Por Nuno Pacheco*
Com tão estranhas datas, como é que o AO “entrou em
vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007”?
Invocando a Lei de Imprensa, quis o
ministro dos Negócios Estrangeiros rectificar duas afirmações por mim feitas na
crónica “O acordo ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas” (25/7/2019): a
primeira é que, na verdade, já respondera ao deputado José Carlos Barros (PSD);
a segunda é que, no pedido que o deputado lhe endereçara, solicitando acesso
aos instrumentos de ratificação do Acordo Ortográfico (AO) depositados no
Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), este não se tinha identificado como
coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da
Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. É verdade, tem razão nas duas! A
resposta foi enviada (embora nem o deputado soubesse dela, quando lho perguntei)
e ele, na verdade, identificara-se “apenas” como deputado. Mas teria feito alguma
diferença para a resposta dada? Que os documentos solicitados não poderiam ser
mostrados porque (escreveu o ministro) “detêm natureza de documento diplomático
e, por isso, constituem documentos de acesso legalmente restrito”? Na verdade,
o deputado podia até intitular-se ministro plenipotenciário da Santa Sé, que
nada obteria dos cofres sagrados da diplomacia.
Mas sagrados porquê? Terão os
instrumentos de ratificação do AO algo secreto, como dados sobre segurança
interna, defesa, estratégias a adoptar em casa de invasões ou guerras? Não,
teoricamente falam apenas de ortografia. Então porquê tanto segredo? Talvez
isto ajude: o deputado enviou o seu pedido, pelos trâmites legais, a 16 de
Junho; o ministro, também pela mesma via, despachou a resposta no dia 18 de
Julho. Aliás, nem foi bem ele, a resposta vinha assinada pela sua chefe de
gabinete e nem foi enviada directamente ao deputado, mas sim à chefe de
gabinete do secretário de Estado Adjunto dos Assuntos Parlamentares. Parece que
tem de ser assim, lá por São Bento, para tornar as coisas mais rápidas.
Demorou, tudo isto, um mês e dois dias. Mas para responder ao PÚBLICO, o
ministro já demorou… menos de 24 horas. E nem recorreu a chefes de gabinete,
assinou ele próprio o documento. O que justifica tal pressa? Talvez irritação.
O kaiser do Acordo Ortográfico, como lhe chamei e repito, já não deve poder
aturar os que constantemente lhe pedem que o seu ministério (MNE) seja claro e
transparente, para que não o acusem de omitir dados. Mas tem bom remédio, o bem-amado
kaiser: exiba os comprovativos. E tente justificar as datas que adiantou ao
PÚBLICO, como antes fizera ao deputado. Mas vamos a elas. Para o Acordo
Ortográfico entrar em vigor era necessário, de início, o depósito dos
“instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República
Portuguesa” (no MNE). Em 1990 previa-se que entrasse em vigor em 1994. Não
entrou, e isso levou a dois protocolos modificativos, assinados respectivamente
em 1998 e 2004, o primeiro dispensando a mirífica data e o segundo reduzindo
para três o número de Estados necessários para a validação. Só que cada um
destes documentos precisava, como é óbvio, de ser não apenas validado pelos
Estados em causa como a prova dessas validações ser depositada oficialmente em
Portugal.
Irritado? Tem bom remédio, o ministro: exiba
comprovativos. E tente justificar datas que não batem certo
O que escreveu o ministro, “para
esclarecimento dos leitores interessados”? Que “Portugal procedeu ao depósito
do seu instrumento de ratificação do Acordo Ortográfico a 30 de abril de 1996 e
depositou o instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo
a 13 de maio de 2009.” E o primeiro, ratificou-o quando? Ou esqueceu-se?
Cabo Verde, segundo o ministro,
“depositou o seu instrumento de ratificação do Protocolo Modificativo ao Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa a 5 de dezembro de 2006 e procedeu ao depósito
do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12
de junho de 2006.” Não refere a data do depósito de ratificação do próprio AO,
que Cabo Verde terá aprovado internamente pelo Decreto-Lei 26/91, de 1 de Abril
de 1991. Quando terá sido? Nesse mesmo ano? Muito mais tarde? Era importante
saber. Mas em relação a este país ainda há outra coisa, bem mais absurda. No
Boletim Oficial da República de Cabo Verde n.º 22, de 30 de Maio de 2005, foram
publicados dois decretos, ambos com a data de 30/5, um aprovando o primeiro
protocolo (4/2005) e outro o segundo (5/2005), para entrarem ambos em vigor “no
dia seguinte ao da sua publicação”, ou seja, a 31 de Maio. Isto faria sentido
se três anos e meio mais tarde não surgisse, publicado também no Boletim
Oficial da República de Cabo Verde, no n.º 47 de 14 de Dezembro de 2009, um
outro decreto, o n.º 10/2009, onde se dizia: “Considerando que o Acordo entrou
em vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007” e “tendo em conta
que, de entre outros aspectos, o protocolo [não diz qual, embora reÆra no
preâmbulo ambos, o primeiro e o segundo] já entrou em execução no Brasil (desde
Janeiro de 2009), o Conselho de Ministros determinou que em Cabo Verde a
entrada em execução do referido Acordo Ortográfico seja em Outubro de 2009.”
Pasme-se: em 14 de Dezembro determina-se que uma coisa entre em vigor dois
meses e meio antes!
Não é exclusivo de Cabo Verde, esta
“viagem no tempo”. Já em Outubro de 2010, o tradutor João Roque Dias
reproduzira no Facebook o Aviso n.º 255/2010 do MNE português, que o Governo fizera
publicar no Diário da República n.º 182 (de 17 de Setembro de 2010), em que se
informava que o Acordo Ortográfico tinha entrado em vigor em Portugal em 13 de
Maio de 2009 (data, diziam, do “depósito do respectivo instrumento de ratificação”).
Ou seja, como comentou à data João Roque Dias: “um ano, quatro meses e quatro
dias antes”. Será isto normal?!
Mas voltando a Cabo Verde. É curioso
que, garantindo o ministro que este país “procedeu ao depósito do instrumento
de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12 de junho de
2006”, o artigo 3.º do Decreto n.º 10/2009, de 14 de Dezembro de 2009, diga
isto: “O Governo de Cabo Verde deve, com a urgência possível, notificar o
Ministério dos Negócios Estrangeiros da República de Portugal, sobre a aprovação
do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e
a entrada em execução e em vigor desse mesmo instrumento normativo.” Vejam: em
Dezembro, Cabo Verde garantia que “a entrada em execução seja em Outubro”
(primeira viagem no tempo); e, depois, dizia que “deve, com a urgência
possível”, notificar o ministro de um depósito que este diz ter recebido três
anos antes (segunda viagem no tempo, ou um bom capítulo para uma qualquer
Guerra das Estrelas).
Mas porquê a data de 12 de Junho de
2006? Fácil. Porque é essa data que o ministro dá para o depósito, por parte do
Brasil, do “instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo
a 12 de junho de 2006”. Conclusão: numa miraculosa conjugação de estrelas,
Brasil e Cabo Verde entregaram a mesma ratificação no mesmo dia e ao mesmo
tempo! Só é pena que Cabo Verde se tenha lembrado, três anos e meio mais tarde,
e ainda por cima num decreto publicado, que precisava avisar o MNE português de
que ainda lhe faltava fazê-lo…
Resta São Tomé e Príncipe, para
completar o quarteto onde assenta o malfadado acordo. O que diz o ministro? “No
que diz respeito a São Tomé e Príncipe, este depositou o instrumento de ratificação
do Acordo Ortográfico, do Protocolo Modificativo e do Acordo do Segundo
Protocolo Modificativo a 6 de dezembro de 2006.” Tudo ao mesmo tempo? Vejamos:
há, de facto, uma resolução publicada no Diário da República de São Tomé e
Príncipe n.º 48, mas de 29 de Dezembro de 2006. Ou seja, posterior à data
avançada pelo ministro. Mas essa Resolução, n.º 04/VIII/06, aprovada na
Assembleia Nacional em 29 de Junho de 2006, refere-se apenas ao Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa (“cujo texto faz parte integrante da presente
Resolução”), omitindo qualquer dos protocolos que o modificaram. E não há
registo de nenhuma resolução ou decreto posterior, no diário oficial são-tomense,
que se lhes refira.
Finalizando (por agora): se Portugal
só ratificou o Segundo Protocolo em 2009, a 13 de Maio (data célebre, não
devido à ortografia mas a Fátima); se de São Tomé não se conhece registo de que
tal protocolo tenha sido mesmo ratificado; e se Cabo Verde, em Dezembro de 2009,
ainda estava a pensar notificar o MNE, “com a urgência possível”, da sua ratificação
interna, como é possível afirmar (como se lê em notas, avisos e decretos) que o
AO “entrou em vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007”? Não era
altura de tais documentos serem mostrados a uma alta instituição, independente
e idónea (talvez a Presidência da República ou a provedora de Justiça), para
deslindar, seriamente, esta monumental trapalhada?
*Jornalista.
(nuno.pacheco@publico.pt)
Público de 09.Ago.2019
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