Eis aqui uma impressão da leitura do livro “História da
Escravatura” de James Walvin, edição da Tinta da China. Lisboa, 2014. Gostei.
Gostei muito! Penso que o título original – A Short History of Slavery
– traduz melhor o seu conteúdo do que o português. Na verdade o livro
aborda, essencialmente mas não unicamente, o tráfico negreiro transatlântico no
universo britânico – Inglaterra, América do Norte e as Caraíbas. Fá-lo de forma
bem documentada envolvendo os outros mundos esclavagistas, sempre que
necessário melhor esclarecimento. Recolhi dados interessantes.
O que me intriga mas não me surpreende é o tratamento dado
– não me refiro ao autor – aos africanos no triângulo África, Europa,
Américas: “inimputáveis”. Penso que a cadeia de responsabilidade deve ser
estudada sem paternalismos; estes, – paternalismos – podem ser tolerados com
alguma compreensão na análise política mas inadmissíveis na análise Histórica.
É claro que isto, nada tem que ver com as ignaras pretensões analíticas de
Bolsonaro. E é interessante a observação do autor – James Walvin – quando diz:
” … Em 1888, a escravatura extinguira-se no continente americano.” E continua:
“Porém o mesmo não se pode dizer de África. Aliás, na altura exacta em que os
americanos abandonavam o seu apetite por escravos negros, devia haver mais
escravos em África do que nunca, talvez mesmo mais do que aqueles que haviam
sido transportados em toda a história da escravatura do Atlântico.” E a este
respeito apela para um debate. E faz ainda uma outra, de entre muitas,
observação relevante: “Os africanos continuam a ser levados para Norte através
do Saará ao longo das rotas de comércio tradicionais, e para Leste , da África
Oriental e do Corno de África para os mercados de escravos do mundo islâmico. “
E diz ainda:”Nesta região [mundo islâmico] a escravatura antecedia o sistema de
escravos do Atlântico e manter-se-ia muito depois de este acabar, tendo
sobrevivido durante mais de um milénio, até ao século XX, e tendo provavelmente
subjugado mais africanos do que aqueles que foram levados pelos navios
negreiros europeus.” Sintomático e esclarecedor!...
Pois bem, faço esta abordagem porque se tem silenciado a
intervenção árabe (islâmica) nesta vergonha universal.
Recentemente e ainda envolto em polémica, fizeram-se
denúncias da censura, da intervenção por
parte do canal de televisão Aljazira que pura e simplesmente não passou,
subtraiu, eliminou na apresentação, um dos documentários de uma série de quatro,
no caso, o primeiro exactamente aquele que demonstrava como os árabes foram pioneiros e senhores do comércio
de escravos, muito antes dos europeus.
Uma nota que me parece de interesse, enquanto lia a «História da
Escravatura», na mesma altura li um artigo, ensaio da investigadora brasileira Armanda Rossi, sobre o mesmo tema. De esclarecer que
fiz apenas uma leitura cruzada. E como estava a ler "História da
Escravatura" pareceu-me que alguns dados se conflituavam. Uma aparência
que ainda não deslindei mas que penso fazer quando tiver vagar. Até me sugeriu
a avaliação dos conceitos "escravidão" utilizada no referido artigo e
"escravatura". Não a análise semântica que me parecem sinónimos. Sem
me ter debruçado ainda seriamente sobre este aspecto, pensei na questão de
Hitler e mesmo Staline e o seu Goulag, que tinham sob "escravidão"
milhões de pessoas o que poderá vir a configurar uma "escravatura"
tão cruel e mais numerosa em termos de população envolvida, que a
transatlântica. E ainda nesta dicotomia "escravidão" "escravatura"
lembrei-me de um dado interessante que o livro me ressaltou: um tempo, ou um
lapso de tempo - o autor explica - em que os escravos (ou a comunidade) tinha
um tratamento humano - para mim, ausência de escravidão - não por humanismo ou
generosidade dos seus donos ou proprietários, mas para a valorização do seu
produto (escravo) que nessa condição não só haveria maior rendibilidade no
trabalho como a fecundidade/fertilidade seria muito maior, o que era uma
preciosa mais-valia económica... Uma distinção entre a "escravidão" e
a "escravatura"? Não será seguramente do domínio estrito dos
dicionaristas...
Convém referir igualmente ao começo da
escravatura africana portuguesa: ela teve o seu início em 1415 (?) com a
conquista de Ceuta e constituiu, praticamente, um único produto dessa conquista
para além de um posto avançado de "espionagem". E os árabes (ou
islamizados) já a praticavam com estruturas montadas...
Mas aproveito também
para me perguntar: E então onde fica o Brasil? Este país só abole a escravatura
em 1888. 50 anos depois dos britânicos e mais de 60 depois da sua
independência, período em que milhões de escravos foram ainda para ali
transaccionados. Depois da proibição do tráfico transatlântico em 1908, ainda
foram traficados mais de 3 milhões de escravos, a maior parte para Brasil e
Cuba também este já independente havia mais de 60 anos. Seriam os
europeus (portugueses) ou seriam já brasileiros e cubanos?
De quase tudo isto alvitra o livro de James Walvin, que apela o leitor para uma
visão e um entendimento mais alargados do ignóbil fenómeno da escravatura que
teve agentes e intervenientes de várias origens, raças e nações.
A.
Ferreira
1 comentários:
Excelente!!
Já agora, a ideia que tinha sobre a escravatura era negros acorrentados e de trabalhos forçados. Este outra lado de um certo "conforto" e alguma "protecção" duma mercadoria valiosa, e que não deveria ser "maltratada" me era totalmente desconhecida.
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