«Arquipélago» de Jorge Barbosa

sábado, 25 de fevereiro de 2017
Por ocasião da apresentação da edição “fac-símile” do Caderno de poesia «Arquipélago» de Jorge Barbosa editado pela Editorial “Claridade”, em São Vicente, em 1935. Na Livraria/editora Pedro Cardoso, na cidade da Praia. Fevereiro de 2017
* * *
Antes de mais, felicitar - o que não me canso de  fazer - a Livraria/editora Pedro Cardoso, pelas felizes reedições que vem fazendo de obras dos nossos clássicos de há muito esgotadas no mercado livreiro nacional e que tanta falta fazem aos estudantes e aos leitores. E porque sei que o público-alvo destas edições fac-símiles, ou fac-similadas, o público-alvo, dizia, é fundamentalmente, o  académico e o  estudante da Literatura cabo-verdiana, logo, o regozijo e as felicitações, são a dobrar...
Apresentado sob forma fac-símile, guarda assim a originalidade da 1ª edição de 1935, da editorial Claridade, impressa em S. Vicente.
 Entrando agora  propriamente ao que aqui me traz - a apresentação de «Panorama» de Jorge Barbosa - apenas breves palavras, para não correr o risco de me repetir, uma vez que fui eu quem  também elaborou as Notas ao Leitor  para esta pequena colectânea de poemas. Pequena em volume, mas enorme, diria quase imensurável, pela qualidade, e pela transcendência dos versos do seu autor.
As tais Notas ao Leitor que iniciam a presente edição são aliás, dirigidas ao leitor  e  ao estudante –iniciantes - aqueles que procuram conhecer, analisando e fruindo os poemas, e  alguns deles, dos poemas,  registados nesta colectânea,  são já dos mais emblemáticos e significativos deste portentoso poeta das ilhas que é  Jorga Barbosa.
***
De forma, que me vou dirigir a vós, dizendo que a poesia de Jorge Barbosa é intemporal, continua viva, continua entre nós.  A sua leitura, provoca-nos ainda ondas de emoção de um certo gozo estético/lírico reflexos da sua inquietação ( a do poeta)  pois que nela nos reconhecemos ainda, e com ela nos identificámo-nos. Reconhecemo-nos e identificamo-nos afinal, porque o poeta soube captar e reelaborar em versos de forma, diria, acabada e sublime, a cultura partilhada,  bela e mestiça, de que resultou afinal a cabo-verdianidade.
Tudo isto, claro está, ressalvadas as marcas da temporalidade que conferiram circunstancialidade histórica, e contexto social e humano, muito espefícos da época vivida e vivenciada pelo poeta e que o terá inspirado naturalmente.
Costuma-se dizer que a Literatura é um lugar sagrado e a poesia um dos seus altares. É sobre este altar sagrado de Jorge Barbosa, inserto no «Arquipélago» que me proponho apresentar.
***
 Mas antes de prosseguir e de entrar na colectânea em apresentação, gostaria de, nesta oportunidade, recordar o que disse Gabriel Mariano, outro grande poeta, o épico  poeta aliás, de várias dimensões e valências. Ora rebelde,  ora lírico, ora futurista em premonições transformadoras. Mas igualmente um profundo ensaísta e analista de causas e dos efeitos  sociais que consubstanciaram  e fundamentam a literatura e a cultura cabo-verdianas.
Ora bem, Gabriel Mariano, definiu com cuidado, com relativismo e com  ausência de dogmatismo totalitário que  estas coisas literárias nos devem merecer, e que a ele mereceu de forma bem reflexiva – Dizia eu, definiu num dos seus ensaios, este intitulado: «Osvaldo Alcântara – O Caçador de Heranças»,  -“Ponto & Vírgula” edições. Maio de 1991 -. as carcterísticas mais proeminentes da poesia dos maiores poetas cabo-verdianos, por ele considerados :Eugénio Tavares, como sendo o poeta da “inquietação amorosa”. Considerou  G. Mariano,  a poesia de Jorge Barbosa como sendo fundamentalmente, uma poesia de “inquietação marítima” que não descurou a  geografia humana cabo-verdiana. Igual pertinência poética, confere o autor do ensaio, à poesia de Manuel Lopes. No tocante à poética de Osvaldo Alcântara, Gabriel Mariano classifica-a de poesia de farta e de imensa “inquietação social.”
Pois bem, o conjunto de poemas que conforma a colectânea «Panorama» espelha e bem essa grande “inquietação marítima,” sem descuido da geografia humana, que tão bem nos explicou Gabriel Mariano.
Posto isto, retornemos agora a 1935, ano da edição de «Panorama», sob chancela da Editorial Claridade.Uma curiosidade: a editorial «Claridade» não se iniciou com a revista, «Claridade», mas sim com «Panorama.
Era então jovem, o poeta Jorga Barbosa mas já com um trabalho poético assinalável  e publicado, anos antes, de forma dispersa, em revistas e jornais portugueses, alguns de cariz literário e cultural. Como, para exemplo, as prestigiadas revistas: «Seara Nova». «Presença» «Jornal de Europa»., «Suplemento Literário» do Jornal Diário de Notícias. Curiosamente, Jorge Barbosa  teve como companheiro das ilhas, naquelas publicações, o então também jovem poeta, Osvaldo Alcântara. Tudo isto aconteceu uns anos antes  de 1935. Um período que pudemos delimitar ou situar, entre 1929 e 1934.
Ora bem,  1935, o ano marcante por se contar, a partir dele,  um marco deveras importante: a modernidade poética cabo-verdiana, exactamente com a publicação de «Panorama». Com efeito, o poeta Jorge Barbosa inaugurou para a literatura cabo-verdiana, um autêntico tratado poético, com novos temas, nova métrica e uma tremenda e imensa poesia em versos curtos, em frases sincopadas. Propositadamente inacabadas. Mais sugeridas do que ditas.
 * * *
Revisitemos agora  e para melhor entrar no “ser poeta” de Jorge Barbosa, uma interessante entrevista feita em 1954, por Maria Helena Spencer a Jorge Barbosa e publicada no número de Junho desse ano, do «Boletim Cabo Verde», O poeta, a  determinada altura da entrevista e respondendo à pergunta feita pela Jornalista: “Como e quando começou a sua poesia?” Jorge Barbosa, respondeu num trecho que considero, uma deliciosa prosa poética: e que passo a citar:
“− Parafraseando o grande Fernando Pessoa: malhas que o destino tece…
Tinha eu 13 ou 14 anos (não sei já ao certo) quando se deu a fatalidade, isto é, quando, pela primeira vez, desceu até mim esta espécie de intuição a que chamarei, com mais ou menos propriedade, a intuição da poesia. Deste modo começou a minha vida de poeta (É Você que assim me chama).
− Não sou eu que lhe chamo; são todos aqueles que leram ou ouviram os seus versos, mesmo quando eles não eram mais do que a letra das canções que V. dedicava… sabe-se lá a quem!”
“Jorge Barbosa, prossegue:
Iniciei-me com as quadrinhas ingénuas. Seguiram-se os acrósticos vistosos. Veio depois o infalível soneto, bem medido, bem soante, com a rima cuidada (eu tinha um jeito especial para o soneto).
O amor descompassando o bater do meu coração, o heroísmo, que eu sabia das histórias, eram responsáveis pelos arrebatamentos dos meus versos. Chego por vezes a ter saudades…
− Calculo!...
Mas depois? Como chegou à forma actual?
− Rolou o tempo e deixei para trás as quadrinhas, os acrósticos de tão belo aspecto gráfico, os sonetos, a rima, as sílabas musicadas com o acerto de um pêndulo.
Rolou o tempo e a minha poesia é como a vê agora, com uma certa inquietação dentro dela, por causa, sobretudo, do destino da nossa terra e do nosso povo.
− Fale-me da sua luta contra a realidade da vida.
Luta silenciosa, sem legendas exageradas.”
Para nós, seus leitores aficionados, Jorge Barbosa manteve esta coerência, esta postura do seu “ser poeta” bem reflectida, ao longo de quase toda a sua obra poética.  “Luta silenciosa, sem legendas exageradas” assim definiu ele a sua caminhada pela vida. Uma vida atenta, solidária, durante a qual, se fez voz daqueles que a não  possuíam. Uma voz de enorme generosidade, simplicidade a toda a prova, e de grandeza humana. Aliados presentes nas  preocupações e nas cogitações do poeta, sobre as ilhas e sobre os seus dramas, que ele ora sugere, ora expressa e ora proclama  nos seus belos versos.
Para além da beleza infinitamente encantatória da sua lírica. Fascinante e mágica poesia. Poesia, em que só encontro paralelo, no prazer de ler, aos versos, de Camões, de Fernando Pessoa, de Osvaldo Alcântara,  de Arménio Vieira e alguns mais. Isto apenas para me referir, do ponto de vista de  leitora, à grandeza e à plenitude do belo, da escrita poética de Jorge Barbosa.
* * *
Jorge Barbosa o poeta das “...ilhas perdidas / no meio do mar / esquecidas / num canto do mundo / que as ondas emblam / maltratam/ abraçam...” versos do emblemático e muito conhecido poema, “Panorama” com que abre a colectânea, na pág. 9 em que o sujeito poético nos faz a apresentação, do Arquipélago, das ilhas de forma interrogativa e através de uma micro-cosmogonia genesial em violenta convulsão e movimentação. “...Destroços de que continente? / De que cataclismos? / De que sismos?...”
É bom que seja dita também que a grandeza da poesia de Jorge Barbosa não se esgota- nem de perto, nem de longe - nos encómios que possamos ou consigamos endossar-lhe. Ela (a poesia) continua para nós, como sendo um autêntico, perene e monumental património poético de que as Letras Cabo-verdiana –creio eu - hão-de sempre se  orgulhar.
Ouçamos agora o que nos diz a  distinta biógrafa  de Jorge Barbosa, Elsa Rodrigues dos Santos, na obra incontornável, para quem queira conhecer, de facto, a poesia de Jorge Barbosa; o livro, «As Máscaras poéticas de Jorge Barbosa e a Mundividência Cabo Verdiana» publicada pelo ICL em 1989. Diz  a autora a determinda altura, a propósito da poesia de J. Barbosa ter feito escola ou, não e de ter criado discípulos, ou não. Interroga-se Elsa Rodrigues dos Santos, passo a citar:  “ Existe Barbosianismo na poesia cabo-verdiana? Cremos que sim . Não no sentido de cópia  ou de submissão ao modelo pioneiro. Os poetas tornam-se seguidores de uma temática que pertence à própria cabo-verdianidade. Nas invariantes, podemos encontrar a alma poética barbosiana, a sua inteligência, o seu estilo, as suas motivações. Nas derivações, a dimensão de cada poeta, moldada conforme as pressões da História.”  Fim de citação.
Tomando agora em mãos «Panorama», poemas de Jorge Barbosa, devo  relembrar aos presentes que esta pequena colectânea, constituída por oito poemas, contém entre eles,  três dos mais icónicos e dos mais emblemáticos poemas deste grande poeta: a saber: “Panorama” pág. 9, “Rumores” pág. 25 e  o “O Mar” pág. 34. A capa é de Jaime de Figueiredo, (1905-1974) outra figura grada da cultura cabo-verdiana, pintor e crítico literário, e que captou num bela síntese pictórica a mensagem-chave dos poemas incluídos na colectânea; ou seja: o espaço geogafico, as ilhas, o oceano atlântico, onde elas estão inseridas, e o barco do tal “ convite da viagem apetecida que  se não faz...” de um dos versos, do célebre poema: “Mar” da pág. 34. De facto são ícones e símbolos recorrentes na grande poesia de Jorge Barbosa , aqui, numa bela captação e síntese do artista Jaime de Figueiredo. É também deste último uma espécie de pequeno prefácio ou nota de contra-capa, sintetizando o conteúdo da poesia de Jorge Barbosa: “Infinito azul que nos rodeia, a distância que os envolve e beija,sublimaram do Sonho a longa simbiose dos sangues...” Eis um quadro simbólico da matéria poética peculiar em Jorge Barbosa e que o olhar altamente sofisticado de artista, que foi Jaime de Figueiredo, observou.
* * *
Agora um convite, vamos à página 25 da colectânea, para sentir e perceber, através de “Rumores” um dos momentos altos da inspiração e da criatividade poética de Jorge Barbosa. Em “Rumores” é a movimentação das gentes das ilhas de outrora, nas suas diversas e multifacetadas lides de um quotidiano de sobrevivência. Há no poema, uma sinestesia de cores, de cheiros, de sabores, de movimento e de ondulação que nos convida a entrar, e nela nos sentirmos implicados, como parte ancestralmente retratada. Eis uma síntese do poema:
“ Rumores das coisas simples da minha terra ..Dos trapiches / quando esmagam a cana para o grog (...) // Rumores das salinas (...) / levando o sal na via férrea (...) // Rumores do Porto Grande /do carvão/ caindo nas lanchas metálicas  (...) // Rumores do romper da manhã / nos pilões/ cochindo o milho para a comida do povo (...) // Rumores das fainas marítimas (...) Rumores musicais das mornas (...) // ...e das ondas / à volta das ilhas.”
 Não vá sem notar, que o poema “Rumores” é dedicado precisamente ao portentoso escritor e poeta contemporâneo e companheiro de autor, Baltasar Lopes da Silva. 

Para mim, leitora da há décadas e muitas, de Jorge Barbosa, habituei-me a ler os seus versos e a memorizá-los  e isto, devido ao gostoso hábito de tanto (re) ler poemas de Jorge Barbosa. Daí que para finalizar a apresentação,  como remate, deixo aqui, um dos poemas mais belos e simples desse imenso poeta de alma grande, generosa, que numa atitude profundamente filosófica, soube perscrutar a vida.
Trata-se do poema «Madrigal».que reflecte a riqueza criativa do “silêncio poético.” 

             Madrigal

Colhi uma flor no jardim,
a mais pálida e a mais bela,
a que tinha
o mais discreto perfume
             − para você.

Apanhei uma concha
pequenina e translúcida
que as ondas trouxeram
para o cimo da praia,
uma concha que veio
do fundo do mar
   − para você.

Escrevi
o mais lírico dos meus poemas,
de uma ternura
sem precipitação
                 − para você.


Mas não lhe dei
nem a flor do jardim
nem a concha do mar
nem o meu poema

Para quê?
se Você é jovem e eu não,
se Você tem decisão
e eu sou tímido,
se Você gosta da vida
rumorosa e variada
e eu gosto do silêncio!

O meu silêncio também é
− para Você.
Jorge Barbosa

1902 - 1971






0 comentários:

Enviar um comentário