quarta-feira, 4 de abril de 2018

Comentários de Adriano Miranda Lima a propósito do texto: ”...A malévola intenção de erradicar o português na oralidade do falante cabo-verdiano”.
Por nos ter parecido que estes comentários são na realidade uma reflexão crítica sobre o que se passa com a Língua portuguesa aqui nas ilhas e que o autor muito acertadamente define como um “epifenómeno”, achamos por bem publicá-los sob forma de um texto uno.

Eu próprio já escrevi artigos sobre esta problemática da língua na nossa terra, pela estupefacção que me causa o epifenómeno que a Ondina traz hoje mais uma vez à nossa reflexão. Sim, é mesmo um epifenómeno. Muitas vezes passa-me pela cabeça que se calhar é mais um problema psicológico (ou psicótico?) que linguístico. Não embarco na tese de alguns iluminados para quem o crioulo nascido nas ilhas é uma manifestação da nossa superioridade étnica em relação aos outros povos das antigas colónias. Para mim, foi sempre um problema de analfabetismo e mais nada. Quem não tinha acesso à instrução ficava-se pelo crioulo, e pronto. O que não se compreende é o nivelamento geral por baixo. Desde a minha juventude apercebi-me de que havia certo constrangimento (para não dizer vergonha) em falar a língua portuguesa. O problema é que iremos ficar cada vez mais isolados dos nossos parceiros da CPLP.
Esta tema da confusão e indefinição linguísticas em Cabo Verde dá pano para muita manga, e por isso não resisto a contar também um episódio. Não é nada diferente de outros que acontecem rotineiramente no espaço da vida política e da administração pública e até em eventos culturais. Na conferência sobre regionalização realizada em S. Vicente, todos os intervenientes falaram em português, como se impunha, atendendo às circunstâncias e à natureza do assunto que ia ser tratado. Apenas um interveniente, pessoa que creio já passou pela política e ocupa um cargo social muito importante, fez a diferença. Ao apresentar-se, disse que ia falar em crioulo por ser hábito, embora viesse a ser o único interveniente que o fez. Tudo bem. Toda a gente percebeu a sua comunicação (em crioulo de Barlavento), mesmo os santiaguenses presentes na sala. Só que alguém de qualquer dos outros países da CPLP que, nada sabendo do seu propósito de querer exprimir-se em crioulo, o estivesse a ouvir, o que captaria era um discurso em português com soluções trapalhonas ao nível das formas verbais, dos pronomes, do género e do número, e outras particularidades menores de ligação. Mas diria que 95% do discurso seria entendido como uma comunicação em língua portuguesa, dado que o tema assim o obrigava, com predomínio de palavras como: marginalização; assimetrias regionais; parlamento bicameral; legitimidade; centralismo político; implementação; privilégio, descentralização; competências administrativas; desequilíbrio territorial; estatísticas; indicadores; investimento; crescimento demográfico; migração; incentivo, etc. Refira-se que a pessoa utilizou estas palavras de forma inteiramente correcta, em especial no que respeita ao número, o que não acontece quanto se fala em crioulo em que não se distingue o número e o género,sobretudonopronomes.
Ora, neste como em outros casos, pergunta-se por que não falar em português na sua integridade formal se quase todo o discurso toma de “empréstimo” palavras da língua portuguesa? A resposta que me ocorre é só uma. Admito que a maior parte dos cabo-verdianos escolarizados conhece e domina o vocabulário português e até se permite certa sofisticação expressiva se for caso disso. No entanto, quando se trata daquelas particularidades citadas, aí já é frequente haver falhas gramaticais. E então a pergunta é se a preferência pelo crioulo não será uma atitude instintiva de defesa, denunciando uma insuficiente preparação escolar. Claro que não foi o caso da pessoa a que me refiro, que suponho até ser licenciada. Mas o exemplo que ele passou a quantos o ouviram, sobretudo os mais jovens, foi extremamente negativo, nada contribuindo para uma evolução positiva nesta matéria.
O crioulo até dá jeito em certa comunicação informal, em situações breves e ligeiras do quotidiano, mas quando se passa para assuntos mais sérios, “já bô psu” se não pegas nas muletas do português.
Parece que há algo no nosso subconsciente que rejeita o uso do português, e isso é que tem de ser analisado sem complexos, mesmo que se tenha de usar um divã para deitar o paciente. Não colhe inteiramente esse argumento de alguns pseudonacionalistas de que é uma maneira de banir da mente a presença do colonizador. Isto é de uma cretinice tal que, aí sim, é preciso mesmo deitá-los num divã para uma severa psicanálise; mas, sendo o caso de um transtorno causado por trauma político, pode ser que não provoque qualquer atavismo e desapareça com a morte dos pacientes. E se não resolver o problema pelo menos será uma maneira de os obrigar ao confronto com os seus “gongons”. O que é estranho é que os povos que talvez mais razões tivessem para isso, não rejeitam o português como nós e utilizam a língua sem qualquer complexo.
Sim, Ondina, é simplesmente vexatório que Angola rejeite os nossos professores cooperantes. E desmente o mito da superioridade cultural dos cabo-verdianos, chão que deu uva noutros tempos mas está agora bem ressequido.
O episódio da inquiridora que tinha de traduzir para crioulo as palavras do inquérito, é uma evidência flagrante de que a coisa está mesma muito feia. Penso que os governos têm de intervir a sério para resolver este problema porque o nosso caminho pode ficar muito complicado se viermos a ficar na CPLP numa situação (linguística) na prática similar à da Guiné Equatorial, onde ao menos se deve falar alguma coisa de espanhol.







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