Mesa Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano - uma revisitação

domingo, 28 de maio de 2017

- Nótula Explicativa -

É um tema velho, de mais de 60 anos, que o Coral-Vermelho se propõe, no essencial, (re)publicar.
A Mesa Redonda Sobre o Homem Cabo-verdiano teve lugar nas noites de 21 e 24 de Julho de 1956 no Grémio do Mindelo, em S. Vicente e foi realizada no âmbito de um trabalho de Antropologia levado a cabo pelo Doutor Almerindo Lessa (Porto, 1909 – 1997) aquando da sua estada em S. Vicente para a instalação do Centro de Sangue no Hospital da ilha enquanto chefiava uma Missão de Seroantropologia promovida pela Agência-Geral do Ultramar.
O Doutor Almerindo Lessa além de médico hematologista era também Antropólogo, investigador, professor, de entre outras especializações ligadas às suas actividades científicas e profissionais.
No decurso dos estudos que vinha fazendo no domínio da Antropologia promoveu, em S. Vicente, duas reuniões – uma espécie de “inquérito” dirigido aos nossos intelectuais – justificando-se quando a determinado passo da sua apresentação nos diz: “Na verdade cheguei há apenas dois meses e durante eles nem saí de S. Vicente. As minhas impressões têm fragilidades, eu sei. Mas posso em parte justificar-me, pois também nestes dois meses não vivi dentro de palácios ou de hotéis, nem sequer houve entre mim e o povo aquela espécie de fronteira social que é um automóvel. Assim eu pude ver muita gente. No Hospital conversei com centenas de homens, de mulheres e de crianças de todas as ilhas; os mais pequenos ócios, passeios nos botequins mais humildes; nas idas e vindas para a Craquinha (onde uma gentileza particular me acolheu)…”, depois conclui: “Como disse, contactei durante dois meses com o povo miúdo desta cidade; cabe agora a vez de provocar e ouvir a sua aristocracia”.
Assim, reuniu à volta de uma Mesa uma trintena de personalidades, na sua grande maioria, naturais de Cabo Verde. Apenas quatro o não eram.
Após esse trabalho, publicou, em parceria com Jacques Ruffié, um livro – Seroantropologia das Ilhas de Cabo Verde editado pela Junta de Investigações do Ultramar – Estudos, Ensaios e Documentos, Nº 32, 1957. No seu prefácio destaca: “Assim, pode admitir-se que nenhum humano chegou a Cabo Verde antes dos portugueses, ou, se chegou, não pôde subsistir e desapareceu sem deixar vestígios, e que o verdadeiro povoamento do Arquipélago só começou connosco. Só quando foi possível transportar para lá a cultura do milho e a criação da cabra pôde começar a ocupação; só quando lá se criou um novo tipo de homem pôde dar-se início àquela sociedade para cuja compreensão pensamos contribuir com este trabalho.” (fim da transcrição). Aliás, esta sua posição é partilhada, como ele próprio o diz, com o nosso poeta Jorge Barbosa quando no «Caderno de Um Ilhéu» escreve:
«Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nús
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação».

Trata-se, – o livro – de um estudo interessante se tivermos em conta os circunstancialismos do tempo em que foi realizado e o «estado da arte» das ciências ditas “sociais”. Não o vamos reproduzir… Apenas dele extrair aquilo que constituiu matéria da Mesa-Redonda que se efectivou através de duas reuniões, como atrás já tivemos oportunidade de informar.
De referir que a primeira reunião foi precedida de uma palestra em que, de entre muitas outras coisas, o Dr. Almerindo Lessa define os contornos das suas metas quando afirma: “… proponho-me abordar em duas pequenas introduções dois grandes problemas: o primeiro será definir o conceito actual de Antropologia e o segundo, analisar alguns aspectos que considero como capazes de permitirem uma análise da sociedade cabo-verdiana.” Destas duas introduções a que ele se refere, não iremos transcrever a da primeira reunião por constituir uma palestra com abordagem técnica sem, a nosso ver, influência efectiva na compreensão das questões levantadas na Mesa Redonda. Contudo, não deixamos de verificar que continha algumas curiosidades das quais aqui registamos as seguintes: “Dentro desta multiplicidade de estudos, nós podemos alcançar uma posição e um ponto de síntese. Não é possível mais falar de raças brancas e raças negras; não vamos já continuar na ingenuidade de falar de uma raça portuguesa ou de uma raça francesa. A única coisa que hoje nos é permitido dizer é que existem três grandes agrupamentos humanos: os negróides, os caucasóides e os mongolóides, cada um deles definido pela percentagem maior ou menor de certas constituições bioquímicas. A Ciência hoje não nos permite ir mais longe.”;  “a criação do mestiço favorece o património genético do homem e deve ser considerada um método positivo na dinâmica das populações”; “…em 1955, o Congresso Mundial das Populações, reunido em Londres, declarou ser urgente, com o fim de defender o património genético da espécie, promover casamentos em massa entre pessoas naturais de lugares afastados de mais de 10.000 quilómetros.”;  “Eu próprio que sou um céptico das coisas que não percebo bem, comecei por considerar, por exemplo, o livro de K. Schaer, sobre as correlações entre os grupos sanguíneos e a escrita, como uma obra insubsistente, mas o meu amigo Delfim Santos que é professor de Pedagogia na Universidade de Lisboa, diz que esses trabalhos são sérios.“; “ … há trabalhos italianos, estabelecendo correspondências entre a fonética e os grupos sanguíneos”; isto, entre muitas outras, se nos situarmos no tempo em que o debate decorreu. (1956).
Com esta (re)publicação não pretende o «coral-vermelho» levar aos seus leitores da actual geração o estudo antropológico – seguramente já ultrapassado, em muitos aspectos, à luz dos actuais conhecimentos – mas sim dar a conhecer as preocupações daqueles que nos precederam e as respectivas abordagens no plano das ideias.  A sua erudição, a sua cultura e o seu saber revelados no à-vontade dos seus pronunciamentos: seguros, fiáveis e despretensiosos.
Tratando-se de trabalho de muitas páginas, irá o «coral-vermelho», seguindo aquilo que já aconteceu com o «Boletim Cabo Verde» há seis décadas, trazer ao conhecimento do leitor toda a Mesa-Redonda, também fraccionada, desta feita, eventualmente em 8 a 10 episódios.

Um registo final, constante do livro, que não nos parece despiciendo: «Os textos não foram revistos pelos participantes; por isso mantêm a espontaneidade e os riscos de um estilo oral

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