Perguntado, em recente entrevista ao Expresso das Ilhas de 02
de Novembro de 2016, se “julgava que há pessoas que são contra a oficialização
(do crioulo) só para não lhe darem o prazer de ver o seu reconhecimento”, o
Professor Manuel Veiga (MV), antigo ministro da cultura, respondeu taxativamente
que “o prazer não será para ele, mas sim para o povo de Cabo Verde”, visto que
ele, Manuel Veiga, “fala o português, o crioulo e outras línguas.”
Ora, esta afirmação do MV tem que se lhe
diga e não pode passar em branco. Costuma-se dizer que o peixe morre pela boca.
É que das suas palavras tem de deduzir-se que a oficialização do crioulo será
mais para consagrar a situação de baixa escolaridade de largo segmento do povo cabo-verdiano
do que para a elevação do dialecto a língua capaz de todos os desempenhos
sociais, formais e literários. Sim, implícito na afirmação de MV está o
reconhecimento de que o seu estatuto social e cultural dispensa o uso do
crioulo, já que para a sua projecção como intelectual e homem de letras tem
outras línguas ao seu dispor, em particular o português. E não é por acaso que
o diz. Ele sabe que se escrever obras literárias em crioulo, será para ganharem
poeira nas prateleiras das lojas… cabo-verdianas, bem entendido. Magríssima
procura devem ter e o autor não realiza os seus objectivos de notoriedade
pública, além de ter de arrostar com prejuízos financeiros.
Contudo, outro entendimento do MV poderia
supor numa aposta firme na língua portuguesa, conferindo-lhe prioridade, espaço
e meios acrescidos, em benefício dos currículos escolares e também do ensino de
adultos. Mas essa opção só ocorreria ao ex-ministro da cultura se ele tivesse
uma visão mais alargada, evoluída e prospectiva do papel da língua na vida dos
povos, em vez de circunscrita a este fraseado, qual epigrama, gravado no seu
pensamento: “o crioulo faz parte da dignidade política, social e cultural
conquistada com a independência em 1975” (entrevista ao Expresso das Ilhas em 2010).
Caberá então ao leitor julgar se a “dignidade política, social e cultural” do povo
cabo-verdiano sairia ferida com essa segunda opção, ou se, pelo contrário, ganharia
mais sólida armadura para o futuro.
Com efeito, o MV bem a podia ter considerado,
concedendo-lhe ao menos o benefício da dúvida, porque outra dignificação “política,
social e cultural” teriam hoje as camadas desfavorecidas da população, acaso
tivessem fruído das oportunidades que ele e outros tiveram na vida, a ponto de
poderem hoje optar por esta ou aqueloutra língua no seu discurso. Porque está
por demonstrar qualquer nexo de causalidade entre a promoção do crioulo e a
afirmação da dignidade do povo cabo-verdiano, ao passo que cientificamente
parece mais plausível que o reforço do ensino do português alargue os seus
horizontes no plano “político, social e cultural”.
É que o crioulo é uma realidade adquirida
e consumada, e vivenciada espontaneamente entre nós, pelo que a sua oficialização,
uniformização e domesticação gramatical (alupequização) podem não acrescentar
coisa alguma às competências pessoais e profissionais dos cabo-verdianos. Com o
crioulo, as populações das nossas ilhas resolvem os seus problemas de
comunicação mais triviais e instantes dentro do seu espaço social, mas já não
será assim em circunstâncias laborais mais exigentes, e mesmo dentro do nosso
território, como é o caso de empresas estrangeiras instaladas no país, em que
no mínimo será útil e recomendável a comunicação em português.
Escusado é referir que fora das nossas
fronteiras é que o crioulo, oficializado ou não, “alupecado” ou não, de nada
valerá à nossa gente, se tiver de conviver no espaço lusófono, em situação
informal, escolar ou laboral, com falantes da língua portuguesa, sejam eles angolanos,
brasileiros, moçambicanos ou outros. Afinal, somos apenas uma presença
insignificante de 500 mil entre 250 milhões de criaturas cuja ferramenta
linguística comum é, fundamentalmente, o português. Por isso, é no mínimo surreal
que nos deslumbremos tanto com o crioulo a ponto de o eleger como bandeira política.
Assim como abjurar, por nosso arbítrio, a capacidade para comunicar escorreita
e fluentemente, e em igualdade de condições, com os parceiros de um espaço
comunitário – CPLP – que tem objectivos de concertação político-diplomática e
de cooperação nos mais diversos domínios. Ripostar que a promoção do crioulo
não interfere com a língua portuguesa, como pretenderão os autores desta
cruzada, é tão insensato que não merece sequer resposta.
À afirmação do MV sobre a dignificação que
o crioulo nos confere como povo, não encontro nada melhor para contrapor que
esta reacção de uma mulher do povo quando lhe disseram que o filho ia aprender
o crioulo na escola: “Adé, bsot insnal ê português porque crioulo ele nascê quel
prindid”. Este episódio foi contado por Viriato Barros. Pois então, será de
concluir que uma mulher do povo, que labuta arduamente para ganhar o pão do
dia, sabe mais da vida que um intelectual? Terá ela uma aptidão natural, vinda
do instinto, para descortinar entre as sombras do futuro aquilo que um homem
culto não lobriga? Provavelmente é o caso, se considerarmos que a lucidez
humana muitas vezes se ilumina mais facilmente frente à agrura da vida real do
que em monólogos intelectuais. No mais, o entendimento do MV sobre a dignidade
do seu povo não passa de um chavão, mero palavreado para bordar uma presunção
(política), e por isso perfeitamente descartável. É como se os factótuns desta
cruzada do crioulo se julgassem ungidos por um desígnio escatológico, dispostos
a toda a via-sacra, mesmo à revelia da opinião pública.
O MV, eu e muitos cabo-verdianos tivemos a
feliz oportunidade de frequentar o liceu e outros níveis de ensino, o que não aconteceu
com largas camadas da população cabo-verdiana. Assim, nós, os “privilegiados”, temos
um painel de opções linguísticas que não está ao alcance do comum dos nossos
conterrâneos. Livremente, falamos o nosso crioulo nos momentos e circunstâncias
informais que entendemos, inscritos no universo da nossa memória afectiva. Contudo,
não nos sentimos mais cabo-verdianos por isso, nem sentimos que algo acresça à
parcela individual da nossa “dignidade política, social e cultural”. Por outro
lado, não nos sentimos menos cabo-verdianos ao termos de falar o português.
Simplesmente, o uso desta língua, que é tanto nossa de direito próprio como o é
para 250 milhões de pessoas que connosco partilham séculos de história comum,
alarga-nos as perspectivas do futuro, abre-nos um espaço de convívio multinacional,
potenciando as condições para um maior acesso ao trabalho, à cultura e à
promoção social.
O que o MV devia cuidar de saber é se os
seus conterrâneos menos favorecidos desdenhariam a possibilidade de usar
desenvoltamente o português, na sua terra e fora dela. Basta pensar que uma das
mais gratas realizações da independência foi o aumento considerável da
população escolarizada e instruída, havendo hoje numerosos licenciados, mestres
e doutores na pirâmide da hierarquia social porque tiveram, efectivamente, uma
oportunidade que antes era escassa. Não fora isso, talvez muitos deles estivessem
a engrossar o sector dos que não dominam a língua portuguesa. Portanto, a
continuidade da aposta na escolarização e no ensino poderá ser a via acertada para
melhorar o desempenho dos cabo-verdianos na língua portuguesa e, implicitamente,
resolver ou minimizar o problema da diglossia.
Pelo contrário, criar condições para o
crioulo competir com o português, como propugna o autor do ALUPEC, vai agravar
o problema linguístico cabo-verdiano, com o risco de liquidar definitivamente
as competências na língua de Camões. E isso entra em contraciclo com as tendências
de aglutinação e padronização de valores materiais e culturais perceptíveis
neste mundo em acelerada transformação, tanto que um grupo de linguistas e peritos
da UNESCO concluiu em 2003 que, em cada ano, entre 20 e 30 línguas minoritárias
desapareciam no mundo. No fundo, é iniludível que o problema linguístico entre
nós foi suscitado mais por um preconceito político contra a “língua do
colonizador”, na expressão dos fundamentalistas de alguma cultura, do que por
um “estado de necessidade”. Em minha opinião, o progresso contínuo da
escolarização e um redobrado apoio ao ensino do português, tendem a resolver a
nossa questão linguística, cada um dos idiomas ocupando o espaço da sua
verdadeira vocação.
Bom seria que os factótuns da causa do
ALUPEC e tudo o que lhe está subjacente reflectissem seriamente sobre esta
problemática e não pressionassem os governos com o capricho do seu egocentrismo.
Os desafios do futuro não se compadecem com a carnavalização de assunto tão
delicado e importante para o futuro do país.
Tomar, 26 de Novembro de
2016
Adriano Miranda Lima
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