No meu artigo anterior, afirmei que o conferencista, Francisco Tavares, produziu extrapolações com base em dados estatísticos deslocados do seu contexto e em indicadores insuficientemente caracterizados. Sem querer pôr em causa o seu trabalho, aliás meticulosamente organizado, penso que a exposição pecou por alguma superficialidade e também pelo uso de chavões de teor publicitário que eram dispensáveis; como, por exemplo: “não há ilhas capazes e outras menos capazes”; “não há povos mais inteligentes e outros menos inteligentes”, e outros no mesmo estribilho; e “ninguém fica para trás”.
Ora, outro juízo não se pode fazer quando é notório que evitou analisar a dimensão real do centralismo: os seus fundos alicerces; a lógica do sistema que o enforma; a rede de compromissos que lhe está subjacente. Como ignorar que o centralismo não é apenas institucional, mas eminentemente económico e social, com interesses empresariais, político-partidários e pessoais enredados e acantonados de pedra e cal no mesmo espaço dilecto de influência? Que dizer também da consagração de um único modelo de regionalização sem o confrontar com outras alternativas possíveis, para que não fiquem dúvidas sobre a racionalidade da escolha? Contudo, para mim, neste ponto concreto a bota bate com a perdigota. Pois, este modelo, o mais fragmentário e dispersor de energias criativas, será o que mais convém aos beneficiários do centralismo, por em princípio não tocar no hardware do sistema. Este tem nome e ninguém o ignora: o epifenómeno do Estado centralizado e concentrado na mesma cidade/ilha e entrelaçado com uma organização autárquica (nove municípios na mesma ilha) assaz sobredimensionada e à revelia dos melhores princípios de organização e planeamento do território. O centralismo pode, pois, na sua essência, manter-se incólume perante um território periférico dividido em pequenas parcelas autogestionárias mas insignificantes como poder político.
De facto, não se ouviu uma única palavra ou se exibiu um gráfico a demonstrar à assistência que a manutenção desse hardware custa cerca de 80% ao OGE, condicionando drasticamente a reforma da administração pública. Talvez por não lhe ser muito confortável, o conferencista desviou-se do núcleo duro do problema, gravitou à sua volta com asas de pluma. Daí ter-lhe sido mais conveniente extrapolar que São Vicente está no lote das ilhas privilegiadas, ao lado de Santiago Sul, Sal e Boavista. Não sei se foi vítima do ardil do seu raciocínio, mas deixou no ar essa intencionalidade ao pôr em evidência as seguintes conclusões sobre as realidades mais assimétricas do país: “Boavista ꞊ 2,9 x São Salvador do Mundo”; “São Vicente ꞊ 2,1 x São Salvador do Mundo”. E em matéria de PIB per capita/desigualdades: “Boavista ꞊ 2,9 x Santiago do Norte”. Com estes exemplos, fica explícito que o município de São Salvador do Mundo e Santiago Norte são as vítimas principais do centralismo, enquanto Boavista e São Vicente enfileiram as ilhas privilegiadas. Considero isto uma forma habilidosa, mas capciosa, de denunciar que os mindelenses desencadearam a guerra da regionalização por se acharem prejudicados pelo centralismo, mas que, afinal de contas, habitam uma ilha beneficiada.
Porque na verdade é estranho não ser Santiago Sul o termo de comparação, como devia impor-se, mas sim as ilhas de São Vicente e Boa Vista, e implicitamente Sal, quando faria mais sentido confrontar entre si as duas metades da ilha de Santiago. Se efectivamente são
assimétricas no seu desenvolvimento, o que tem de questionar-se é a (in)competência da acção governativa, que nem aplicando na mesma ilha a maior parte dos recursos nacionais evitou um desequilíbrio intra-regional no seu território. Além disso, é aberrante, para não dizer ridículo, comparar São Vicente com o mais atrasado município de Santiago, realidades que são completamente distintas. O concelho de São Salvador do Mundo, pouco mais que uma aldeia, criado em 2005, com 31 km² de extensão e uma população de 8677 almas, só poderia emular com S. Pedro, Baía das Gatas ou Salamansa, localidades de São Vicente que até agora ninguém pensou promover ao estatuto de município. É um absurdo intelectual pretender induzir conclusões tomando dois termos de comparação que são díspares na sua dimensão e na sua natureza. Se o estratagema é negar a marginalização política a que tem sido votada São Vicente, não surtiu o efeito almejado. Essa marginalização não é apenas virtual ou imaginária, pois está objectivamente consagrada no critério de atribuição das dotações do OGE, em que São Vicente se vê sistematicamente destratada, colocada atrás do município de Santa Catarina e em posição equiparável a municípios menores do território da ilha de Santiago.
Ricardino Neves explica muito bem o desconchavo da situação no seu artigo publicado, em 18/2/2018, no jornal A Nação, intitulado “São Vicente: Os números do meu (nosso) descontentamento, os critérios da minha (nossa) indignação, por uma mudança de atitude”. O autor demonstra que, de acordo com os últimos dados do INE de 2015, o PIB do concelho da Praia é 2,7 vezes superior ao de São Vicente, e no entanto os investimentos públicos que lhe são afectados no OE de 2018 são 9,9 vezes superiores ao daquela ilha. Quanto ao Fundo de Financiamento Municipal (FFM) constante do relatório da Proposta do Orçamento do Estado de 2018, São Vicente, com uma população duas vezes superior à do concelho de Santa Catarina, recebe no entanto menos 59.546.134 ECV que esse concelho. E o concelho de Santa Cruz, com 25% da população de São Vicente, recebe daquele fundo pouco menos que a ilha do Porto Grande. Mais demonstra que São Vicente produz uma riqueza (PIB) 1,35 superior à de todos os concelhos de Santiago excluído o da Praia, e no entanto estes recebem um FFM 4,63 superior ao daquela ilha. A incongruência é bem evidente, mas outros mais dados apresentou e analisou Ricardino Neves para demonstrar o critério de gritante discriminação de que tem sido vítima São Vicente, como, por exemplo, os benefícios da cooperação internacional, em que também a ilha vê o navio passar ao largo.
Portanto, importa ler e interpretar correctamente os números e situá-los no seu devido contexto, porque a mistificação não pode ter lugar quando se faz a radiografia do organismo nacional. Para não alongar demasiadamente o texto, concluirei em próximo artigo a minha abordagem a este tema.
Adriano Miranda Lima
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