1ª Reunião
Princípios básicos da nova Antropologia. O problema da mestiçagem.
Discussão.
Presidente: Está aberta a discussão.
Júlio Monteiro: Tenho dois problemas a pôr. Um é sobre uma
dúvida, que se liga directamente ao que Sr. Dr. Almerindo
Lessa expressou, quando disse que não havia um estudo ´sério sobre a
qualificação do mestiço como elemento biológico. Salvo erro, eu li um trabalho
do Prof. Mendes Correia,
apresentado ao Congresso de Antropologia do Porto, no qual ele fazia um estudo
psicossomático da população de Cabo Verde, em confronto
com a população portuguesa da Metrópole. Esse confronto
foi-nos desfavorável. O Dr. Mendes Correia lidou, ao que parece, com números restritos, alguns cabo-verdianos que tinham ido à exposição do Porto. O Sr. Dr. Almerindo
Lessa conhece esse estudo? Gostava
que me desse a sua opinião sobre o seu valor científico.
Almerindo Lessa: Os trabalhos feitos durante a Exposição Colonial do
Porto foram valiosos como demonstração do interesse que à Escola
de Antropologia do Porto mereceram esses estudos, mas, do
ponto de vista científico, têm um valor restrito, por causa
da insignificância do número de sujeitos observados.
Destacam-se apenas pela prioridade e porque demonstram que nessa data,
como já em 1930, o Prof. Mendes
Correia e os seus colaboradores estavam informados do interesse antropológico da Bioquímica. Mas, na realidade,
não pode ser aceite sem grandes reservas um estudo
feito sobre tão poucas
unidades.
Júlio Monteiro: A segunda pergunta que desejo fazer é esta: eu li a tese do Prof. Tamagnini. Se eu compreendi
o que ele escreveu, o Prof. Tamagnini entende
que a Biologia não repele a mestiçagem. Todas as
raças se podem cruzar e reproduzir; simplesmente,
condena a mestiçagem por razões de ordem política. Qual
foi a posição do Congresso do Porto. em relação à tese do Prof. Tamagnini? Faço a pergunta, porque na mesma altura um mestiço
– Fausto Duarte –
tinha publicado um livro - Auá - que mereceu um
prémio literário e que provocou críticas acerbas,
entre as quais uma do Prof. Luís de
Pina, do Porto. Desejava
saber qual foi a opinião da ciência portuguesa, reunida nesse Congresso, perante o problema.
saber qual foi a opinião da ciência portuguesa, reunida nesse Congresso, perante o problema.
Almerindo Lessa: Não posso dar uma resposta concreta. No
entanto, não deve ter havido discussão, porque o trabalho do Prof. Tamagnini foi uma das conferências plenárias, e essas não eram susceptíveis de discussão.
Júlio Monteiro: Agora uma outra pergunta. O
Doutor falou há pouco no mestiço como homem do
futuro. Claro está, a mestiçagem não é recente. Parece-me que, sendo muito antiga, esses homens do futuro já deveriam estar
formados. Ou quereria referir-se ao
homem do futuro que o grupo
luso-tropical apresentará no concerto das nações?
Almerindo Lessa: Sempre que eu falo no mestiço do futuro
é evidente que me refiro ao mestiço luso-tropical, em que uma das raízes é um natural das regiões intertropicais, seja um ameríndio ou seja um negro, e a outra é, em princípio, um caucasóide da nossa
metrópole.
Júlio Monteiro: Mas acredita nesse homem do futuro como predominando sobre o elemento
europeu?
Almerindo Lessa: Acredito, em princípio, que esse homem vai oferecer outras possibilidades. Eu creio
que, se se mantiver este
sentido de equilíbrio genético, este sentido de adaptação, o homem novo das regiões intertropicais, o mestiço luso-tropical, terá melhores possibilidades de se adaptar e de subsistir nas regiões intertropicais e de aí
criar uma civilização. A meu ver, por dois motivos: em primeiro lugar, porque ele vai apresentar,
com equilíbrio, as características
essenciais das duas raças mães; em segundo lugar, porque ele vai beneficiar neste
momento do que faltou
ao mestiço de outrora – ainda quando teve o mesmo «tempo» mental: das possibilidades da técnica actual.
Júlio Monteiro: Nos seus estudos de agora fez quaisquer investigações de carácter psicossomático?
Almerindo Lessa: Não fiz. Não tinha possibilidade.
Presidente: O Sr. Dr. Almerindo Lessa falou
há pouco nas raças superiores ou, melhor, naquelas
que se consideram superiores. Estou absolutamente de acordo com a sua opinião de que não existem raças
superiores, mas simplesmente povos que por circunstâncias várias, em determinado
momento, comandam a
civilização.
Há, no entanto, entre todas as raças, ou, melhor, entre todos os povos,
um que pelas suas características especiais sempre
me impressionou. Refiro-me ao povo judeu, que
redigiu grande parte dos princípios da nossa Civilização,
ao qual pertencem alguns dos maiores
génios em todos os ramos do Saber e da Actividade.
Estou convencido de que eles mesmos, e com um pouco de razão, se
consideram uma raça superior.
Como muito bem frisou o Sr. Dr. Almerindo
Lessa, tem-se verificado que ciclicamente vão aparecendo
povos ou raças que, mercê de especiais circunstâncias,
assumem, em determinadas épocas, o comando de outros povos e que então se
consideram superiores. Assim, alguns milhares de anos antes de Cristo, um observador
poderia dizer que a raça superior era a raça amarela, pois a Civilização mais
florescente correspondia aos povos dessa raça. Séculos mais tarde, dir-se-ia que o povo grego era
o povo superior, criador dos princípios da nossa Cultura. Um pouco mais tarde,
os Romanos impunham a sua Verdade de Civilização: eram um povo superior,
detentor da Força. Séculos volvidos, seríamos nós, Portugueses e Espanhóis, os senhores
do Mundo, possuidores da Riqueza. Depois, seriam os Ingleses, senhores do
carvão. Actualmente, dois povos disputam essa hegemonia: de um lado, os Americanos
e, do outro, os Russos: são os detentores do petróleo. Ora todas estas
considerações servem para demonstrar que no plano da História não há povos nem raças
superiores, mas simplesmente povos que em dado momento, por disporem de maior número,
de maior força e de melhor qualidade, comandam os outros. Assim, os Portugueses
e os Ingleses perderam o Mundo por lhes faltar a Força, e não a Qualidade. Ora
é aqui que eu quero chegar para fazer uma pergunta ao meu amigo Almerindo Lessa:
será possível, pelos métodos biológicos de que dispõe, determinar a percentagem
de sangue negro e de sangue branco na constituição do cabo-verdiano? Parece-me que seria interessante
o estudo, porque estou convencido de que, apesar de na nossa população não
haver predomínio de sangue europeu, o povo cabo-verdiano é um povo absolutamente
integrado na civilização Ocidental e é, e assim se considera, absolutamente
português pelo Pensamento.
Como eu ia dizendo, se um mestiço com
tal percentagem já sente e pensa como a cepa europeia que lhe deu origem, não
terá razão Gilberto Freire quando afirma
que aos luso-tropicais
pertencerá o comando da futura Civilização, ou, pelo menos, da Civilização
intertropical? Sim, porque: se ao Português o que lhe faltou para continuar, a
partir do século XVI, a conduzir a Civilização foi o número; se o sangue
português diluído a tal ponto no mestiço cabo-verdiano não degenerou – nós, os luso-descendentes, devemos ter confiança no nosso
futuro, pois nós compensaremos o número. É por isso que eu ponho estas
perguntas: é possível
determinar por meios biológicos a percentagem genética de cada uma das raízes a
que pertencemos? Há alguma informação concreta sobre a
serobiologia dos Judeus? Não acha que nós temos alguma coisa a dizer no futuro da
Civilização?
Júlio Monteiro: Pode verificar-se até que ponto é que os Judeus
interferiram na formação de Cabo Verde?
Almerindo Lessa: Nem eu, nem ninguém,
que eu saiba, pode responder a todas essas questões. Mas direi aquilo que
penso. Em primeiro lugar, há uma confusão que é necessário desfazer nos nossos
espíritos: é sobre o que seja Civilização. Não se devem confundir Civilização e
Técnica, Cultura e Tecnicismo. Eu nego-me terminantemente a
aceitar que os criadores da Civilização actual sejam os povos dos Estados
Unidos da América. Considero-os para isso demasiado incultos. São povos que
atingiram um aperfeiçoamento técnico, uma riqueza, um poder material que nós, pobres
povos da Europa, e vós, pobres povos intertropicais, estamos longe de
conseguir. Que só isso seja suficiente para gerar uma Cultura, nego-me terminantemente a aceitar.
O problema dos Judeus é muito difícil,
tão difícil como eles próprios. Pouco se sabe da sua Antropologia e o que se sabe é perturbador.
Por exemplo: há
maiores diferenças bioquímicas entre os judeus do Iémene
e os judeus de Varsóvia do que entre certos povos
judaicos e não judaicos. Os judeus estão assimilados; estão dissolvidos dentro
das nações. Além de ser pequeno o seu número, não conheço características químicas,
mensuráveis, que nos permitam diferenciá-los. É claro que é muito
difícil saber o que é que leva um povo ou uma civilização a tomar o seu apogeu
e depois cair numa fase de decadência. Mas creio que os factores aí podem ser
externos, climáticos, alimentares, ou outros. Pelo menos não deixa de ser estranho que a
decadência de Roma e a decadência da Grécia correspondam a duas das maiores secas geográficas que
houve no norte do Mediterrâneo; não deixa de ser estranho que a invasão da
Europa pelo bárbaro Gengis Khan tenha
correspondido a outra grande seca e, possivelmente, à necessidade de deslocar
povos para novas zonas de alimentação; não deixa de ser estranho
que uma das maiores sociedades modernas, o que neste momento está a retomar uma
posição decisiva no mundo, que é o Maometanismo, tenha nascido na altura de
outra seca histórica,
esta em Marrocos, quer dizer, quando os homens estavam a descrer de tudo, até
dos deuses que tinham e os abandonavam; e surgiu um homem, dotado de extraordinárias qualidades de persuasão, de
dialéctica e de comunicabilidade, que conseguiu canalizar noutro sentido essa
crise religiosa. É possível que circunstâncias como estas expliquem o fim ou o
começo de uma Civilização. Mas para a maior parte das actuais – como a norte-americana ou a eslava – nós não temos nem perspectiva nem serenidade que nos
permitam avaliar
o seu valor real. Sobre problema do mundo luso-brasileiro direi que é
possível fazer cálculo das percentagens exactas das suas raízes, mas não está feito. Os dados que eu
colhi em Cabo Verde, quando trabalhados, hão-de permitir-nos saber quais as percentagens
presentes da raiz negra e da raiz branca, mas não da dos Judeus. Sobre o problema de o cabo-verdiano se sentir perfeitamente
português e ocidental, nada sei dizer. Os meus dois meses de contacto não me
parecem
suficientes. Outros
observadores, como
A. Chevalier, têm negado essa tese, e terminantemente. Não me peçam que dê
já a minha opinião. Seria apressada.
Júlio Monteiro: Chevalier
é derrotista.
Almerindo Lessa:. É derrotista? Bom, eu
abro um parêntesis para dizer que
estranho profundamente que não tenha aparecido ninguém para responder a Chevalier. Considero esse livro, o único que se encontra correntemente nas
Universidades
da Europa, um texto
muito mau como informação, como juízo
e como descrição da Cultura e do homem de Cabo Verde.
e como descrição da Cultura e do homem de Cabo Verde.
Foi como botânico que Augusto Chevalier se interessou por estas ilhas: como
botânico, ou seja, como biologista. Daí não ter podido abstrair-se de observar as terras onde se criavam ou desapareciam essas plantas e
os homens
que as
comiam ou as queimavam.
Correu a maior parte delas, tirou apontamentos e deixou sobre a sua geografia observações cheias de' razão e de pertinência, embora profundamente
contundentes para a nossa posição histórica. Cabo Verde ainda era naqueles anos de 1930 uma das regiões mais ignoradas no campo da biogeografia. Apesar de manter o, atractivo de ser «a mais antiga colónia tropical do Mundo» e dotada de um «clima de paraíso terrestre», o explorador de Paris sentiu-se
desolado, afirmando
que séculos de exploração
irracional e destrutiva tinham transformado as terras
num país de ruínas e num
arquipélago de males irreparáveis. Alguns
dos seus períodos[1]
têm o cheiro de um responso: «o português julga
ter marcado o negro cabo-verdiano e o mestiço com uma impressão
profunda. Julga ter-lhe imposto a sua religião, ter-lhe
feito perder os seus costumes africanos, seu
feiticismo, seus ritos, suas danças, sua magia, seus costumes livres. Tudo isso
não passa duma aparência. O negro cabo-verdiano
continua o negro bon enfant que conhecemos em África. Só se transformou
à superfície. Mais: o branco e o quase-branco que vivem à sua volta é que
foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes.
Os cabo-verdianos têm, na sua maioria, sangue português,
mas não pensam em português. São mais vivos, porém menos empreendedores;
a maior parte dos jovens sonha navegar e gosta da aventura, mas, se se expatria
fàcilmente, mais fàcilmente regressa ao país natal. Guardaram da raça negra o
carácter versátil e a puerilidade. Ao contrário dos negros do Norte de
África, são muitas vezes taciturnos e mornos. Esta última palavra faz até parte
da língua crioula, muito diferente do português. São por vezes bastante
inteligentes, mas infelizmente indolentes. Não é duvidoso que mentalidade
africana predomine».
Júlio Monteiro: É a introdução.
Almerindo Lessa: Sim, é a introdução. Eu não discuto as
suas informações botânicas. Agora, o que lá diz do homem cabo-verdiano não é um
bom serviço a Cabo Verde. Os seus juízos já influenciaram mal muitos políticos
e sociólogos: «ilhas desertas, irrecuperáveis, desoladoras, para as quais seria
necessário um trabalho recuperador de milénios, ilhas
para abandonar»… eis a tese de Chevalier.
Júlio Monteiro: Parece que ele falou em nome de Dacar.
Almerindo Lessa: Então, lamento que não haja um homem de
Cabo Verde que fale em nome de Cabo Verde.
Júlio Monteiro: Já se devia ter respondido.
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