A intervenção do Primeiro-Ministro (PM) pareceu-me clara e assertiva quanto ao modelo de regionalização que pretende para o país, bem como sobre a metodologia e o timing da sua implementação. Independentemente do desfecho que o processo possa vir a conhecer, no mínimo tem de se lhe tributar coragem política, em contraste com o seu antecessor, que atirou sempre para as calendas gregas uma decisão sobre esta matéria. Resta saber até onde resistirá aos lobbies que não se identificam com os objectivos desta reforma e sempre se lhe opuseram.
Sendo certo que entretanto a regionalização foi já aprovada em conselho de ministros, contudo não está ainda completamente esclarecido o quadro institucional e financeiro que viabilizará a implementação da reforma e garantirá o seu sucesso. Sempre me pareceu de meridiana evidência que a regionalização é uma reforma de tal magnitude que não pode ser encarada como simples peça que se encaixa na máquina do Estado, como creio ser intenção. Tem custos de instituição e funcionamento que não são negligenciáveis num país de parcos recursos, ainda que o PM não os valorize quando afirma que se estimam na ordem de pouco mais de “400 mil contos, 0,2% do PIB nacional”. Mas não é só este o custo a equacionar; as regiões terão de ser dotadas, logo no arranque do processo, das primeiras muletas financeiras para poderem dar os primeiros passos, sob pena de se verem goradas as expectativas criadas. É irrecusável que uma primeira armadura financeira das regiões tenha de provir do OGE. Como fazê-lo sem introduzir outras reformas sistémicas e de efeito convergente, é questão até agora não abordada, antes pelo contrário, foge-se dela como o diabo da cruz.
Mas, em minha opinião, a resposta só pode encontrar-se nestas medidas essenciais: reduzir a dimensão do Estado central (Praia), emagrecendo não somente o governo mas também desconcentrando e deslocalizando do centro para a periferia, superestruturas, como ministérios, órgãos de soberania, nomeadamente tribunais superiores, e outras instituições públicas; repensar o dispositivo autárquico de Santiago e mesmo de outras ilhas, onde muitos municípios surgidos como cogumelos têm uma relação mais directa com a distribuição dos Fundos de Financiamento Municipais do que com os objectivos de um judicioso ordenamento territorial. Ora, todo este quadro aglutinador é que explica que 80% do OGE são afectados a Santiago, justificados não tanto pela sua condição de ilha mais populosa mas sobretudo por aquele encargo auto-instituído.
Com efeito, sem uma efectiva reorientação da política orçamental, não é credível que a regionalização possa relançar as economias locais apenas com o estímulo de uma “diferenciação fiscal”, como anunciou o PM. O investimento privado não funcionará com uma varinha mágica se as regiões não forem dotadas de um suporte infra-estrutural mínimo, o que requer meios financeiros que só poderão disponibilizar-se aliviando consideravelmente o peso do Estado central. Só com esta medida se consegue prover os “Planos Estratégicos de Desenvolvimento Sustentável” com o suporte financeiro necessário e suficiente para realizarem os seus fins. Será um absurdo pensar que a aplicação discricionária de um qualquer princípio da solidariedade inter-regional atingirá o mesmo objectivo. Resultaria numa igualitarização albanesa, ou seja, um nivelamento por baixo, como observou Ricardino Neves, em que as regiões com reais potencialidades para crescer ficariam com as pernas cortadas, sem que, em contrapartida, melhorasse significativamente a situação das regiões mais deprimidas.
Portanto, não reduzir consideravelmente a espessura do Estado central compromete os objectivos da regionalização.
Perfila-se um outro problema que pode implicar com o funcionamento eficaz dos poderes regionais. Prende-se com a afirmação do PM sobre a intocabilidade das atribuições municipais.
Experiências comparadas poderiam por si só demonstrar que não é um valor absoluto a manutenção dos municípios tal como existem quando se reconfigura de alto a baixo a administração do território. Basta um olhar realista para a escassa dimensão territorial e demográfica das nossas ilhas para logo ficar nítido que a criação do poder regional requer um reajustamento criterioso da organização autárquica e até mesmo a eliminação da figura do município, substituindo-a por estruturas inframunicipais de composição variável com o tamanho e a natureza de cada comunidade. Com o poder regional dimensionado à cada ilha, é um
desperdício e ao mesmo tempo uma inconveniência institucional manter as actuais estruturas municipais como estão. O pragmatismo aconselha a repensar o poder municipal nas ilhas unimunicipais, substituindo-os por estruturas menores e com diferente estatuto jurídico, sob a dependência directa dos governos regionais. E porque não o mesmo nas ilhas plurimunicipais?
É inquestionável que as actuais facilidades de comunicação derrogam as razões que outrora determinaram a proliferação de municípios em ilhas de baixa densidade populacional. Além da medida de poupança em si, eliminar ou remodelar na administração pública local o que descartável ou redundante, contribui para que o poder regional se exerça sem se emaranhar numa teia de empecilhos e equívocos.
Outra questão também aflorada e suscitada durante o debate foi a criação de um parlamento bicameral, defendida por João do Rosário, Ricardino Neves e outros, mas não acolhido pelo PM, que argumenta que semelhante alteração iria atrasar a implementação da regionalização (2020), já que tal exigiria revisão da Constituição e do Código Eleitoral, além de, segundo ele, poder arrastar sine die o debate. Estou em concordância com os que alegam que a reforma em causa justifica que a Constituição seja revista para lhe poder consagrar a figura jurídica adequada e para, em oportunidade, acolher as restantes alterações tidas como convenientes. E acrescento que a reforma da organização autárquica seria outra medida a incluir. A pressa pode não ser a melhor conselheira perante uma reforma que assinala a transição para a III República.
E então vem a propósito o chavão usado pelo conferencista Francisco Tavares de que “não há ilhas capazes e outras menos capazes”, induzindo a ideia de que são todas iguais. Se isso é verdade como abstracção ideológica quando se concebe a igualdade de acesso das populações aos bens essenciais, dir-se-á que, por antinomia, as ilhas são diferentes em função de uma série
de factores: condições naturais; demografia; dinamismo social; provisão de quadros técnicos e de estruturas-base; enfim, massa crítica. Desta maneira, perante variáveis tão distintas na sua índole, utilizar indicadores estatísticos descontextualizados e obliterados do seu significado, não será a melhor metodologia para interpretar as verdadeiras causas das nossas assimetrias regionais. Essa tentativa ainda se perceberia se todas as ilhas tivessem sido objecto da mesma bitola de favorecimento político, ou estatal, pois a leitura dos indicadores ocorreria num plano de uniformidade de tratamento. Diferente é quando o progresso resulta do concurso de oportunidades históricas, que, fruto do acaso ou do determinismo, são produto da acção do homem e das dinâmicas sociais que livremente empreende e que, pela sua natureza, são difíceis de prever e de quantificar. As nossas ilhas têm, pois, diferentes capacidades para operar como pólos do desenvolvimento global do país. Cada um dos pólos deve ser magnetizado, conforme a sua capacidade de carga, para gerar riqueza em proveito próprio mas, acima de tudo, do conjunto nacional. Por isso é que também não é pertinente apregoar que “ninguém fica para trás”, porque todas as ilhas, sendo iguais mas no entanto diferentes, deverão posicionar-se na linha de partida envergando a camisola a que fazem jus pelo curso da sua história e pelas dinâmicas sociais e culturais que geram. Portanto, em vez de retórica moralista vazia de sentido prático, impõe-se uma atitude racional e o sopeso conveniente da realidade.
Mas esta questão não vem por acaso. O PM tem afirmado que São Vicente iria crescer, mas com o investimento privado. A afirmação, podendo ser pacífica, preocupa porque a mesma sentença parece excluir Santiago, a ilha que nas últimas décadas mereceu o privilégio do investimento estatal. Na verdade, não é aceitável que, ao contrário de Santiago, São Vicente só possa progredir e sair da letargia a que foi votada pela política centralista se o investimento
privado vier a toque de caixa bater-lhe à porta. Os mais optimistas ou mais crédulos dirão que é pela reminiscência histórica do passado da ilha de São Vicente que o PM acredita na reedição do milagre do maciço investimento privado que outrora fez dela a principal geradora de receitas do arquipélago. Mas os mais pessimistas ou realistas dirão que hoje nem Jesus Cristo consegue operar milagres de semelhante calibre. É certo que as ilhas do Sal e da Boavista saíram do “estado de natureza” das suas potencialidades naturais porque o investimento exterior as contemplou, mas a regionalização pode ser também a oportunidade para uma reflexão sobre o modelo de turismo que mais convém ao relançamento da nossa economia.
Em suma, é impossível, se não indesejável, fazer das ilhas réplicas umas das outras. Aquelas onde o empreendedorismo privado tiver larga primazia sobre a iniciativa do Estado, caminharão pelos seus próprios pés e é sempre difícil prever até onde, por estarem em causa variáveis que não dependem exclusivamente da sua vontade. Outras, pelas suas características, necessitarão mais do amparo do Estado, em grau variável. No entanto, todas as ilhas devem ser as mesmas portas de entrada e saída de todos os cabo-verdianos, de Santo Antão à Brava. Ao Estado compete melhorar as ligações internas, em especial as marítimas, para, juntamente com as actuais tecnologias de comunicação, serem criadas todas as condições para os cabo-verdianos se sentirem cidadãos de parte inteira em qualquer das regiões, tornando irrelevante a pertença a esta ou àqueloutra. Esperemos que doravante os gráficos e os indicadores estatísticos sirvam apenas para corrigir a rota.
Tomar, 31 de Março de 2018
Adriano Miranda Lima
0 comentários:
Enviar um comentário