Jorge Tolentino
Celebra-se hoje mais
um aniversário do 25 de Abril, dia
importante para Portugal e para nós também. A conquista maior que o 25 de Abril
simboliza é a Liberdade. E é auspicioso que num dia como este possamos falar de
leitura. Leitura é antes de mais liberdade para ler.
Para ler tudo e de
tudo o que nos aprouver, mas também liberdade para escrever e publicar o que
nos apeteça. 25 de Abril foi igualmente o fim da censura.
Também aqui em Cabo
Verde se sofreu duramente nas mãos da censura.
Os casos são muitos.
Recordo um exemplo apenas: Baltasar Lopes foi
proibido de publicar aqui nas ilhas o seu conto “A Caderneta”. Conseguiu publicá-lo com a
Vértice, de Coimbra, em 1949. Dizia ele que a censura em Cabo Verde era “mais
papista que o Papa naqueles anos de salazarismo fascistóide”. (1)
É de 1986 o exemplar
autografado de “A Caderneta” que trago aqui
comigo. (2)
O que vos quero dizer
hoje é mais um depoimento na primeira pessoa e exclusivamente desde o ângulo de
leitor.
Sempre, desde muito
novo, encontrei na leitura, de facto, uma janela para o mundo. Por ela cheguei
e continuo a chegar a lugares distantes, a aprender com os sentimentos, as
angústias, os sofrimentos, as alegrias de outros, a desfrutar do encontro
sempre renovado com o conhecimento, a satisfação de aprender com cada texto que
é lido, a grata sensação de estar num caminho que não me cansa e do qual não me
canso. Na verdade, no silêncio do espaço de leitura vêm até mim, por essa tal
janela, todas as sensações do mundo. Diz Pessoa que
“a melhor forma
de viajar é sentir”.
É bom reconhecer que,
neste nosso arquipélago, o mundo sempre esteve cá dentro, sempre soubemos dele
e sempre o sentimos. A leitura sempre foi uma das nossas janelas.
Com os veleiros, na
linguagem barbosiana, os vapores, os paquetes...
Com eles vinha sempre
uma peça para leitura, quando não livros ao
menos uma revista ou
um jornal já desbotado. Era muita a sede de ler.
E é, de facto,
emblemático o exemplo da geração da Claridade. Há
vários depoimentos e registos. Mas recordemos a seguinte passagem de uma carta
de Jorge Barbosa a Manuel
Lopes, de 21 de Outubro de 1933: “remete-me os últimos números das Nouvelles
Littéraires e a Presença,
depois do nº 38” e ainda “alguns livros interessantes, tudo empacotado e ao
cuidado de qualquer capitão conhecido.” E “se não tens Presença pede-a ao
(Jaime) igueiredo”. (3)
Naturalmente que
existe um vinculo entre a leitura e a evolução do ensino em Cabo Verde. Não
apenas porque nas escolas, nos seminários, nos liceus se foi aprendendo a ter
os instrumentos necessários para ler, mas sobretudo porque se foi afirmando uma
atitude favorável à leitura enquanto ponte para o conhecimento ou uma janela
para outros mundos.
Talvez porque o nosso
“meio pequeno” (a expressão é de Manuel Lopes) fosse ainda mais apertado do que
é hoje, a leitura e o conhecimento gozavam de uma valorização social muito mais
forte. Havia, vincada, a ideia da “pessoa culta”. Não necessariamente por
virtude de um título académico, mas pelas provas que dava de conhecimento, de
sabedoria, de autoridade adquiridos nesses outros mundos a que se chega através
da leitura.
Muitas figuras
ilustres da nossa Cultura, da nossa História não tiveram a
sorte de ir ao ensino
universitário (eram outros tempos, outras dificuldades, outras regras também)
mas foram pessoas sabedoras, marcaram o seu tempo. Souberam desfrutar de outras
janelas para o mundo. Alguém ignora, por exemplo, o lugar de Jaime
Figueiredo? Ele
escrevia de forma
límpida, soberba.
Cabo Verde continua a
ser um meio pequeno, é certo, mas é hoje um meio mais complexo; crescemos de
forma acelerada em algumas áreas, outras foram sendo descuradas.
Objectivamente. A leitura é um desses domínios em que estamos mal. Não somos
ainda uma sociedade amiga da leitura. Não há coerência entre o que dizemos e o
que efectivamente tem sido feito pela leitura. Oxalá esta iniciativa
presidencial tenha o efeito de fogo no rastilho.
Parece-me, entretanto,
importante que estejamos atentos a alguns perigos ou emboscadas.
Um Plano Nacional de Leitura, ou
como quer que se chame, é um instrumento apenas, por importante que seja. Em
Cabo Verde, temos, por via de regra, uma percepção mágica das leis, das
medidas, dos planos: esperamos que por si resolvam os problemas, já pelo
simples facto de serem adoptados.
Há uma pluralidade de
factores que têm de conjugar-se para que o nível
e a qualidade da
leitura cresçam entre nós. O Plano será certamente parte de uma luta que se
anuncia longa e da qual não nos podemos eximir. Nenhum de nós. Temos todos de
poder contribuir para uma estratégia nacional de sedução para a leitura. Ponto
é que saibamos dessacralizar o livro e outros materiais de leitura e fazê-los
chegar aos leitores. Quebrar a ideia de que ler é chato, penoso, punitivo.
Sempre achei magnifico o sistema das bibliotecas itinerantes. Mas lá onde
existam bibliotecas “clássicas” é preciso que sejam espaços onde apeteça estar,
com espólios renovados e formas de funcionamento que favoreçam os leitores. Não
podem ser meras repartições. Julgo que falta descentralizar as sessões de
apresentação de livros, assim como falta levar os autores para junto dos
leitores, nos locais mais distantes, de forma mais sistemática. Está nos planos
da Academia Cabo-Verdiana de Letras contribuir nesse sentido.
Faltam, na nossa Comunicação Social, programas de promoção da leitura.
O segundo alerta tem
que ver com o facto de sermos uma sociedade de
baixo sentido crítico.
Fazemos muito barulho, mas não vamos ao essencial das questões. Todos opinam sobre
tudo, sempre com invariável sapiência. Mas afogamos em pouca água; falta-nos serenidade.
Falta-nos leitura e reflexão. Sem leitura jamais teremos cidadãos bem formados,
com sentido crítico e estético, com autonomia no exercício pleno da sua própria
esfera de liberdade e decisão.
Em terceiro lugar, é
importante não estabelecer um nexo automático entre a habilitação académica e a
apetência e o gosto pela leitura. Somos hoje uma sociedade com muita gente
formada, é certo, mas que lê pouco.
Gente para quem a
leitura não constitui prioridade nem para si nem para
as suas famílias. Nos
seus orçamentos domésticos não há um item “aquisição de livros” ou algo
parecido.
E reside aqui um risco
enorme de reprodução de padrões. Como reside também o risco de normalização de certas
formas de analfabetismo, quando não mesmo de valorização social das mesmas. O
risco de nivelar por baixo.
Julgo que há ainda um
outro embuste a evitar. Já ouvi pessoas a defender que nunca se leu tanto em
Cabo Verde como se lê agora. Será?
Aliás, esta própria
iniciativa presidencial de incentivo à leitura é prova de que algo não está
bem.
Pessoalmente, prefiro
dizer que hoje em dia dispomos de um dinamismo sem precedentes em termos
editoriais, há cada vez mais livro editados,
mas é preciso apurar
se esse fulgor editorial se traduz em mais leitores e em mais leitura. Não
creio.
É só ver quem são as
pessoas que vão aos lançamentos de novas obras: sempre as mesmas caras. Mais
ainda, é só ver o ritmo de venda dos livros: vendem-se aos pingos.
Pessoalmente, acordei
e cresci para a leitura num tempo diferente do de hoje. Antes de mais, o
ambiente mágico das estórias ao anoitecer. Da minha Avó ouvimos estórias
maravilhosas que nos faziam sonhar, sentir
medo também, mas
sempre imaginar, viajar por mundos desconhecidos.
Falo de mim, dos meus
irmãos e primos, dos amigos da vizinhança.
Nesse contexto de
oralidade a imaginação corria solta.
Depois vieram os
livros aos quadradinhos que liamos avidamente em regime de comunhão. Juntávamos
tostões para os adquirir e depois eram conservados numa caixa de papelão à
guarda de um dos meus primos. Era um outro espaço de imaginação e viagem.
Nesse tempo, os livros
não nos eram nem distantes nem estranhos. Com o passar dos anos, o seu
significado foi-se avolumando. Alguns foram lidos à socapa, outros com
indicação.
Lembro-me que comprei
o meu primeiro livro “à sério” nas férias da 4ª classe. Fiz a 4ª classe na ilha
do Sal, com a conhecida Professora Dona Olga Figueiredo, e
regressei logo a seguir ao Mindelo. Enquanto aguardava pelo inicio das aulas do
Ciclo Preparatório, tive um trabalho, assim uma espécie de ajudante de secretaria.
Foi quando aprendi a escrever à máquina e aprendi algum linguajar
administrativo. Quando recebi o primeiro salário de sempre na minha vida,
entreguei-o à minha mãe e, após receber dela o que me coube, fui a correr à já
então veneranda “Papelaria de Toi Pumbinha” e
comprei o livro que já havia identificado na montra: “Contra Mar e Vento”, de Teixeira
de Sousa. O título tinha-me atraído. E a capa bonita
também. Li-o com gosto. Outros livros vieram a seguir. Aprendi a ser um leitor
para a vida. Leio sempre. Hoje em dia, leio imenso material em suporte
electrónico, incluindo livros, mas o livro em papel tem o seu lugar - que é
dele.
Tive a sorte de
receber livros por empréstimo de gente como António Aurélio
Gonçalves. Das mãos dele recebi um exemplar da 1ª edição,
de 1951, de “O Fogo e as Cinzas”, de
Manuel da Fonseca. Guardo-o
ciosamente.
No Liceu, tive
professores magníficos. A Professora Alice (Alcy) Matos
era especialmente preocupada com a Leitura. Organizava concursos de
estímulo à leitura e a própria turma ajudava a decidir quem era
merecedor dos prémios. Assim, nesse contexto, ganhei o exemplar de “Chuva Braba”, edição de 1965, com
dedicatória, que trago aqui comigo. Da
Professora de Inglês, Dona Isménia Heenan,
tive uma oferta que devorei. Uma antologia da
novela universal. Está velhinha mas ainda a conservo
e trago-a aqui comigo. (4) Foi o meu primeiro contacto com
Chamisso e o seu “Pedro
Schlemihl, o Homem sem sombra”. Gostei
muito dessa viagem pelo, digamos, absurdo.
Espaço relevantes de
contacto com a palavra foram, sem dúvida, os Grupos de Jogral. Ainda recentemente,
referi-me, incidentalmente embora, a essa experiência num texto-depoimento para
a edição especial do Jornal Artiletra
dedicada a Corsino Fortes.Isso
ainda no Liceu Ludgero Lima, em
S. Vicente.
Já no curso
complementar, aqui no Liceu Domingos
Ramos, a
Professora Ondina
Ferreira quis sempre ter em nós leitores competentes e com
espirito aberto. Tanto nos levou aos autores cabo-verdianos, incluindo Daniel
Filipe de “A Invenção do Amor”,
como nos levou lá para fora com Eça de Queirós, com
Torga, com Sofia, com
Carlos de Oliveira, com António
Gedeão, com Mourão-Ferreira e até
gente como Heinrich Böll e o
conto “O Cómico” que
está na sua deliciosa colectânea “Os
Hóspedes Inesperados”.
Cada um dos dois
liceus existentes no país tinha a sua biblioteca. Isto é um dado importante,
sobretudo se pensarmos no que (não) existe nos liceus de agora. Ainda tenho o
meu cartão de Leitor da Biblioteca do Ludgero Lima. Aliás, trago-o aqui comigo.
Lembro-me do carinho que a Professora Bernardette Fortes dedicava
a esse espaço.
Nesse tempo liamos
tudo, de jornais a revistas, tudo o que aparecesse. Mesmo livros passavam de
mão em mão. Lia-se e devolvia-se e passava para outro.
Aqui na Praia, pontos
importantes eram a livraria do Instituto do Livro e a pequena livraria que
havia na Galeria da Casa Serbam. Por eles chegavam escritores marcantes. E
assim a alegria, o prazer!, de sair pelo mundo levados por Jorge
Amado, Érico Veríssimo, Lins
do Rego, Steinbeck, Hemingway, Kafka, Eugénio
de Andrade, Cardoso Pires, Jorge
de Sena, Abelaira, Luandino
Vieira, Pepetela, Nicolau
Gogol, Tolstoi, Dostoievski
e tantos, tantos outros.
A condição de “estudante-trabalhador”
dava-me algum desafogo para os livros.
Devo referir que foi
no ambiente do Jornal “Voz di Povo”,
onde eu era jovem repórter, que conheci Arménio Vieira,
então exigente Re-Writer.
Tomei a peito as
observações dele e não tardou ele isentou os meus textos de passar pela
revisão. Foi por essa altura que ele publicou o livro “Poemas”, tendo-me oferecido um
exemplar com uma bela dedicatória. Ainda não havia o ritual das sessões de
apresentação de livros. Mas havia concursos literários e os chamados jogos
florais.
Um momento marcante
para a vida cultural neste país foi sem dúvida a primeira Feira do Livro português, assim se chamava
na altura, isso em
1981. Como escrevi num
texto de homenagem a Manuel Duarte,
quem foi o primeiro presidente do Instituto Cabo-Verdiano do Livro, a feira “significou
um verdadeiro frenesim cultural nesta cidade e um momento alto nos registos do
Parque 5 de Julho”. (5)
Nunca tínhamos visto
tantos livros e a preços tão baixos. Foi uma autêntica festa do livro. É
preciso manter viva esta ideia da festa em torno do livro.
Do lado português, o
parceiro amigo e entusiasta, era o Escritor António Alçada Baptista,
Presidente do Instituto Português do Livro. Regressou a Lisboa com uma lista de
“bafejados pela sorte” a quem regularmente fazia chegar livros recentes e o
Jornal de Letras. Até hoje tenho especial carinho por esse jornal.
Mais ou menos por essa
altura publiquei um texto com o título “Elogio da leitura”
que, aliás, vem republicado no meu livro de 2005. (6)
Naturalmente que o
ambiente universitário em Coimbra aprofundou em mim o gosto pela descoberta e
pela procura do conhecimento, mas não vou alongar-me sobre este ponto.
Continuo a acreditar
firmemente na importância da leitura. Como o momento em que reacendemos a magia
inaugurada lá longe na infância.
O momento em que
partimos em viagem da qual retornamos sempre mais ricos. Momento sempre de descoberta,
mesmo quando lemos de novo o mesmo livro. Há sempre algo que aprendemos ou
aprendemos melhor. Momento que é sempre de prazer: o prazer da leitura.
É de elementar justiça
que outros possam ser ajudados a chegar ao prazer da leitura.
NOTAS
(*) Intervenção
proferida enquanto orador no Colóquio “A Leitura como janela para o mundo”, no
âmbito da Semana da Leitura com a
divisa “Ler Mais, Saber Mais”,
uma iniciativa presidencial de incentivo à leitura, Palácio da Presidência da
República, na Praia, de 23 a 30 de Abril de 2017.
(1) Baltasar Lopes,
Depoimento in Claridade, edição fac-similada organizada por Manuel Ferreira,
por ocasião do cinquentenário da fundação da revista, ALAC e Instituto
Cabo-Verdiano do Livro, Lisboa, 1986, p. XV.
(2) Baltasar Lopes, A
Caderneta / Le Carnet, edição bilingue, Instituto Cabo-Verdiano do Livro e
Centre Culturel Français, Mindelo, 1986.
(3) Manuel Ferreira,
Prefácio à obra referida na nota 1, p. XXVII
(4) 5 Obras Primas da
Novela Universal, Antologias Universais, Portugália Editora, Lisboa, 1965.
(5) “Na homenagem a
Manuel Duarte”, in Jorge Tolentino, Cidadania e Liberdade – Palavras que
escrevi, Spleen Edições e instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia,
2005.
(6) Obra referida na nota 5.
0 comentários:
Enviar um comentário