Já lá vão quase dez anos,
José Fortes Lopes lançou um repto ao grupo dos seus ciber-correspondentes mais
chegados, em que me incluo, no sentido de uma franca e aberta troca de ideias
sobre a situação política e social de Cabo Verde. De então a esta parte, muita
água correu debaixo da ponte que iríamos construir entre as nossas idealizações
e a nossa vontade comum de pugnar pelo bem da nossa terra.
No contexto de um diálogo
entabulado e já arquivado na nossa memória, recupero o que ambos afirmámos a
certa altura, por entender que tudo se mantém actual. Disse o José Lopes:
“Efectivamente, há dois
observadores da realidade de Cabo Verde: os insiders,
residentes, e os outsiders, que
incluem a diáspora e os observadores externos ou internacionais. Se por um lado
o insider pode ter uma visão micro do
que se passa no país, capturando os detalhes, se não estiver armado de bagagem intelectual
e espírito crítico suficientes, poderá só ver os detalhes, algumas árvores, mas
não toda a floresta. O outsider
poderá ter alguma vantagem em ver a fotografia macro, do conjunto, de fora e de
longe, sem todavia poder aperceber-se dos detalhes. Nalguns casos a mesma
pessoa pode ser insider e outsider.
Pode acontecer, como realça o Adriano Miranda Lima, que o outsider se enriqueceu de outras realidades e ganhou assim vantagem
sobre um insider umbilical. O ideal é
alguém que esteja entre o insider e o
outsider, alguém que tenha tido
também uma longa vivência fora de Cabo Verde e que agora aí reside”.
A este juízo certeiro e ponderoso, retorqui nos
seguintes termos, corroborando o pensamento do meu interlocutor:
“Penso que acertaste em
cheio na metáfora da floresta e da árvore. O outsider está para a floresta assim como o insider para a árvore, se bem que o primeiro também pode, à
distância, enfocar a árvore junto da qual permanecem os seus familiares ou
amigos residentes na terra e de quem recebe inputs
constantemente. O outsider não pode é
ser excluído do debate nem olhado com suspicácia, quantas vezes acusado por
alguns espíritos mesquinhos de se resguardar numa cómoda posição de observador
à distância em vez de assentar arraiais na terra natal. Ora, se Cabo Verde é um
país diasporense, é inaceitável criar barreiras mentais e artificiais entre os
seus filhos em função da maior ou menor lonjura em que vivem. A história do
país, se bem analisada e interpretada, só tem de enaltecer o protagonismo da
emigração, como amiúde vem lembrando o sociólogo Luiz Andrade Silva, emigrante
em França.
Para termos uma noção dos
diferentes níveis de focagem em que pode incorrer a observação da realidade, há
poucos dias perguntei a um amigo como iam as coisas na terra e a resposta foi
que tudo estava bem, fazendo-me ver que, felizmente, sem as cores sombrias com
que as notícias públicas pintavam, à data, a situação portuguesa. Estávamos a
sofrer os primeiros efeitos da crise de 2008. Ora, aí tínhamos um olhar optimista
ou acomodado à aparência da árvore local, com o seu quê de ilusório. Olhar
optimista porque a avaliação local pode estar privada de variáveis só
perceptíveis à distância e mediante uma maior amplitude da bitola. Olhar
acomodado porque a habituação ao real materializado numa circunstância
restrita, pode induzir a considerar como natural um quadro de privações menos
comum ou menos aceitável numa perspectiva mais alargada.”
Disse a seguir o meu
correspondente, e com real fundamento:
“Presentemente, a fotografia
macro que Cabo Verde oferece ao outsider
é de manchas e nuvens cinzentas a pairar sobre o horizonte: da democracia e do
estado de direito, da organização interna do país, dos problemas de
auto-suficiência e da sustentabilidade do país, da energia, da água, da
segurança, da paz social, etc. É claro que nesta fotografia estão incluídos os
avanços indiscutíveis nos últimos 40 anos, e não podia ser diferente.”
Reanalisando, na
actualidade, o teor da nossa conversação, é indubitável que o José Lopes pintou
bem a floresta mas sem deixar de retratar o perfil de algumas árvores. Na
altura, parecia que o comum das pessoas se convencia de que a onda de choque da
crise financeira mundial não iria atingir a nossa terra. Mas a pergunta que
devia colocar-se, com toda a pertinência, era até quando iriam manter-se os
equilíbrios macroeconómicos que vinham sendo conseguidos à custa da
providencial ajuda externa, que, verdade seja dita, não fora delapidada ou
desviada para fins ilícitos, como aconteceu com alguns países beneficiários.
Isto porque se países dotados de recursos naturais e infra-estruturas
industriais avançadas estavam a braços com a grave crise do sistema financeiro
mundial, como admitir que Cabo Verde poderia sobreviver à mesma sem sentir os
seus efeitos gravosos, directa ou indirectamente, e sempre com o risco de
reeditar situações dramáticas como em outros tempos da sua história?
Aliás, independentemente de
crises conjunturais, o pano de fundo da nossa realidade humano-geográfica é
marcado indelevelmente por ciclos naturais que nos aprisionam e tendem a
condicionar a nossa existência se não os enfrentarmos com uma atitude desassombrada,
realista e em permanente reavaliação das metodologias e dos procedimentos no
campo político. O cenário de incerteza, ou a sua iminência, é um espectro que
paira sempre sobre o país, a desafiar quem tem a responsabilidade da
governação. Por isso, hoje é cada vez mais nítido que uma renovação do tecido
partidário, como defende José Lopes, assim como uma profunda reforma do Estado
e uma cidadania mais dinâmica e actuante, são condições essenciais para
reagirmos aos desafios de um futuro que não se adivinha benfazejo.
Ora, o tecido partidário só
pode reformular-se, actualizando-se, mediante um debate ideológico que permita
uma mais rigorosa clarificação da identidade de cada força política, em
especial as do arco da governação. Para o senso comum, o PAICV e o MpD são as
duas forças partidárias que em Cabo Verde representam a dicotomia entre a
Esquerda e a Direita, cuja diferença ideológica é, lato sensu, aferida pelo pêndulo entre a promoção das políticas
sociais e o grau de liberalização da economia. Mas sucede que os dois partidos
têm a sua génese num contexto revolucionário ou de ruptura com as suas
incidências, pelo que, decorrido todo um tempo de vida democrática em que a
poeira foi assentando, é natural que se imponha agora uma reavaliação e
redefinição da sua linha ideológica e da sua prática política, em ordem a uma
relativa diferenciação identitária entre ambos, para evitar o juízo popular que
vem sendo recorrente: “é tudo a mesma coisa”.
No entanto, reconheça-se que
em Cabo Verde, pelas suas limitações, essa dialéctica não tem grande margem
para alimentar todas as expectativas, como certamente ninguém ignora. Com
efeito, e por exemplo, como pode o mercado assumir rédea larga e livre num país
de parcos recursos e em que o atractivo para o investimento se resume
praticamente ao sector do turismo? E, por outro lado, como sustentar o estado
social sem uma economia razoavelmente consistente e progressiva? Esta
constatação pode induzir que, mercê das circunstâncias geoeconómicas, e também
das nossas fatalidades naturais, os governos são obrigados a ater-se a um certo
pragmatismo na sua acção governativa, mas não parece líquido que tenham de
ficar reféns das circunstâncias, incapazes de afirmarem a sua própria
identidade na forma de encarar e resolver cada problema concreto.
Nesta conformidade, o que
pode então diferenciar os partidos políticos? Ou seja, em que medida os principais
partidos podem distinguir-se nitidamente no plano ideológico e dentro do
contexto económico-social que caracteriza o país? Este é o desafio e caber-lhes-á
a devida resposta. Se a diferenciação não é muito plausível na sua
substancialidade a ponto de gerar políticas sociais e económicas que no plano
ideológico se distingam na sua essência, nas vias, nos métodos e nos objectivos,
será sempre de esperar que ao menos o tentem no plano da ética política e da
exemplaridade da sua conduta perante o país. Aqui estão dois aspectos que,
refinados, contêm matéria para uma base de emulação entre os partidos e, porque
não, fundacional de uma doutrina conceptual cujo grau de observância e
aplicação poderá configurar a diferença que norteará a adesão do eleitor.
Recorrendo a uma imagem alegórica, dir-se-á que as circunstâncias são de uma
tal exigência no nosso país que os políticos têm de ser morigerados e rigorosos
na sua conduta pública, devendo envergar, no seu quotidiano, o fato-macaco em
vez de fato e gravata do último modelo, e, nas suas deslocações, preferir o
jeep à mercedes luzidia. Não podem encarar o múnus político como um trampolim
para um rendoso tacho futuro. Servir o povo de Cabo Verde deve ser o móbil dos
seus anseios, a realização pessoal mais engrandecedora.
E não tenhamos ilusões, tem
de se remunerar condignamente, e dentro das possibilidades, quem se disponha a
dar a cara e a arrostar os sacrifícios pessoais da governação, porque estes são
iniludíveis. A compensação moral, essa, é absolutamente justa e necessária, e
exigível, e só pode rever-se na boa prática política e nos seus resultados
concretos e visíveis. É sobretudo nestes requisitos, que não apenas no discurso
retórico, muitas vezes vazio, que o eleitorado colherá a motivação e o alento
cívico, inspirado no exemplo dos governantes, para não se furtar aos actos
eleitorais e para fazer as suas escolhas conscienciosamente. Digamos que
aqueles princípios devem ser os principais mobilizadores do pensamento
ideológico e da prática política, os mandamentos que devem nortear a acção de
quem se compromete a servir o país.
Todavia, e retornando à
nossa realidade nua e crua, penso que Cabo Verde é um país que não pode
descurar uma protecção social mínima, dentro da margem de acção consentida aos
governos, pois não é previsível que a iniciativa privada alicerçada no mercado
livre consiga ser a mola real da política social. Até porque também não é crível
que possa vir a florescer no horizonte mais próximo uma economia liberal capaz
de assumir proporções condizentes com as exigências de uma parceria social com
suficiente relevo. Apenas a expectativa num maciço investimento externo no
turismo poderia abrir um olhar prospectivo nessa direcção, mas não somos
ingénuos a ponto de pensar que o turismo será a solução para todos os
problemas. Ainda mais, quando o exemplo de algumas facetas negativas do
comportamento desse sector em algumas regiões do mundo menos desenvolvido, nos aconselha
a pôr um certo travão ao entusiasmo lírico. E a aprender com as experiências
alheias, evitando repetir os mesmos erros.
Deste modo, Cabo Verde tem
de explorar ao máximo as potencialidades da sua agricultura mediante um judicioso
aproveitamento e armazenamento das águas pluviais, prosseguindo a construção de
barragens e pequenos diques. Neste particular, é preciso olhar para o exemplo
das ilhas Canárias, como o Dr. Arsénio de Pina recomenda constantemente nos
seus artigos. Por outro lado, a indústria pesqueira e outras actividades
ligadas ao mar são igualmente potencialidades exploráveis. É nestes dois
quadros precisos que se encaixam as expectativas mais realistas e de resultados
mais controláveis. De resto, o “MANIFESTO PARA UM S. VICENTE MELHOR”, que o
nosso Grupo da diáspora publicou em 2010, é uma expressão de medidas possíveis
que se recomendam não apenas para a nossa ilha (S. Vicente) como para país como
um todo, obviamente onde elas forem aplicáveis.
O nosso diálogo não se
esgotou. Prosseguiu o seu curso e, de discussão à flor das ideias à abordagem
mais aprofundada dos problemas de Cabo Verde, viria a proporcionar-se a criação
do Grupo de Reflexão da diáspora, cuja principal agenda é a Regionalização do
país.
Tomar, 16 de Novembro de
2016
Adriano Miranda Lima
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