Suponho que a nação cabo-verdiana não está ainda suficientemente esclarecida acerca de tudo o que envolve este processo e as suas futuras e previsíveis etapas, desde logo o problema geoestratégico envolvente e os objectivos de segurança colectiva em vista. Muitos ignoram que o SOFA, por enquanto, apenas traduz o reconhecimento de um estatuto de imunidade para os militares e os órgãos funcionais das estruturas de forças americanas que intervirão no nosso espaço marítimo. Assim, o SOFA representa a condição prévia para a formalização de acordos sobre a tipologia, a natureza, a dimensão e a estrutura das forças americanas que cooperarão com as suas congéneres cabo-verdianas na vigilância das águas territoriais nacionais, com vista à segurança e defesa comum contra as múltiplas ameaças que impedem sobre o Atlântico Médio e estão perfeitamente identificadas e inventariadas.
Tenhamos em mente que o Atlântico Norte já não ocupa a centralidade estratégica e económica que teve durante séculos. O sistema político global encontra-se em profunda mutação, com a emergência de grandes potências como a China e a Índia (região Ásia-Pacífico) e de países produtores de recursos energéticos localizados na costa ocidental africana, designadamente a Nigéria, Angola, Congo, Guiné Equatorial, Gabão e outros. Calcule-se então quão importante é garantir a segurança da circulação marítima na região, de que depende a economia mundial, protegendo-a de incursões de pirataria e demais ameaças encorajadas pela constatação da fragilidade genérica dos estados africanos locais, reconhecidamente incapazes de exercer as suas responsabilidades soberanas nos respectivos espaços marítimos. São os tais Estados que não têm quaisquer condições para fazer jus ao princípio da reciprocidade nas relações internacionais, com reflexo negativo na segurança global, daí que tenham, por imperiosa necessidade, de abrigar-se debaixo do guarda-chuva de sistemas de protecção colectivos para poderem manter a sua ilusão de Estados independentes, que em muitos casos não passam de uma ficção legal.
Desta forma, a região do Atlântico Médio, mais do que revestir uma dimensão espacial e material com crescente significado, precisa ver materializado um processo de compromisso multilateral, fomentando ligações profundas e dinâmicas de permuta e cooperação para a prevenção da instabilidade e a garantia da segurança colectiva no espaço em que se inscrevem os referidos Estados fragilizados ou precários. E aqui é que surge a posição de charneira que Cabo Verde pode ocupar, reconhecida não apenas pela sua privilegiada localização geográfica mas também pela sua condição de Estado democrático, pacífico e politicamente estável, de cultura ocidental. Dir-se-á que Cabo Verde se vê mais uma vez identificado e compaginado com a sua vocação natural quando o governo dos EUA o considera o parceiro mais confiável para a cooperação desejada. Por isso, parece-me inconcebível que se olhe para este problema por um estreito canudo ao fundo do qual só é lobrigável um cortejo de malefícios. Alguns alegam que os americanos vão fazer gato-sapato dos cabo-verdianos, cometendo impunemente toda a sorte de tropelias e transgressões contra as nossas pessoas, os nossos bens e os nossos interesses. Outros antevêem o rosto sobranceiro de um novo colonialismo ou riscos iminentes para a independência nacional. Nem sequer se questionam sobre a realidade da importante Base das Lajes nos Açores, que remonta ao tempo de Salazar e nunca representou qualquer engulho para a independência nacional portuguesa. Outros mais exemplos por esse mundo fora desmentem a dúvida axiomática que parece ensombrar alguns espíritos. E, já agora, os cépticos e zeladores das nossas virtudes soberanas que me desculpem a frontalidade por colocar a seguinte
indagação. A honorabilidade da nossa independência não é questionada quando ela depende significativamente da ajuda da comunidade internacional? Ajuda que oxalá perdure por tempo longuíssimo, pelo menos até podermos voar orgulhosamente com o impulso das nossas próprias asas.
É perante este quadro que entendo deve impor-se um esclarecimento cabal da nação. Não chega uma declaração pontual e apressada na comunicação social. Não basta o eco remoto do que é decidido em sede própria. Este assunto reveste delicadeza e é demasiado importante para não merecer um debate continuado e clarificador entre as forças políticas e vinculando a sociedade civil, e mesmo uma declaração formal e com pompa e circunstância a dirigir ao país por quem de direito. Tem de se desmistificar ou desmontar as dúvidas e apreensões que persistem. Contudo, todas as opiniões são respeitáveis e merecem ser olhadas como um sinal de cidadania viva e actuante. Se pairam sombras sobre algumas cláusulas, estamos a tempo de as esclarecer convenientemente através dos canais competentes. Mas sinto-me confiante quando leio uma entrevista dada pelo embaixador Carlos Veiga em que ele demonstra que se está a fazer um bicho-de-sete-cabeças com um SOFA que nas suas linhas gerais é semelhante às centenas que os EUA estabeleceram com vários países. Por conseguinte, parece-me descabido alimentar dúvidas sem suficiente fundamentação, mormente quando põem em causa o critério e o sentido de responsabilidade dos que acreditam ter agido, conscienciosamente, em nome do interesse nacional: o Governo, o Presidente da República e o embaixador acreditado em Washington.
Nada, mas rigorosamente nada, me identifica com os partidos cabo-verdianos, embora a minha própria sensibilidade ideológica me sugira proximidades pontuais e diversificadas em função do que interpreto como o interesse de Cabo Verde e dos cabo-verdianos. Isto deixa-me à vontade para considerar que o PAICV está no seu direito de pedir a fiscalização sucessiva do Acordo pelo Tribunal Constitucional, como anunciou. Contudo, sendo um partido do arco do poder, seria de esperar que tivesse esgotado o debate com o governo, ao encontro de um amplo consenso sobre o objecto deste Acordo. Qual será a sua posição se, mais tarde, sendo governo, tiver que lidar com o facto consumado? Vai anular o Acordo e reverter o processo de cooperação com os EUA?
Também devo esclarecer que a minha opinião não é suscitada por qualquer afeição à política externa americana. Pelo contrário, como todo o cidadão com dois dedos de testa, sou um crítico consciente e assumido daquela política. Discordo do fervor intervencionista e unilateral dos EUA e censurei tempestivamente o apoio dado pelo governo do admirável Obama à chamada Primavera Árabe, cujas consequências desastrosas perturbam a paz mundial. No entanto, o Acordo que está na agenda tem de ser olhado sem preconceitos políticos, sem macaquinhos no sótão, apenas norteado por uma visão realista e pragmática do tempo actual e da região do planeta onde o destino implantou as nossas ilhas hesperitanas. A práxis da política mundial é como é, não como a idealizamos.
Tomar, Setembro de 2018
Adriano Miranda Lima
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