Quando, neste momento, se fala na
necessidade de uma clarificação interna no seio do PAICV, face aos últimos
desaires eleitorais sofridos e à aparente fragilidade da sua actual direcção,
há razões para interrogar nos seguintes termos:
Em que medida o problema interno do PAICV é transversal a todo o
território nacional? Ou em que grau uma reflexão interna sobre o presente e o
futuro do partido suscitará o ânimo interventivo de militantes das ilhas da
chamada periferia, nomeadamente da segunda mais populosa, S. Vicente?
Estas perguntas são pertinentes porque não vejo que a iniciativa das
bases do PAICV venha a ter algum significado político relevante que não se
restrinja à ilha de Santiago, ou, mais propriamente, à realidade sociológica
viciosa e nociva para o país em que se tornou a “Praia”. Esta designação,
a “Praia”, utilizo-a como uma alegoria do poder centralizado e concentrado na
capital do país, que foi, e é, causa directa do crescimento desmesurado
ocorrido nessa ilha, particularmente reflexivo na cidade capital, tanto a nível
demográfico como de progresso material. Mas mal nenhum haveria naquele
crescimento desmesurado, naturalmente entendido à nossa escala de
quantificação, se o seu contraponto não tivesse sido a assimetria provocada no
território nacional, prejudicando principalmente a ilha de S. Vicente. De
resto, hoje ninguém ignora que houve um claro propósito de revanchismo político
em relação a S. Vicente, no sentido de um pretenso ressarcimento de Santiago
por alegados privilégios fruídos pela ilha do Porto Grande durante a
administração colonial. Como o Professor José Fortes Lopes muito já escreveu
sobre este tema, não será necessário alongar este artigo com aquilo que já é do
domínio público.
Aliás, só recuperei o assunto, à laia de intróito, porque entendo que a
contínua e desenfreada transferência de massa crítica para Santiago/Praia, a
partir das outras ilhas, tinha de reflectir-se, mais tarde ou mais cedo, na
expressão territorial da actividade político-partidária, embora talvez nunca se
esperasse que o desequilíbrio viesse a ser tão acentuado. Assim, era inevitável
que o nervo da política se embutisse mais profusamente onde o aparelho do
Estado se instalou maciçamente, onde medram as oportunidades de ascensão social
e sucesso profissional, onde se criam as redes de interesse com as suas
espúrias conexões, onde nascem as cumplicidades e os compromissos de vária
ordem, ou seja, no único lugar onde o tecido social encontra a espessura
necessária e suficiente para estimular a actividade política.
Este circunstancialismo conduziu a que a política cabo-verdiana fosse quase
exclusivamente lavrada no chão da ilha de Santiago, pelas mãos dos seus
naturais e com uma visão tendenciosamente influenciada por uma matriz de
pensamento que não reproduz a diversidade das idiossincrasias nacionais. Prova
concludente desta realidade é os governos de Cabo Verde serem compostos quase
só por cidadãos de Santiago, o mesmo acontecendo com outros cargos relevantes
do Estado. Alguma excepção nominal que possa ocorrer é apenas para confirmar a
regra. E isto independentemente do partido que está no governo, como é aliás
flagrantemente notório com o actual, tal como o foi com o anterior. Se outra
prova não houvesse da afronta aos princípios basilares da harmonia democrática,
bastaria a evidência da chancela genética santiaguense nos elencos
governamentais e em outras instituições e organismos do país.
Portanto, não é crível que qualquer transformação que possa ocorrer no
seio do PAICV tenha protagonistas de peso que não radiquem na ilha de Santiago,
naturais ou residentes. Desta forma, não será estulto admitir que o principal
móbil da pretendida renovação do PAICV seja continuar a privilegiar o domínio
dessa ilha sobre as outras, salvaguardando a realidade estanque e irredutível
em que se converteu a capital do país: o poder centralizado e
concentrado. Por alguma razão, o PAICV de José Maria Neves nunca encarou a
sério a ideia de empreender a descentralização do poder, ou de promover
qualquer reforma do Estado que desmantele a capital macrocéfala, tendo sempre
utilizado estratagemas de diversão como o simulacro de debates e cimeiras sobre
regionalização que se constituíram na mais despudorada mistificação. Nessas
cimeiras, mormente na última, o artifício foi tal que nem sequer houve pudor em
convidar um especialista estrangeiro na matéria, que deve ter ficado intrigado
por ouvir os intervenientes falar de tudo menos de regionalização.
Poder-se-ia enaltecer a intenção de revitalizar o PAICV no sentido de o
relançar como força de oposição eficaz e tendo em vista o interesse nacional.
Mas não, receio que qualquer arrumação interna que venha a acontecer no partido
vise apenas, ou principalmente, disputar com o actual governo o protagonismo
para manter a hegemonia irrevogável da “Praia” sobre todo o território.
Provavelmente, não está em causa reavaliar a política que vem sendo praticada
no partido, quiçá redefinir a sua linha ideológica, ponderar formas de acção
conducentes ao repensar do país como um todo a precisar de profundas reformas,
tão necessárias à sua sustentabilidade económica, para não dizer à viabilidade
da sua independência. Nada disso, o que mais deve preocupar os paicvistas é a
galopante perda de terreno que estão a sofrer a olhos vistos, com as suas implicações
não apenas no terreno político, mas sobretudo no plano dos interesses pessoais
e partidários. Ninguém ignora que a actividade política se degenerou na nossa
terra, como aliás acontece um pouco por todo o lado, com a democracia a despir
o seu manto de virtudes e a tornar-se uma autêntica farsa.
Por conseguinte, o país precisa de muito mais do que uma clarificação
interna do PAICV. Precisa como de pão para a boca de uma profunda reforma para
acertar com o caminho do futuro. Precisa de alterar a sua organização
político-administrativa, implementando a descentralização e adoptando um modelo
de regionalização que reparta o poder por todas as ilhas. Por enquanto, resta
esperar que o actual governo cumpra integralmente a sua promessa eleitoral de
viabilizar o processo da regionalização, levando a debate parlamentar a
proposta de um determinado modelo e o “modus operandi” da sua implementação.
Na verdade, a oportunidade da reflexão interna no seio do PAICV devia
servir, não para disputa de protagonismos de liderança no partido, mas para ele
se retractar pela estratégia política errada em que persistiu ao longo de anos
e cuja consequência mais nefasta se traduziu no reforço do centralismo político
e na hegemonia santiaguense sobre todas as restantes ilhas. A renovação do
partido, a almejar verdadeiramente o interesse nacional, deveria passar por
disputar com o governo do MpD a primazia das melhores soluções para desmantelar
a realidade pétrea que é a capital do país. Descentralizar o poder poderia,
também, e não menos importante, abrir a via para a renovação do xadrez político
no país, mercê de uma nova pulsão à actividade cívica e partidária em todas as
ilhas, abrindo caminho para que a governação incorpore cidadãos de outras ilhas
e não exclusivamente da ilha de Santiago.
E, no fundo, para que a democracia em Cabo Verde sofra um arejamento e
se afirme na plenitude dos seus valores.
Tomar, 15 de Novembro de 2016
Adriano Miranda Lima
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