Recentemente, foi tornado público que
o ex-primeiro-ministro, José Maria Neves (JMN), defendeu a criação de um Estatuto Especial para os antigos
chefes de governo cabo-verdianos. Para JMN, “esse estatuto deve passar por um
subsídio mensal ‘condigno’, garantia de viatura, segurança, telecomunicações e
viagens quando se desloquem em trabalho na condição de ex-governante”. Sustenta
a sua tese no facto de “os ex-presidentes da república terem um estatuto, um vencimento
mensal, escritório, segurança, transporte, assistentes e despesas de
telecomunicações e de saúde pagas”. Indo mais além, JMN propõe ainda “uma
compensação para os ex-assessores do gabinete do primeiro-ministro e dos
ministros, pelo exercício de funções públicas e de comprometimento forte
durante o mandato cessante”.
Ora, não deixa de causar estranheza, e até repulsa, esta reivindicação
do JMN. Estranheza porque creio ser inédita esta regalia especial na maior parte
das democracias que o são de verdade, seja em regimes republicanos ou
monárquicos. Repulsa porque não é eticamente limpo que um político defenda um
estatuto visando retroactivamente o benefício da sua própria pessoa. Esta
infeliz iniciativa é mais uma prova de que a classe política em Cabo Verde
tarda em fazer da democracia um espelho límpido de virtudes. Para mais, esta
reivindicação pode criar precedentes perigosos e incontroláveis, caso a moda
pegue, suscitando a curiosidade de macacos de imitação. Vejamos então. A título
de exemplo, por que não também um estatuto especial para os presidentes de
câmara que cessam funções após dois mandatos cumpridos? Ou para os titulares de
órgãos de soberania como o Presidente da Assembleia Nacional e os dos Tribunais?
Não tardaria, os ex-ministros de cada pasta estariam também na mesma trincheira
reivindicativa. E assim, de estribilho em estribilho, veríamos surgir um
retábulo de privilégios não só injustificáveis como indignos, escarmentando as
nossas residuais esperanças numa sociedade cabo-verdiana mais justa e mais igualitária.
Note-se que até mesmo o estatuto especial de que gozam os ex-presidentes
da república pode ser questionado num país de tão escassos meios como o nosso.
Admite-se, sim, que seja assegurado um quadro de dignidade pessoal e cívica a
quem exerceu a mais alta magistratura do Estado, mas sempre dimensionado à
realidade económica e social do país. Vem então à talhe de foice referir que os
antigos governadores coloniais, normalmente oficiais do exército ou da armada,
finda a missão, regressavam à sua anterior função orgânica na instituição
militar ou outra. Não recebiam qualquer recompensa vitalícia pelos serviços que
prestaram. Muitos deles marcaram indelevelmente a nossa memória colectiva pelo
alto espírito de missão e recta seriedade com que defenderam os interesses do
território e do seu povo, independentemente do regime político em que exerceram
as suas funções. Afinal, ambos os cargos, embora diferentes no seu significado
político, correspondiam ao cume da hierarquia do Estado em Cabo Verde e tinham o
mesmo pano de fundo humano-geográfico.
Mas a saga dos estatutos especiais entre nós tem que se lhe diga. Uma
das primeiras medidas do actual governo, logo na sua primeira intervenção
parlamentar, foi lançar as bases de um entendimento com o principal partido da
oposição para a aprovação de um Estatuto
Especial Administrativo para a cidade da Praia. Foi a prioridade das
prioridades numa altura em que a sociedade cabo-verdiana estava expectante de
um sinal, ténue que fosse, no sentido do cumprimento das promessas apregoadas
durante a campanha eleitoral, nomeadamente sobre a regionalização, uma vez que
este processo fora bandeira habilmente agitada em S. Vicente para conquistar o
eleitorado local. Ocorre pensar que se em Cabo Verde houvesse uma cidadania
activa, dinâmica e exigente, a atribuição deste estatuto à cidade da Praia poderia
forçar a abertura de uma espécie de Caixa de Pandora. Sim, por que não reivindicar
também um estatuto especial para a Ilha do Vulcão, sujeita a cataclismos
frequentes, para a Ilha das Montanhas, rica de potencialidades por explorar, ou
para a Baía do Porto Grande, congelada na exploração das suas vocações? Se a
cidade da Praia apresenta graves situações de disfuncionalidade estrutural, de
caos urbanístico ou de delinquência e criminalidade incontroláveis, é porque a
política centralista e concentracionária do Estado conduziu inexoravelmente a
esse resultado. Ocorre assim pensar que se fez o mal e agora se pretende fazer a
caramunha. É que esse estatuto especial traduz-se, basicamente, em mais
dinheiros públicos e vantagens para a cidade capital, quando, ao invés, deveria
atacar-se o mal pela raiz mediante o descongestionamento da urbe com a deslocalização
para outras ilhas de parte dos organismos estatais que esmagam a cidade com o seu
peso inusitado. Bem poderiam os nossos governantes ter observado a relação
paritária entre S. Miguel e Angra do Heroísmo, na região autónoma dos Açores,
ou entre Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife, na das Canárias.
Os chamados “Combatentes da Liberdade da Pátria” são contemplados em
Cabo Verde com regalias que configuram um Estatuto
Especial, que inclui um subsídio mensal e benesses de carácter social. Obviamente,
vitalícios. A respectiva associação, que integra 400 membros, viu-se há alguns
meses confrontada com a afluência de inúmeros cidadãos a reclamar esse estatuto.
É possível que haja um sem número de mistificadores e oportunistas entre
aqueles que de facto assumiram a “Luta” no mato da Guiné ou em actividade
burocrática no estrangeiro. Mas, seja como for, é discutível a existência deste
estatuto, mormente quando, não se limitando a galardões honoríficos, mexe com o
erário público e com os impostos pagos pelos cidadãos, num país que está a
braços com uma dívida pública incomportável e com reais dificuldades para atacar
a pobreza congénita de largos sectores da população. Refira-se que nada existe
de semelhante em Portugal a beneficiar os antigos resistentes ao regime de
Salazar, muitos dos quais viveram parte das suas vidas na clandestinidade,
arrostando riscos e sacrifícios pessoais e familiares. Todavia, em ambos os
casos, em Cabo Verde como em Portugal, as pessoas agiram por seu livre arbítrio,
movidas por um ideal político, e provavelmente sem esperar que pudessem mais
tarde ser ressarcidas pela sociedade. Portanto, a recompensa pelos seus actos
poderia e deveria esgotar-se num honroso sentimento de gratificação com a sua
própria consciência e, quanto muito, no reconhecimento oficial dos actos e
serviços relevantes eventualmente praticados, expresso em distinções
honoríficas e em cerimoniais públicos.
O nosso país é pobre e sobrevive graças à ajuda internacional, que, por
isso mesmo, e em princípio, deverá esperar dos dirigentes um critério de rigor,
parcimónia e contenção na gestão dos dinheiros públicos. Criar condições
especiais para beneficiar materialmente quem exerceu cargos públicos ou quem lutou
pelos seus ideais, deve extravasar os limites da razoabilidade e afrontar os
mais elementares princípios de justiça social, esta entendida no pressuposto
basilar de que numa democracia todos os cidadãos e situações devem ser tratados
em pé de igualdade perante a lei, independentemente do seu mérito. A atribuição
de “estatutos especiais” deste jaez fere de morte aquele princípio e deve
compelir-nos a uma séria reflexão sobre os valores que hoje regem a nossa
sociedade. A ética pessoal e colectiva sofre tratos de polé na nossa terra,
perante a espantosa indiferença com que os cabo-verdianos parecem assistir a
esse fenómeno deletério, como se estivessem anestesiados e inaptos para repensar
e nortear o seu modo de viver colectivo.
A pretensão do JMN, reveladora de um carácter difuso, traz-me à memória
a grandeza moral do exemplo de cabo-verdianos do passado, que se dedicaram à
sua terra e ao seu povo de corpo e alma, imbuídos de um sentido de altruísmo
que hoje não é perceptível entre nós, renunciando a todo e qualquer privilégio
ou honraria, não raro sacrificando os seus interesses pessoais. Por exemplo, e
só para citar um caso ilustrativo, lembremo-nos de que o senador Augusto
Vera-Cruz cedeu a sua moradia para nela se instalar o liceu de S. Vicente a fim
de evitar que a indisponibilidade de um edifício condigno servisse de pretexto
para preterir ou emperrar a respectiva decisão do governo central. Pois a
diferença é que naquele tempo a dimensão ética da personalidade dos servidores
de Cabo Verde tinha consistência de granito e essência de cristal, diferente do
barro de hoje, que facilmente se esboroa à mínima oportunidade, ao virar da
esquina.
Nenhum cidadão singular, nenhuma classe social, nenhum interesse
corporativo, nenhuma entidade, devem ser contemplados com Estatutos Especiais, originando indesejáveis fracturas no tecido
nacional, mormente quando os meios e os recursos não chegam para as encomendas.
Quem pensa o contrário está a prostituir-se e a contribuir para inquinar a água
já pantanosa da nossa democracia. O único estatuto especial concebível em Cabo
Verde só pode destinar-se ao seu sacrificado povo.
Algarve, 28 de Novembro de 2016
Adriano Miranda Lima
1 comentários:
Mais uma reflexão do A. Miranda Lima ao bom nível das que já bem nos habituou. Bem conduzida escalpelizando o perigo da “excepção” passar a ser “regra” e assim «inquinar a água já pantanosa da nossa democracia». Manifesta com estrondo e justifica com toda a clareza o seu (nosso) “direito à indignação” perante uma proposta obscena de um PM que mostra não “conhecer” de todo, o País que (des)governou durante 15 longos anos. Percebe-se agora melhor porque terá introduzido (foi ele que a recomendou) na proposta da Reforma do Parlamento que o PR então vetou, a "generosa" remuneração dos políticos que conduziu a uma manifestação pública que a sua ganância, egocentrismo e oportunismo ainda não lhe permitiram fazer uma sensata e inteligente leitura. Apenas sensatez e respeito se lhe exigem. Nada mais do que isto.
O que o Adriano não explicitou é que, apesar de tudo, já existe um “estatuto especial” para os ex-PM expresso no Artigo 17 da Lei nº 28 /V/97 que diz: “1. É atribuído um subsídio aos cidadãos nacionais que tenham desempenhado o cargo de Primeiro-Ministro durante pelo menos, um mandato e não exerçam quaisquer actividades remuneradas, salvo cargos electivos.
2. O subsídio referido no número anterior corresponde a 75% do vencimento do Presidente da República e não é acumulável com qualquer outra pensão atribuída pelo Estado ou outras Instituições Públicas.”
Portanto, JMN não podia querer a criação de um estatuto para os ex-PM, mas a ampliação do já existente, das mordomias. Passados oito meses depois de ter deixado o Governo, ele continua, quando está no País, a andar num carro do Estado rodeado de guarda-costas pagos pelo erário público... E não se pergunta, porquê?
Mas como pode um homem que deixou os cofres do Estado completamente vazios; que contraiu uma dívida pública sem precedentes; que destruiu a nossa economia; a nossa companhia aérea; que distribuiu sem meças benesses a uma enorme clientela partidária sem acautelar minimamente as consequências no orçamento do Estado; que sabe que só somos sustentáveis (até agora) graças a ajuda externa; que sabe que 35% (cerca de 180 mil!) dos cabo-verdianos vivem abaixo do limiar da pobreza absoluta com menos de 270$00 por dia, ignorar de tal forma o estado em que deixou o País e ter a coragem e o desplante de pedir ao contribuinte mais um sacrifício apenas para alimentar a sua vaidade, a sua megalomania, os seus projectos pessoais? Não está em causa o montante, mas como bem deixou entender o Adriano, o princípio, a moralidade, e os seus efeitos em cascata.
Presumo, que JMN nunca quis que se levasse a sério as suas propostas mas apenas que ficassem registadas, possivelmente como eventual cortina para alguma manobra esconsa que tem em vista desencadear… O futuro dirá!
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