Por
nos parecer muito interessante e bastante clarificador da génese geológica das
nossas ilhas e da sua localização e identificação no contexto geográfico,
assunto “dogmatizado e mitificado” como argumentário para derivas várias,
tomamos a liberdade de publicar o texto adiante, com a devida vénia ao autor, a
quem agradecemos a valiosa contribuição e felicitamos pela sua capacidade de
síntese e clareza de exposição.
Por José
Carlos Mucangana
Hoje,
todos parecem acreditar e muitos continuam a afirmar, leigos e conceituados
especialistas, que o arquipélago se encontra em África.
Jorge
Querido (2011, Um demorado olhar sobre Cabo Verde, 342 p., Chiado
Editora, Lisboa ou Praia?) escreve peremptoriamente: “Todas ilhas do
arquipélago cabo-verdiano, sem excepção, são de origem vulcânica”,
esquecendo-se que a ilha de Maio resultou dum movimento tectónico, que trouxe à
superfície sedimentos pelágicos depositados a cerca de 2.000 metros de
profundidade (Frederico Machado, 1967, Geologia das ilhas de Cabo Verde, Junta
de Investigações do Ultramar, Lisboa, 25 p.). Depois afirma que “as dez ilhas e
algumas ilhotas” (oito mais precisamente) “se situam sobre a vertente da
plataforma continental africana”. Poucas linhas mais adiante, lembra que “as
ilhas estão separadas da costa africana por fundos que, em muitos pontos,
ultrapassam largamente os 3.500 metros de profundidade”.
Como
é que Jorge Querido, um conceituado especialista na matéria, quer prolongar a
plataforma africana ou a sua “vertente” para ocidente destes fundos oceânicos,
onde se encontram as dez ilhas e os oito ilhéus do arquipélago? Esses fundos
oceânicos separam obviamente o arquipélago do continente a que ele chama “nosso”
e o arquipélago está fora do continente de Jorge Querido.
Desde
o século XIX, os geólogos nunca consideraram os arquipélagos da Madeira e de
Cabo Verde como uma dependência de África, atendendo à grande profundidade dos
mares que os separam deste continente (Fig.1). Esta conclusão foi tirada muito
antes do aparecimento da teoria tectónica de placas, que só veio confirmá-la e
procurar explicá-la.
Os
arquipélagos da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde são de formação mais
antiga do que dos Açores. Mas, vejamos primeiro o que são ilhas vulcânicas.
Trata-se de vulcões submarinos, que são muito numerosos, dando relevo aos
fundos oceânicos e às planícies abissais. Só alguns crescem e se levantam acima
do nível das águas para formar ilhas.
Há
ilhas vulcânicas de dois tipos: As do primeiro tipo como os Açores, a Islândia
e a ilha de Santa Helena, pertencem a uma dorsal vulcânica médio-oceânica, ou
cordilheira de montanhas submarinas, que divide os oceanos em duas bacias.
Nesta dorsal a crosta ou litosfera oceânica abre-se, deixando sair lavas
basálticas que se vão solidificando para formar nova litosfera oceânica dum
lado e doutro da dorsal, ocupando assim o espaço libertado pelo afastamento dos
dois novos continentes, um do outro, no nosso caso o Brasil ou a América do Sul
a ocidente e a África a oriente. Há ainda outro tipo de ilhas vulcânicas, que
resultam da passagem das placas de litosfera oceânica deslizando sobre o manto
(Fig. 2), por cima de pontos (na realidade zonas de mais de 100 Km de dimensões
horizontais) de acumulação de calor neste manto.
Estes
pontos quentes ou penachos de calor, fundem as rochas do manto e da litosfera
oceânica dando origem a Câmaras de magma, que se descarrega periodicamente,
rasgando a litosfera oceânica e formando arquipélagos de ilhas alinhadas. Estão
neste caso o arquipélago de Hawai, onde o movimento da placa oceânica em
relação ao manto é rápido (cerca de 10 cm/ano), os arquipélagos das Canárias,
Madeira e Cabo Verde, que se deslocam mais devagar, a menos de 1 ou 2 cm/ano
relativamente ao ponto quente correspondente do manto. Todos eles são formados
por montanhas submarinas e ilhas alinhadas em cadeias, com o respectivo ponto
quente do manto, cuja posição é conhecida ou extrapolada.
Em
Cabo Verde há duas cadeias de ilhas alinhadas, a do Norte (Santo Antão, São
Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, esta alongada no sentido do alinhamento, Boa
Vista e Sal, que fica fora do alinhamento e a Norte deste e a do Sul (Brava,
Fogo Santiago e Maio). Os eixos das duas cadeias fazem um ângulo inferior a
40º, cujo vértice está a 21º 45’ de longitude W e 15º 40’ de latitude N. Neste
vértice encontra-se um monte submarino, chamado Monte Cabo Verde (Fig. 1). As
ilhas de Maio, Boa Vista e Sal com o parcel de João Valente, entre Maio e Boa
Vista a 20 m de profundidade, certamente uma antiga ilha erodida, alinham-se
grosseiramente num eixo SSSW-NNNE de fraca curvatura, cortando o ângulo agudo
das outras duas cadeias e dando ao conjunto do arquipélago a forma de uma
ferradura aberta para o ocidente.
O
alinhamento das ilhas em duas cadeias diferentes e uma terceira cadeia de que
faz parte o parcel de João Valente indica que o movimento da litosfera oceânica
não tem sido uma simples translação, houve rotação e mudança de direcção da
translação da placa, quando o continente africano e a Península Arábica embateram
com a grande placa euroasiática a Norte. A abertura do Grande Rifte ou sistema
de falhas dos lagos da África Oriental também pode ter perturbado este
movimento. O terceiro alinhamento das ilhas em arco de círculo pode ser o
resultado duma tectónica profunda.
As
ilhas de Sal e de Maio são as mais antigas; a sua formação, sem contar os
complexos de base e os seus socos, inacessíveis à colheita directa de amostras para
datação, iniciou-se há cerca de 17 Ma (milhões de anos). A ilha de Maio não
apresenta vulcanismo recente, contrariamente a todas as outras. Está num
processo de erosão, que é compensado por um movimento de levantamento vertical
(José Ricardo Ramalho, Rui Quartau, Alan Trenhaile, George Helffrich, José
Madeira, Sónia S. D. S. Victória e Daniela N. Schmidt, Why have the old Cape
Verde islands remained above sea level? Insights from field data and wave erosion modeling,
http//www.webpages.uidaho.edu/dgeist/Chapman/Ramalho_AGU_erosion.pdf).
A
formação das outras ilhas datadas não vai além 6 Ma (Santiago, São Nicolau, São
Vicente) ou 3 Ma para Santo Antão. A ilha do Fogo com o seu vulcão activo é a
mais jovem e está em fase de construção. A idade das ilhas de Boa Vista, Santa
Luzia e Brava não são bem conhecidas, só foi extrapolada das ilhas mais próximas
(Ricardo Alexandre dos Santos Ramalho, 2011, Building of Cape Verde Islands,
Springer Verlag, 207 p.)
Todas
estas ilhas estão no cume e no centro de uma elevação arredondada ou abóbada
dos fundos submarinos, que é a maior do mundo com mais de 1500 m de altura e um
diâmetro lateral de cerca de 1500 Km. A espessura da litosfera oceânica de 7 Km
entre as ilhas é normal. Trata.se duma abóbada ou inchamento do próprio manto.
A estratigrafia da ilha de Maio indica que o movimento de elevação desta
abóbada atingiu 2000 m no fim do Mioceno e início de Oligoceno e que esta
elevação foi contemporânea do início da actividade do ponto quente. Ao sul
desta elevação encontra-se a planície abissal da Gâmbia e a pequena abóboda da
Serra Leoa, ao norte a planície abissal entre Cabo Verde e Madeira, a ocidente
as duas planícies abissais unem-se na planície abissal de Cabo Verde, que se
prolonga à dorsal médio-atlântica e a oriente a abóboda de Cabo Verde com a sua
litosfera oceânica esbarra com o continente africano ou prolonga-se por debaixo
deste.
O
movimento lento e complicado da placa oceânica praticamente estacionária em
relação ao penacho de calor, ou ponto quente do manto e as rupturas tectónicas
e movimentos verticais desta placa, são os dois factores, que combinados podem
explicar a origem das ilhas e a forma do arquipélago.
A
origem das ilhas não é puramente vulcânica, há intervenção da tectónica
profunda e da sedimentação no fundo oceânico; as ilhas não são simplesmente
vulcânicas. Além de rochas vulcânicas compreendem rochas sedimentares antigas e
depositadas a grandes profundidades (ilha de Maio). Em Santiago, Boavista,
Maio, S. Vicente, Brava, encontram-se rochas plutónicas macrocristalinas
alcalinas, pobres em sílica, e também gabros. Citemos ainda os carbonatitos de
Brava e Fogo para sublinhar a complexidade litológica das ilhas. Faltam porém,
em todas as ilhas, as rochas ácidas graníticas e metamórficas características
das litosferas continentais (Ramalho 2011). Estas ilhas não têm nada que se
assemelhe a um continente. Contrariamente a Madagascar, Cabo Verde não é um
pedaço de continente, um pequeno continente, que teria ficado entre África e
Brasil, quando o continente primitivo, Gonduana se fracturou e desintegrou, ou
que se teria separado tardiamente de África. Também não é um micro-continente,
como o Arquipélago do Almirante (República de Seychelles), que se separou de
Madagascar com a Índia, para depois se separar desta e que compreende um
conjunto de ilhas graníticas. Cabo Verde será talvez um microcontinente, uma
pequena placa, que falhou no seu desenvolvimento, ficou incompleta, sem crosta
continental e não chegou a ser placa continental.
A
tectónica de placas não é tão simples como parece na sua apresentação
esquemática. As placas nem sempre deslizam sobre uma astenosfera, ou manto
superior, bem lubrificada; a superfície de contacto nem sempre é uniforme
mecanicamente (viscosidade, resistência à ruptura) e quimicamente; compreende
asperidades variadas, é rugosa; pedaços da litosfera continental inferior podem
ser arrastados à superfície da astenosfera como talvez tenha acontecido no
arquipélago e sua abóbada oceânica.
As
ilhas Canárias estão só a cerca de 100 Km da plataforma ou margem do continente
africano. Porém, não pertencem ao continente, nem estão relacionadas com a
tectónica norte-africana nem com o grande acidente tectónico activo de Agadir,
sensivelmente alinhado com elas (J.C. Carracedo et al., 1998, Hot spot volcanism close to a passive continental
margin: the Canary islands Geol. Mag., 135, 5, p. 591-604).
As
ilhas de Cabo Verde encontram-se a distâncias de 450 a 600 Km do continente
mais próximo que é o africano. Estão mais longe de África do que a Madeira, que
os madeirenses nunca pretenderam considerar como fazendo parte do continente
africano.
A
plataforma ou margem continental da África (Fig. 3) é estreita e só se alarga na
África do Sul e no canal de Moçambique (Fig. 4). A sua largura é de 20-25 Km,
em média, ao longo da costa Atlântica.
Fig. 3. A
plataforma continental prolonga o continente sob as águas do oceano até uma
profundidade de 200 m, com larguras variáveis de alguns a poucas dezenas de
quilómetros. O continente acaba por um talude íngreme entre 200 m e mais de
3000 m de profundidade (Wikipedia)
Fig. 4. Mapa
simplificado do continente africano com a sua plataforma continental geralmente
estreita (Wikipedia)
Como
é que Jorge Querido desejaria encaixar o arquipélago completo de dez ilhas e
oito ilhéus, mais um parcel e um monte submarino na estreita plataforma do
“seu” continente e no talude ainda mais estreito desta plataforma? As ilhas
grandes não cabem lá, quanto menos o arquipélago! Só as “ilhotas” lá caberiam,
com as suas pequenas dimensões; o arquipélago só lá cabe em mitos delirantes ou
disparates irreflectidos…
Felizmente
os recursos do oceano à volta de Cabo Verde pertencem exclusivamente à
República de Cabo Verde. Não pode haver disputa com nenhum país africano,
americano ou europeu. Os países da África Ocidental exercem as suas jurisdições
nos troços de plataforma continental delimitados ou a delimitar relativamente
às suas fronteiras terrestres, o que é o caso da Guiné, por exemplo. Cabo Verde
não está, nem nunca esteve em África.
Com
efeito e resumidamente, o estudo da sua geologia, geoquímica e geofísica só tem
comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e
das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence à litosfera oceânica, não
faz parte de continente nenhum. Está fora do continente africano e da sua
estreita plataforma e separado desta por profundidades superiores a 3.500 m,
como atinadamente lembrou Jorge Querido.
O
mesmo se pode dizer das ilhas e arquipélagos do Oceano Índico. A grande ilha de
Madagascar é um pedaço de continente ou um pequeno continente, que se separou da
África, mais precisamente de Moçambique, a seguir à Austrália e ao
Subcontinente Indiano. É de origem tectónica, com vulcanismo e rochas
vulcânicas na sua periferia onde houve ruptura do grande continente pré-existente,
o continente Gonduana. O arquipélago do Almirante é um pedaço de continente
ainda mais pequeno. A formação dos Arquipélagos das Mascarenhas e do Comoro
está ligada a pontos quentes do manto.
Está
assim bem estudado e documentado, que as dez ilhas, oito ilhéus, um parcel e um
monte submarino do arquipélago, pertencem ao Oceano Atlântico.
Contrariamente
à linguística, o estudo da geologia do arquipélago não foi descurado, nem
politizado pelos investigadores cabo-verdianos e portugueses, que trabalham em
equipa e se apoiam mutuamente.
Foi
recentemente publicado o livro acima referido (Ramalho, 2011), que reúne e
interpreta os conhecimentos adquiridos até à data sobre a formação deste
arquipélago oceânico. Mas a formação das ilhas e do arquipélago ainda não foi
bem compreendida; as investigações continuam. Tampouco ainda não foi bem
estudada a tectónica da África Ocidental, que aparenta estabilidade, mas
apresenta uma sismicidade notável com movimentos horizontais entre
compartimentos separados por falhas e movimentos verticais, com as rias da Guiné
a afundarem-se enquanto se eleva o Futa Djalon. Serão estudos apaixonantes a
fazer pelas novas gerações de geólogos cabo-verdianos, dispostos a esquecerem
os mitos e porem-se a trabalhar para acertar o relógio cabo-verdiano, como já
diziam os Claridosos (Jorge Barbosa, 1936, citado por Arnaldo França, em
Baltasar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, Praia, 365
p.), ou melhor, no caso da geologia, mantê-lo acertado e, quem sabe, adiantá-lo.
Tudo depende deles.
Extraído
de Artiletra Nº 128/129 de Abril/Maio de 2015
1 comentários:
Uma abordagem clássica, em termos geológicos, da origem das nossas ilhas que nem por isso – ou talvez por isso mesmo – deixa de ser excelente e elucidativa.
O autor delega nas próximas gerações de geólogos cabo-verdianos, seguramente, apoiadas em metodologias e ferramentas de investigação mais avançadas, o aprofundamento da questão.
Apenas dois breves ajustamentos: o 1º é relativo ao facto de assinalar a complexidade da geologia de Cabo Verde com a presença de carbonatitos – uma rocha magmática, ou ígnea, pouco comum – apenas nas ilhas de Fogo e Brava. Talvez seja um esquecimento, uma vez que também em Santiago, mais precisamente na ribeira da Barca e Tarrafal (Norte de Monte Graciosa) há também presença de carbonatitos. Na “Geologia de Santiago” de A. Serralheiro entre o que ele classificou de calcarenitos, foram depois identificados nos locais que referi, por L. Celestino de Sousa e Silva, carbonatitos.
Um outro ajustamento, diz respeito a ausência de eventuais conflitos com países vizinhos. Aqui o autor não teve em conta que a ZEE (zona económica exclusiva) estende-se a um raio de 200 milhas marítimas e o espaço (450 a 600 Km) que separa Cabo Verde dos seus vizinhos continentais é uma distância bem inferior a 2 X 200 milhas marítimas – 200 para cada país. Haverá e há, portanto, zonas de sobreposição que poderiam ser de potenciais conflitos.
Não deixo, contudo, de felicitar o articulista pelo seu oportuno e pedagógico artigo.
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