto aconteceu há 75 anos! Bem hajam os seus
fundadores! Bem haja a sua memória!
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