Uma janela para o mundo (*)

segunda-feira, 15 de maio de 2017


Jorge Tolentino

Celebra-se hoje mais um aniversário do 25 de Abril, dia importante para Portugal e para nós também. A conquista maior que o 25 de Abril simboliza é a Liberdade. E é auspicioso que num dia como este possamos falar de leitura. Leitura é antes de mais liberdade para ler.
Para ler tudo e de tudo o que nos aprouver, mas também liberdade para escrever e publicar o que nos apeteça. 25 de Abril foi igualmente o fim da censura.
Também aqui em Cabo Verde se sofreu duramente nas mãos da censura.
Os casos são muitos. Recordo um exemplo apenas: Baltasar Lopes foi proibido de publicar aqui nas ilhas o seu conto “A Caderneta”. Conseguiu publicá-lo com a Vértice, de Coimbra, em 1949. Dizia ele que a censura em Cabo Verde era “mais papista que o Papa naqueles anos de salazarismo fascistóide”. (1)
É de 1986 o exemplar autografado de “A Caderneta” que trago aqui
comigo. (2)
O que vos quero dizer hoje é mais um depoimento na primeira pessoa e exclusivamente desde o ângulo de leitor.
Sempre, desde muito novo, encontrei na leitura, de facto, uma janela para o mundo. Por ela cheguei e continuo a chegar a lugares distantes, a aprender com os sentimentos, as angústias, os sofrimentos, as alegrias de outros, a desfrutar do encontro sempre renovado com o conhecimento, a satisfação de aprender com cada texto que é lido, a grata sensação de estar num caminho que não me cansa e do qual não me canso. Na verdade, no silêncio do espaço de leitura vêm até mim, por essa tal janela, todas as sensações do mundo. Diz Pessoa que “a melhor forma
de viajar é sentir”.
É bom reconhecer que, neste nosso arquipélago, o mundo sempre esteve cá dentro, sempre soubemos dele e sempre o sentimos. A leitura sempre foi uma das nossas janelas.
Com os veleiros, na linguagem barbosiana, os vapores, os paquetes...
Com eles vinha sempre uma peça para leitura, quando não livros ao
menos uma revista ou um jornal já desbotado. Era muita a sede de ler.
E é, de facto, emblemático o exemplo da geração da Claridade. Há vários depoimentos e registos. Mas recordemos a seguinte passagem de uma carta de Jorge Barbosa a Manuel Lopes, de 21 de Outubro de 1933: “remete-me os últimos números das Nouvelles Littéraires e a Presença, depois do nº 38” e ainda “alguns livros interessantes, tudo empacotado e ao cuidado de qualquer capitão conhecido.” E “se não tens Presença pede-a ao (Jaime) igueiredo”. (3)
Naturalmente que existe um vinculo entre a leitura e a evolução do ensino em Cabo Verde. Não apenas porque nas escolas, nos seminários, nos liceus se foi aprendendo a ter os instrumentos necessários para ler, mas sobretudo porque se foi afirmando uma atitude favorável à leitura enquanto ponte para o conhecimento ou uma janela para outros mundos.
Talvez porque o nosso “meio pequeno” (a expressão é de Manuel Lopes) fosse ainda mais apertado do que é hoje, a leitura e o conhecimento gozavam de uma valorização social muito mais forte. Havia, vincada, a ideia da “pessoa culta”. Não necessariamente por virtude de um título académico, mas pelas provas que dava de conhecimento, de sabedoria, de autoridade adquiridos nesses outros mundos a que se chega através da leitura.
Muitas figuras ilustres da nossa Cultura, da nossa História não tiveram a
sorte de ir ao ensino universitário (eram outros tempos, outras dificuldades, outras regras também) mas foram pessoas sabedoras, marcaram o seu tempo. Souberam desfrutar de outras janelas para o mundo. Alguém ignora, por exemplo, o lugar de Jaime Figueiredo? Ele
escrevia de forma límpida, soberba.
Cabo Verde continua a ser um meio pequeno, é certo, mas é hoje um meio mais complexo; crescemos de forma acelerada em algumas áreas, outras foram sendo descuradas. Objectivamente. A leitura é um desses domínios em que estamos mal. Não somos ainda uma sociedade amiga da leitura. Não há coerência entre o que dizemos e o que efectivamente tem sido feito pela leitura. Oxalá esta iniciativa presidencial tenha o efeito de fogo no rastilho.
Parece-me, entretanto, importante que estejamos atentos a alguns perigos ou emboscadas.
Um Plano Nacional de Leitura, ou como quer que se chame, é um instrumento apenas, por importante que seja. Em Cabo Verde, temos, por via de regra, uma percepção mágica das leis, das medidas, dos planos: esperamos que por si resolvam os problemas, já pelo simples facto de serem adoptados.
Há uma pluralidade de factores que têm de conjugar-se para que o nível
e a qualidade da leitura cresçam entre nós. O Plano será certamente parte de uma luta que se anuncia longa e da qual não nos podemos eximir. Nenhum de nós. Temos todos de poder contribuir para uma estratégia nacional de sedução para a leitura. Ponto é que saibamos dessacralizar o livro e outros materiais de leitura e fazê-los chegar aos leitores. Quebrar a ideia de que ler é chato, penoso, punitivo. Sempre achei magnifico o sistema das bibliotecas itinerantes. Mas lá onde existam bibliotecas “clássicas” é preciso que sejam espaços onde apeteça estar, com espólios renovados e formas de funcionamento que favoreçam os leitores. Não podem ser meras repartições. Julgo que falta descentralizar as sessões de apresentação de livros, assim como falta levar os autores para junto dos leitores, nos locais mais distantes, de forma mais sistemática. Está nos planos da Academia Cabo-Verdiana de Letras contribuir nesse sentido. Faltam, na nossa Comunicação Social, programas de promoção da leitura.
O segundo alerta tem que ver com o facto de sermos uma sociedade de
baixo sentido crítico. Fazemos muito barulho, mas não vamos ao essencial das questões. Todos opinam sobre tudo, sempre com invariável sapiência. Mas afogamos em pouca água; falta-nos serenidade. Falta-nos leitura e reflexão. Sem leitura jamais teremos cidadãos bem formados, com sentido crítico e estético, com autonomia no exercício pleno da sua própria esfera de liberdade e decisão.
Em terceiro lugar, é importante não estabelecer um nexo automático entre a habilitação académica e a apetência e o gosto pela leitura. Somos hoje uma sociedade com muita gente formada, é certo, mas que lê pouco.
Gente para quem a leitura não constitui prioridade nem para si nem para
as suas famílias. Nos seus orçamentos domésticos não há um item “aquisição de livros” ou algo parecido.
E reside aqui um risco enorme de reprodução de padrões. Como reside também o risco de normalização de certas formas de analfabetismo, quando não mesmo de valorização social das mesmas. O risco de nivelar por baixo.

Julgo que há ainda um outro embuste a evitar. Já ouvi pessoas a defender que nunca se leu tanto em Cabo Verde como se lê agora. Será?
Aliás, esta própria iniciativa presidencial de incentivo à leitura é prova de que algo não está bem.
Pessoalmente, prefiro dizer que hoje em dia dispomos de um dinamismo sem precedentes em termos editoriais, há cada vez mais livro editados,
mas é preciso apurar se esse fulgor editorial se traduz em mais leitores e em mais leitura. Não creio.
É só ver quem são as pessoas que vão aos lançamentos de novas obras: sempre as mesmas caras. Mais ainda, é só ver o ritmo de venda dos livros: vendem-se aos pingos.
Pessoalmente, acordei e cresci para a leitura num tempo diferente do de hoje. Antes de mais, o ambiente mágico das estórias ao anoitecer. Da minha Avó ouvimos estórias maravilhosas que nos faziam sonhar, sentir
medo também, mas sempre imaginar, viajar por mundos desconhecidos.
Falo de mim, dos meus irmãos e primos, dos amigos da vizinhança.
Nesse contexto de oralidade a imaginação corria solta.

Depois vieram os livros aos quadradinhos que liamos avidamente em regime de comunhão. Juntávamos tostões para os adquirir e depois eram conservados numa caixa de papelão à guarda de um dos meus primos. Era um outro espaço de imaginação e viagem.
Nesse tempo, os livros não nos eram nem distantes nem estranhos. Com o passar dos anos, o seu significado foi-se avolumando. Alguns foram lidos à socapa, outros com indicação.
Lembro-me que comprei o meu primeiro livro “à sério” nas férias da 4ª classe. Fiz a 4ª classe na ilha do Sal, com a conhecida Professora Dona Olga Figueiredo, e regressei logo a seguir ao Mindelo. Enquanto aguardava pelo inicio das aulas do Ciclo Preparatório, tive um trabalho, assim uma espécie de ajudante de secretaria. Foi quando aprendi a escrever à máquina e aprendi algum linguajar administrativo. Quando recebi o primeiro salário de sempre na minha vida, entreguei-o à minha mãe e, após receber dela o que me coube, fui a correr à já então veneranda “Papelaria de Toi Pumbinha” e comprei o livro que já havia identificado na montra: “Contra Mar e Vento”, de Teixeira de Sousa. O título tinha-me atraído. E a capa bonita também. Li-o com gosto. Outros livros vieram a seguir. Aprendi a ser um leitor para a vida. Leio sempre. Hoje em dia, leio imenso material em suporte electrónico, incluindo livros, mas o livro em papel tem o seu lugar - que é dele.

Tive a sorte de receber livros por empréstimo de gente como António Aurélio Gonçalves. Das mãos dele recebi um exemplar da 1ª edição, de 1951, de “O Fogo e as Cinzas”, de Manuel da Fonseca. Guardo-o ciosamente.
No Liceu, tive professores magníficos. A Professora Alice (Alcy) Matos era especialmente preocupada com a Leitura. Organizava concursos de estímulo à leitura e a própria turma ajudava a decidir quem era merecedor dos prémios. Assim, nesse contexto, ganhei o exemplar de “Chuva Braba”, edição de 1965, com dedicatória, que trago aqui comigo. Da Professora de Inglês, Dona Isménia Heenan, tive uma oferta que devorei. Uma antologia da novela universal. Está velhinha mas ainda a conservo e trago-a aqui comigo. (4) Foi o meu primeiro contacto com Chamisso e o seu “Pedro Schlemihl, o Homem sem sombra”. Gostei muito dessa viagem pelo, digamos, absurdo.
Espaço relevantes de contacto com a palavra foram, sem dúvida, os Grupos de Jogral. Ainda recentemente, referi-me, incidentalmente embora, a essa experiência num texto-depoimento para a edição especial do Jornal Artiletra dedicada a Corsino Fortes.Isso ainda no Liceu Ludgero Lima, em S. Vicente.
Já no curso complementar, aqui no Liceu Domingos Ramos, a
Professora Ondina Ferreira quis sempre ter em nós leitores competentes e com espirito aberto. Tanto nos levou aos autores cabo-verdianos, incluindo Daniel Filipe de “A Invenção do Amor”, como nos levou lá para fora com Eça de Queirós, com Torga, com Sofia, com Carlos de Oliveira, com António Gedeão, com Mourão-Ferreira e até gente como Heinrich Böll e o conto “O Cómico” que está na sua deliciosa colectânea “Os Hóspedes Inesperados”.
Cada um dos dois liceus existentes no país tinha a sua biblioteca. Isto é um dado importante, sobretudo se pensarmos no que (não) existe nos liceus de agora. Ainda tenho o meu cartão de Leitor da Biblioteca do Ludgero Lima. Aliás, trago-o aqui comigo. Lembro-me do carinho que a Professora Bernardette Fortes dedicava a esse espaço.
Nesse tempo liamos tudo, de jornais a revistas, tudo o que aparecesse. Mesmo livros passavam de mão em mão. Lia-se e devolvia-se e passava para outro.
Aqui na Praia, pontos importantes eram a livraria do Instituto do Livro e a pequena livraria que havia na Galeria da Casa Serbam. Por eles chegavam escritores marcantes. E assim a alegria, o prazer!, de sair pelo mundo levados por Jorge Amado, Érico Veríssimo, Lins do Rego, Steinbeck, Hemingway, Kafka, Eugénio de Andrade, Cardoso Pires, Jorge de Sena, Abelaira, Luandino Vieira, Pepetela, Nicolau Gogol, Tolstoi, Dostoievski e tantos, tantos outros.
A condição de “estudante-trabalhador” dava-me algum desafogo para os livros.
Devo referir que foi no ambiente do Jornal “Voz di Povo”, onde eu era jovem repórter, que conheci Arménio Vieira, então exigente Re-Writer.
Tomei a peito as observações dele e não tardou ele isentou os meus textos de passar pela revisão. Foi por essa altura que ele publicou o livro “Poemas”, tendo-me oferecido um exemplar com uma bela dedicatória. Ainda não havia o ritual das sessões de apresentação de livros. Mas havia concursos literários e os chamados jogos florais.
Um momento marcante para a vida cultural neste país foi sem dúvida a primeira Feira do Livro português, assim se chamava na altura, isso em
1981. Como escrevi num texto de homenagem a Manuel Duarte, quem foi o primeiro presidente do Instituto Cabo-Verdiano do Livro, a feira “significou um verdadeiro frenesim cultural nesta cidade e um momento alto nos registos do Parque 5 de Julho”. (5)
Nunca tínhamos visto tantos livros e a preços tão baixos. Foi uma autêntica festa do livro. É preciso manter viva esta ideia da festa em torno do livro.
Do lado português, o parceiro amigo e entusiasta, era o Escritor António Alçada Baptista, Presidente do Instituto Português do Livro. Regressou a Lisboa com uma lista de “bafejados pela sorte” a quem regularmente fazia chegar livros recentes e o Jornal de Letras. Até hoje tenho especial carinho por esse jornal.
Mais ou menos por essa altura publiquei um texto com o título “Elogio da leitura” que, aliás, vem republicado no meu livro de 2005. (6)
Naturalmente que o ambiente universitário em Coimbra aprofundou em mim o gosto pela descoberta e pela procura do conhecimento, mas não vou alongar-me sobre este ponto.
Continuo a acreditar firmemente na importância da leitura. Como o momento em que reacendemos a magia inaugurada lá longe na infância.
O momento em que partimos em viagem da qual retornamos sempre mais ricos. Momento sempre de descoberta, mesmo quando lemos de novo o mesmo livro. Há sempre algo que aprendemos ou aprendemos melhor. Momento que é sempre de prazer: o prazer da leitura.
É de elementar justiça que outros possam ser ajudados a chegar ao prazer da leitura.

NOTAS
(*) Intervenção proferida enquanto orador no Colóquio “A Leitura como janela para o mundo”, no âmbito da Semana da Leitura com a divisa “Ler Mais, Saber Mais”, uma iniciativa presidencial de incentivo à leitura, Palácio da Presidência da República, na Praia, de 23 a 30 de Abril de 2017.
(1) Baltasar Lopes, Depoimento in Claridade, edição fac-similada organizada por Manuel Ferreira, por ocasião do cinquentenário da fundação da revista, ALAC e Instituto Cabo-Verdiano do Livro, Lisboa, 1986, p. XV.
(2) Baltasar Lopes, A Caderneta / Le Carnet, edição bilingue, Instituto Cabo-Verdiano do Livro e Centre Culturel Français, Mindelo, 1986.
(3) Manuel Ferreira, Prefácio à obra referida na nota 1, p. XXVII
(4) 5 Obras Primas da Novela Universal, Antologias Universais, Portugália Editora, Lisboa, 1965.
(5) “Na homenagem a Manuel Duarte”, in Jorge Tolentino, Cidadania e Liberdade – Palavras que escrevi, Spleen Edições e instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2005.

(6) Obra referida na nota 5.

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