Por António
Carlos Cortez*
A
reboque de um recente programa da RTP, o Prós e Contras, em que o tema em
destaque era a educação face a um novo paradigma pedagógico assente nos
multimédia, creio ser oportuno deixar aqui alguns princípios dos quais a escola
actual não poderá abdicar se quiser resistir contra aquilo a que, noutras
ocasiões, tenho designado por “ditadura do banal”. Havendo alguns projectos de
ensino cuja novidade pode fascinar quem se deixe iludir pelas propostas sempre
moderníssimas neste reino de boas intenções que é a educação, confesso não
partilhar do espanto e desse fascínio. Quando me falam de salas de aula onde há
computadores pergunto-me sempre onde ficam os livros.
São
muitas as razões que levam a que directores de escola e corpo docente acreditem
que permitindo o acesso aos suportes informáticos (do iPhone ao tablet e outros
de inúmera forma e feitio) as aprendizagens se consolidam. O primeiro argumento
que usam é a esgotada crença de que, desse modo, os mais jovens ficam como que
implicados e motivados para os conteúdos em presença. Não estou seguro de que
assim seja. Se, num primeiro momento, a novidade do uso dos multimédia pode dar
a impressão de que, na aula, serão novas e profundas as aprendizagens, a
verdade é que as lições de Heidegger, ou de São Basílio de Cesareia, continuam
vivas e actuais. No contacto com o texto é que o aluno pode descobrir universos
de linguagem insuspeitados. Nada se pode comparar, em concentração e exigência,
à leitura e ao convívio com a língua de tradição, essa que se opõe às “luzes
impuras” da língua técnica. E, para que a História nos auxilie, recorde-se que
os totalitarismos trazem sempre consigo o império da técnica, o léxico do empreendedorismo.
Queimar
os livros ou, como hoje, querer reduzi-los a mera curiosidade de museu, isso
mostra os caminhos sem retorno de regimes que, a pretexto da inovação, apagam a
memória e a espessura cultural de que o humano tem de ser feito.
Byung-Chul
Han, num livro essencial sobre este assunto (No Enxame — Reflexões sobre o
digital, Relógio d’Água, 2016), considera, e bem, que nesta “sociedade do
cansaço” que é a nossa, a circulação rápida das informações acelera, para além
do capital, o modo como o sujeito pós-moderno (um projecto, mais que um
sujeito, diga-se) se deixa penetrar por uma massa não filtrada de informações
(as stormshits). Não raro esse dilúvio informativo é responsável pelas IFS
(Information Fatigue Syndrom). Paralisia da capacidade analítica, ansiedade,
incapacidade de assumir compromissos, foi David Lewis quem, em 1996, provou que
esta doença psíquica deriva numa incapacidade de pensar. “O excesso de
informação conduz à atrofia do pensamento”, dizia Byung-Chul Han.
Ora,
uma escola que se transforme num lugar onde o pensamento é substituído pelo
permanente fluxo de ícones é uma escola que despreza o seu passado e ignora a
importância da palavra. Isto é: da linguagem. E não é disso mesmo que os
professores hoje se queixam? Seja em que grau de ensino for, não estamos
perante crianças e jovens, alunos do 1.º, do 2.º ou do 3.º ciclos, e do
secundário, ou até mesmo na universidade, incapazes de seleccionar informação,
de relacionar conceitos e factos? Não é evidente para quem lecciona que, desde
há uns bons 15 a 20 anos a esta parte, os mais jovens carecem de um vocabulário
alargado? Não é verdade que os textos expositivo-argumentativos, insertos no
Exame Nacional de Português, põem a nu as fragilidades dos nossos jovens no que
respeita ao saber histórico-cultural e à redacção de um discurso lógico? Os
exemplos que elencam, na maior parte dos casos, não são simplesmente casos
pessoais, redundando ora na superficialidade, ora no tom opinativo? Sem hábitos
de leitura de textos de teor crítico-ensaístico, sem capacidades de inferência,
sem o domínio dos mecanismos de coesão e coerência, e sem domínio referencial,
não vemos o modo como falam e escrevem na escola e na universidade? Não é tudo
isto verdade? Ainda mal. É precisamente por isto que o computador em sala de
aula deve ser usado com parcimónia e bom senso.
Nada se pode comparar à leitura
e ao convívio com a língua de tradição, essa que se opõe às ‘luzes impuras’ da
língua técnica
O
paradigma de uma sociedade transparente, em que o privado tem de ser mostrado
pois só assim se julga estarmos a fazer democracia, esse é um modelo
erradíssimo quando aplicado à pedagogia e à vida social no seu todo. “O aumento
da informação não é suficiente para esclarecer o mundo”, diz o filósofo
sul-coreano, acrescentando: “A fadiga da informação é também responsável por
sintomas que são característicos da depressão. A depressão é [...] uma afecção
narcísica. É uma relação excessiva e patologicamente investida do indivíduo
consigo próprio [...]. A percepção do sujeito narcísico-depressivo capta apenas
o eco de si próprio [...]. O mundo surge-lhe como reduzido a variantes da sua
pessoa.” (p. 75).
Pois
não é justamente esse naufrágio em si próprio que vemos acontecer a muitos dos
nossos alunos, os quais não viveram na escola senão a mesma ideologia da
estupidificação que vivem, em regra, no seu quotidiano? Que utopia existe na
escola? Que ideal educativo? Que programa cultural pode elevar o nosso ensino a
mais que a famigerada finalidade oca dos exames? As redes sociais, do Twitter
ao Facebook, agudizam essa visão de mundo dependente de uma falácia perigosíssima
para a educação: aceitar que a escola, para ser sedutora, deve reproduzir a
sociedade digital que a rodeia. As massas de dados com que os alunos e professores,
reféns desta ideologia do psico-poder, terão de lidar eclipsará o conhecimento
(capacidade de análise), e pode mesmo minar a Democracia. Transformadas as
instituições em lugares onde ao spectare latino (”spectare” é
olhar para trás, pressupondo uma compreensão do tempo, da durée e da
lentidão na leitura e na escrita) se sobrepõe o espectáculo, que escola
é a nossa? A relação pedagógica deve estar ancorada naquele respeito (respectare)
que eleva o aluno a um patamar de sujeito construtor de conhecimento. Quando a
escola aposta no sujeito transformado em projecto cai-se na escola-espectáculo:
digresssiva, ululante, sem um horizonte a que apontar e de que a civitas
e não o sucesso deveria ser o farol. A escola, como outras instituições, sem
respeito, decai e “Uma sociedade sem respeito desemboca numa sociedade do
escândalo” (Han, 2016:13).
É
por isso que o livro e a leitura e a escrita não podem ser postos de parte. As
formas electrónicas devem estar ao serviço do livro impresso e da redacção. Ler
implica anotar e sublinhar; exige tempo. Escrever é o fruto de um silêncio
contemplativo (à letra: “Construção do tempo”) e é disso que a escola
necessita: de tempo para ler e comentar por escrito; pensar a linguagem
literária e transferir o saber literário para um discurso científico. Nessa
aliança, a criança e o jovem não necessitam do computador em sala de aula, meio
da excitação permanente dos sentidos, mas inimigo do Belo e da Consolação pelo
Belo a que Steiner se tem referido. A perenidade do livro permanecerá, não
duvido. O livro e a leitura da sintaxe e semântica de um dado idioma, é isso
mesmo que pode impedir que o Mal da Banalidade vença a guerra da educação —
nunca uma escola pensada para o imediato vingou. A leitura lenta e expressiva
de um poema de Camões, a leitura comentada de um ensaio sobre a filosofia ou os
belíssimos escritos sobre ciência e humanidades em Hegel ou Oppenheimer, em
Einstein ou em Bento de Jesus Caraça, mesmo a análise de uma equação, não exige
tudo isso ponderação e silêncio? Uma sala de aula com mil e um ecrãs... isso é
convidar à indigência. A coacção do Google Glass elimina o respeito: essa
distância sedutora que o aluno sente quando está perante o professor que ama os
livros e não os ridiculariza em nome de qualquer espectáculo.
*
Poeta, crítico literário e professor
(Público
de 24.Jul,2019)
1 comentários:
Um excelente texto! Deve e merece ser lido e analisado pelos nossos professores e pelos Responsáveis da Educação.
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