José Carlos Mucangana
Subsídios para a caboverdeanidade (3):
Que significam as palavras crioulo e papear? Qual foi a origem, em Cabo Verde, da língua,
que ficou a ser designada por crioulo?
Um dos meus amigos,
António Amaro de Melo, professor de português do liceu de Setúbal, Portugal,
foi quem me iniciou às obras do Mestre Baltazar Lopes da Silva. Ele gosta de dizer, que qualquer aluno de
filologia românica pode compreender a origem e a formação do crioulo. Com isto, fiquei sem saber, se estava
condenado a não compreender essa origem, por não me ter matriculado em
filologia, como desejava o meu professor de português do Liceu Salazar de
Lourenço Marques, doutor José António Duarte Marques, ou se tinha que arranjar
tempo e recursos e se ainda ia a tempo de me matricular em filologia românica. Para ganhar tempo, tomei uma decisão prática.
Utilizar os rudimentos de filologia, que
me tinham inculcado naquele liceu. Resolvi
começar por consultar dicionários etimológicos.
Consultei, primeiro, o
Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, 2
volumes, 10ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1944. Não dá a etimologia de crioulo ou crioilo. Com a mesma raiz, há ainda criatura, criança,
cria, criado, termos que se referem a pessoas humanas, e criação. Dá muitos significados de crioulo com menção
da área geográfica de utilização, mas sem datas, entre aquelas o Minho, onde
significa criança de colo e que é, certamente, o mais antigo, a Índia
Portuguesa, obviamente mais recente, onde passou a significar filho
adoptivo. Estes pareceram os
significados mais relevantes para as nossas investigações. Há ainda o Ribatejo, onde a palavra designa
aves, que embora de arribação, lá se conservam e o Brasil, onde a palavra se
generalizou às pessoas, animais ou vegetais próprios de certa localidade. A palavra também passou a designar o
“dialecto” português falado em Cabo Verde e os “dialectos coloniais”, ou
melhor, línguas que apareceram e se desenvolveram nas colónias europeias da
África, América e Ásia.
O Grande Dicionário
da Língua Portuguesa de António de Morais Silva, 1789 -1949, 12 volumes, dá
também para crioulo, o significado de criança de colo, que se manteve no Minho,
assim como o significado da Índia Portuguesa.
O Dicionário da Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa,
2001, 2 volumes, dá criança de colo, como regionalismo minhoto.
Depois consultei o Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, 2002, 6 volumes, Círculo de Leitores, Lisboa. Dá os mesmos significados de crioulo, que os
precedentes e tenta reconstituir a etimologia da palavra com a raiz cria-, do
verbo criar documentado desde 1091 e derivado do latim creare (creo, creas, creavi,
creatum) e a terminação –oulo, que pode ser assimilada ao sufixo –olo,
-ola, utilizado em criançola, por exemplo.
Cria designa um animal recém-nascido e designou também criança de peito
ou de leite, significado este, que caiu em desuso, depois da adopção da palavra
bebé do inglês baby.
O Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, 1977, 5 volumes,
Livros Horizonte, Lisboa confirma que crioulo deriva da palavra cria seguida do
sufixo –olo, em latim –ollu-. Sendo a raiz latina e o sufixo igualmente
latino, temos de admitir, até prova do contrário, que a palavra portuguesa
crioulo veio directamente do latim para o português. Esta palavra é de origem latina, foi
correntemente utilizada em português falado e em português clássico e só mais
tarde caiu em desuso, restringido-se o seu uso e permanecendo modernamente no
Minho com o significado original de criança de colo, criança que já não é cria,
nem criança de leite e de peito, ou bebé.
O Padre Baltazar Barreira, em 1611, no século XVII, ainda utilizava esta
palavra para designar as numerosas crianças pequenas que via nas quintas,
filhos e filhas dos cativos e forros, que ali trabalhavam (Padre Baltazar
Barreira ao Padre Assistente de Portugal, 17.7.1611, Carta Ânua da Missão de
Cabo Verde do ano de 1610 até Julho de 1611, Documento 111, p. 438 – 469, Monumenta
Missionaria Africana, África Ocidental (1610 - 1622) coligida e anotada
pelo Padre António Brásio C. S. Sp., Segunda Série Vol. IV, Agência Geral do
Ultramar, Lisboa, 1968, 718 p.).
A filologia indica
assim, que as crianças de colo, idade em que começam a aprender a falar e
gatinhar estão relacionadas com a origem da língua e com o nome da língua, que nasceu
em Cabo Verde, em meados do século quinze, quando ainda não havia Brasil.
Em crioulo, falar
diz-se papiá. Nas ilhas ABC (Aruba, Bonaire e Curação) o
nome dado à língua crioula é papiamento. O verbo papear era utilizado na ilha da
Boavista, segundo António Amaro de Melo (7 de Novembro de 2013, informação
verbal), pela professora da sua avó que costumava dizer: “Meninos, vamos papear de outra maneira.” O verbo crioulo papiá tem origem no verbo português papear derivado do latim pipiare, que também deu piar e pipiar
para a voz das aves e sua imitação. Mas papear,
derivado de pipiar, segundo Cândido de Figueiredo (1944), significa falar
muito, chilrear, tagarelar, mover os beiços sem som compreensível e audível,
cochilar. O Grande Dicionário da
Língua Portuguesa de António Morais e Silva, 1789-1949, dá cinco
significados diferentes da palavra: (1)
cochilar, falar baixo, mover os beiços como quem reza, (2) falar muito,
papaguear, palrar, parolar, (3) gorjear, chilrear, pipiar, (4) mover as
mandíbulas como quem masca e engole em seco, (5) bater um papo, no Brasil, (6)
repetir como papagaio, papaguear. O
terceiro significado aplica-se às aves e é ilustrado por Camilo Castelo Branco,
Serões, V, p. 40, com as andorinhas.
Os outros aplicam-se a seres humanos.
O último é ilustrado por Venceslau de Morais, Traços, p. 38: “O papear insólito dos garotos…” No tempo de Venceslau José de Sousa de Morais, oficial da
marinha, fundador e professor do liceu de Macau e cônsul português no Japão (Lisboa, 1854 - Tokushima, 1929) a palavra crioulo já não era usada, salvo no Minho e ele
utilizou a palavra garoto com o significado de crioulo.
A filologia indica,
que as crianças de colo, a primeira geração de crianças nascidas em Santiago,
se puseram, entre os dois e os cinco anos de idade a papaguear e a tagarelar e,
finalmente, a falar a sua própria língua, que tomou o nome dos seus primeiros
falantes crioulos, para ser designada por língua crioula. Repetiram, papaguearam as palavras que ouviam,
construíram frases e, como a grande maioria dos pais não as corrigissem e não as
ensinassem a falar português, inventaram a língua crioula, para satisfazer as
suas necessidades imperiosas de comunicar e de organizar a sua vida social infantil.
O seu papeamento não era compreendido
pela geração precedente, que falava ou se fazia compreender em português,
geralmente sem o ter aprendido em nenhuma escola, à maneira duma algaravia ou
caçanjaria. Cada criança ouvia línguas
diferentes aos seus pais e até provavelmente a maioria dos casais, sem língua
comum, só comunicassem no português, que tinham conseguido aprender, mal ou bem. O crioulo nasceu espontaneamente, tal como a
primitiva língua da espécie dos homens modernos, cuja capacidade de criar
línguas ou aprendê-las, em tenra idade, ficou gravada nos genes, que regulam o
crescimento do cérebro humano. Conhecem-se
casos de crianças mantidas em isolamento, que deixaram de poder aprender a
falar a partir duma certa idade. Em Cabo
Verde, foi a primeira geração de crianças que inventou a língua crioula, muito antes
dessa idade, quando ainda eram crioulos. De contrário e se houvesse condições,
nomeadamente pais conhecedores para os ensinarem, teriam aprendido português, a
língua dominante e praticamente a única que se falava, mais mal do que bem,
quando nasceram.
Nas sociedades das
crianças nunca houve preconceitos, nem lutas de classes, todas as crianças sem
distinção de taxa de melanina dérmica, nem de filiação e origem social, nem de
religião, passaram a falar uma língua materna comum, que cresceu com elas e
passou a ser uma língua de trabalho comum, depois uma língua franca no litoral
africano entre o Rio Sanaga e a Serra Leoa e mais tarde teve pretensões a
língua literária, com a escolarização do século vinte, já depois de se ter
espalhado pelo mundo.
Mestre António
Carreira (1972, Cabo Verde - Formação e Extinção duma Sociedade
Escravocrata, 1460-1878, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Lisboa, 344
p.) avaliou “a menos de cinquenta anos do seu achamento”, que, segundo este
autor, foi à volta de 1460 (A Ilha de Santiago foi a primeira a ser achada e
visitada, todas tinham sido avistadas até 1462.), a formação da língua crioula,
em Cabo Verde. Segundo Mestre António
Carreira, essa lenta formação do crioulo teria assim durado até aos primeiros
anos do século XVI. Mas, em poucas
dezenas de anos, cinquenta anos, que foi o tempo, que durou o monopólio de
comércio com a costa africana (1466 a 1514 ou 1518), já os lançados,
representantes e despachantes dos comerciantes de Santiago tinham ensinado o
crioulo como língua franca na Grande Guiné, que nessa altura era bem mais vasta
do que hoje.
Na actual Pequena
Guiné e Casamansa o crioulo manteve-se muito próximo do seu dialecto de Santiago Mestre António Carreira (1984, O Crioulo
de Cabo Verde, surto e expansão, segunda edição, Mem Martins, 195 p.)
mostrou que não havia condições sociológicas para formação do crioulo na Guiné
e confirmou que o crioulo de Guiné era “sim o crioulo caboverdeano de Sotavento
levado pelos colonos idos do Arquipélago”, como tinha afirmado Mestre Baltazar
Lopes da Silva anteriormente.
Na Gâmbia e Serra
Leoa, com o advento duma nova língua dominante, cerca de um século e meio
depois, o crioulo caboverdeano foi relexificado em inglês, dando duas línguas
(dialectos) muito próximas, mutuamente compreendidas pelos respectivos falantes,
o aku e o krio, respectivamente, que são falados pela grande maioria da
população desses países e conservam gramática, expressões caboverdeanas e algum
léxico de origem portuguesa, como, por exemplo, pikin para criança e kohna
kohna woman para mulher livre (Peace
Corps, Sierra Leone, 1985, Krio Language Manual, U. S. Government
Printing Office, 1985-526-044/30228, Internet, 214 p.). Além destas, Benjamim Pinto Bull (1989, O
crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e
Sabedoria, Lisboa, Instituto de Culturta e Língua Portuguesa, Bissau,
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 351 p.) indica mais três palavras do
krio, que são de origem portuguesa e resistiram à relexificação inglesa. O crioulo das Ilhas dos Ídolos (Îles de Los), restos dum vulcão extinto
da plataforma continental, em frente da península de Conacri (cabo de Sagres ou
cabo Ledo), também sofreu a influência do inglês até 1904, data em que estas
ilhas foram cedidas à França e depois, com a presença de missionários ingleses.
As crianças puseram-se
a tagarelar e papear crioulo e até hoje os lusófonos monolingues nunca mais as compreenderam,
o que lhes causou grandes arrelias e despautérios, ao longo duma longa história,
a terminar com a perplexidade e “repugnância” de Gilberto Freyre.
O crioulo do Arquipélago
de Hauai (Hawaii) nasceu por volta de 1920, pelo que o seu nascimento e
desenvolvimento recentes estão muito bem documentado. Foi em Hauai, que o linguista inglês Derek
Bickerton (2008, “Bastard” Tongues, a trailblazing linguist finds clues to
our common humanity in the worl’s lowliest languages, Nova Iorque, 270 p.)
esclareceu a origem das línguas crioulas e as separou dos pidgins (= algaravias ou caçanjarias) a que costumam erradamente
andar ligadas na crioulística. Mostrou
que o crioulo não deriva da língua de contacto pidgin, como se pensava. A
geração emigrada, que falava pidgin,
ou algaravia inglesa, não compreendia o crioulo, língua materna dos seus próprios
filhos.
Para ilustrar o que se
tem pensado (erradamente) em Cabo Verde da origem e formação do crioulo vamos
dar a palavra a Jaime, personagem principal da novela Identidade de
Viriato de Barros (2005, Cabo Verde, 127 p.):
“Com o tempo emergiu dessa miscigenação generalizada, como que uma nova
entidade étnica, o caboverdeano, que não se definia em termos de raça, mas por
um conjunto de hábitos e costumes comuns, uma língua nova criada a partir desse
esforço de ajustamento de parte a parte, pela simples necessidade de
comunicação entre africanos e uma minoria europeia, que acabou por adoptar essa
espécie de língua intermédia forjada pela população de origem africana com base
na língua portuguesa, simplificando a sua estrutura gramatical e moldando a sua
estrutura fonética à sua própria matriz linguística.” É o que ele pensava sobre a origem da língua e
da nação caboverdeana, mas Jaime não explicava porque se chamou crioulo a essa
língua nova. É que essa língua nova, que
não era intermédia, nem forjada pela população de origem africana, nem de
estrutura fonética moldada a uma matriz linguística pré-existente, tomou o nome
dos seus primeiros falantes, as crianças de colo, que já não eram crias ou
crianças de leite ou de peito, mas que ainda não tinham atingido a chamada
idade da razão, num esforço de comunicar e organizar a sua sociedade pueril fraternal,
desprovida de preconceitos e mal definida em termos de taxa de melanina dérmica. Essa língua foi inventada e continuou a ser
falada por todas as crianças, incluindo os filhos dos patrões e os filhos dos cativos,
os que tinham pais da minoria portuguesa vindos da Europa e os que tinham pais,
vindos de África, das numerosas nações da Grande Guiné. Para desenvolver essa língua de gramática
inata e simples as crianças recorreram às palavras portuguesas que ouviam à sua
volta, repetindo-as, papagueando-as. A
nova língua ficou pronta, quando a primeira geração de crianças atingiu a idade
da razão e começaram umas poucas a estudar na escola ou seminário, em
português, e todas a trabalhar, em crioulo.
Em Hauai, não havia
escravos, nem colonialismo, tratava-se de um estado federado americano. Concentraram-se ali bruscamente, num mercado
de pequenas dimensões, um elevado número de trabalhadores de múltiplas origens:
Açores, Madeira, Brava, os únicos que se
poderia pensar serem black americans
(= americanos pretos) ou afro-americanos, pelas aparências, mas que certamente
repudiariam essas designações porque, na América, os caboverdeanos eram e
continuaram a ser, até hoje, caboverdeanos fora das classificações americanas
pela taxa de melanina dérmica, além dos que vinham da Coreia, Japão, China e
Filipinas, estes últimos falando várias línguas diferentes, etc. A geração imigrada falava algaravias de hauaiano
e depois caçanjarias de inglês. A
primeira geração de crianças nascidas no Arquipélago inventou o crioulo hauaiano,
há menos de um século. Interessa
sublinhar, que não houve ali nem escravos, nem pretos e castanhos black americans. Crioulo e escravatura levada de África para a
América foram duas coisas diferentes, que convém não misturar, mas infelizmente
foram misturadas pelos linguistas europeus e americanos. A origem da língua crioula não tem nada a ver
com a taxa de melanina dérmica, nem com a origem africana ou outra, nem com o
grau de civilização, educação e inteligência dos falantes. Em Cabo Verde, uma maioria era de origem
africana, em Hauai nenhum falante era africano e até havia falantes, que
falavam o crioulo de Cabo Verde com os seus filhos e deixaram algum léxico caboverdeano
na nova língua. Com excepção deste
léxico de uma das línguas do substracto, na estrutura da nova língua não se
encontram vestígios de português, nem de japonês, nem de chinês, nem de
coreano, nem de tagalá, nem das outras línguas do substracto plurilinguístico.
Antes de prosseguir esta
análise da origem das línguas crioulas nas Antilhas e Caraíbas, com a ajuda dos
dicionários, temos que prestar uma devida e merecida homenagem a uma filóloga,
linguista caboverdeana, Maria Dulce de Oliveira Almada (Estudos de Ciências
Políticas e Sociais Nº 55, Cabo Verde, Contribuição para o estudo do dialecto
falado no seu arquipélago, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa,
1961, 166 p.) Com a sua modéstia de
investigadora, adiantada trinta anos, em relação a Derek Bickerton, a intuição
da doutora Maria Dulce de Oliveira Almada Duarte, orientada pelo que lhe tinham
ensinado os seus mestres portugueses, levou-a a invocar a linguagem infantil
para explicar certos aspectos do crioulo, que estudava (p. 23). Pena foi, que se tivesse afastado
prematuramente da investigação e das universidades, para se dedicar à “luta”,
ou seja à política no exílio, deixando o terreno de investigação do crioulo
livre para exploração por linguistas estrangeiros e a escola crioulística
portuguesa e caboverdeana, que foi a primeira e a mais adiantada, no fim do
século XIX, a ficar ultrapassada pelas escolas de outros países.
Com efeito, o estudo
das línguas crioulas, em Portugal, colocou-se na vanguarda em 1880, quando
Francisco Adolfo Coelho, Professor de Glotologia, ou Linguística, como se
passou a dizer mais tarde, do curso superior de letras publicou no Boletim
da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2ª Série, Nº 3, p. 129-196 o seu
primeiro artigo sobre os “dialectos românicos ou neolatinos na África, Ásia e
América”. Desde o início nos finais do
século XIX e meados do século XX, foram integrados nesses estudos falantes e
profundos conhecedores destas línguas, como Baltasar Lopes da Silva e Maria
Dulce de Oliveira Almada.
Lamentavelmente, a
PIDE impediu Mestre Baltazar de entrar como docente na Universidade de Lisboa,
em 1940 e a Doutora Maria Dulce deixou os Claridosos em Cabo Verde, em 1961 e foi
para a “luta”, em Conácri, mesmo em frente das Ilhas dos Ídolos, um arquipélago
de origem vulcânica da margem (plataforma) continental africana, onde ainda se
falava crioulo. Não devia ser a primeira
vez e certamente não foi a última, que a PIDE, instituição da confiança do
Professor Doutor António de Oliveira Salazar, prejudicou os interesses de
Portugal e dos países lusófonos, comprometendo a carreira universitária de
Mestre Baltazar Lopes da Silva (entrevista a Fernando Assis Pacheco, 1988,
Retratos falados: O mago Baltazar, suplemento de O Jornal, 6 a 12 de
Maio de 1988, p. 20 - 25).
O Professor Francisco Adolfo Coelho dava razão a Émile Auguste Egger (1879,
Observations et réflexions sur le développement de l’intelligence et du
langage chez l’enfant, Mémoire lu à l’Académie des Sciences
Morales et Politiques Paris, Alphonse Picard Éditeur, 72 p.; Google Books: http://archive.org/stream/observationsetr02 eggegoog/observationsetr02eggegoog_djvu.txt),
que comparava a linguagem das crianças aos “dialectos” crioulos.
Para quem estiver interessado e gostar de ler francês,
copiamos da página 44 da obra citada os dois parágrafos em que Émile Auguste
Egger, Membre de l’Institut, descreve
a linguagem duma criança francesa de 28 meses que começa a criar uma frase,
para compará-la com as frases dos crioulos de léxico francês, que, sendo
línguas diferentes do francês, são evidentemente estruturadas “sem nenhuma
preocupação da conjugação, nem mesmo da sintaxe francesas” como escreve o autor:
«Après l'acquisition et la prise de
possession des différents mots usuels de notre langue, un second progrès de
l'enfant dans la pratique du langage, c'est de former une phrase par la réunion
de plusieurs mots. Le premier progrès
est loin d'être accompli quand déjà commence celui-ci. (= Depois da aquisição e de tomar posse das diferentes palavras usuais na
nossa língua, um segundo progresso da criança na prática da linguagem é a
formação duma frase reunindo várias palavras.
O primeiro progresso está longe de ter terminado, quando já começa este.)
A vingt-huit mois, l'enfant
connaît le sens des trois mots: ouvrir,
rideau et pas (négation); déjà il les
rapproche avec une certaine dextérité, en les accompagnant du geste et du
monosyllabe ça. «Pas ouvrir ça» signifie
«la fenêtre est fermée»; «pas rideau ça»
signifie «la fenêtre n'a pas de rideau».
On reconnaît là ces grossières façons de parler qu'on décore parfois du
nom de patois nègre, parce que les nègres de nos colonies n'empruntent guère à
la langue de leurs maîtres qu'un petit nombre de vocables, les plus
nécessaires, et qu'ils les accouplent, selon le strict besoin, sans aucun souci
de la conjugaison et même de la syntaxe.» (Aos vinte
e oito meses, a criança já conhece o significado de três palavras : abrir, cortina e não, negação; já começa a juntá-las com certa destreza,
acompanhadas de gestos e da palavra isso.
« Não abrir isso » significa «a janela está
fechada» ; « não cortina isso»
significa «a janela não tem cortina».
Aqui se reconhece aquelas maneiras grosseiras de falar que às vezes se
designam falar negro, porque os negros das nossas colónias só imitam à língua
dos seus patrões um pequeno número de vocábulos, os que são mais necessários,
associando-os, segundo a estrita necessidade, sem nenhuma preocupação da
conjugação e mesmo da sintaxe.)
Egger observou, que a criança, assim que aprende umas poucas palavras,
designando objectos ou pessoas ao seu redor, começa logo a construir frases sem
muita hesitação ou com “uma certa destreza”.
Utiliza uma gramática inata, que é própria da sua idade e põe-se a falar
espontaneamente. Quando não há ninguém a
ensinar-lhe uma outra língua, a criança fala espontaneamente um crioulo, com
outras crianças, nas mesmas condições.
Quando os pais ou outras pessoas a corrigem e orientam, a ensinam a
falar, aprende a língua destes e, nesta idade, é capaz de facilmente aprender
mais do que uma língua, ao mesmo tempo.
O que é pena é que o Professor Egger, em sintonia com os preconceitos dos
europeus da sua época, não estivesse agradecido aos caboverdeanos e seus
descendentes, que, na Guadalupe e outras colónias francesas tinham começado a relexificar
a sua língua tornando-a mais próxima do francês e das suas façons de parler raffinées (= maneiras de falar refinadas).
Mestre Francisco Adolfo Coelho acrescentou que a formação dos “dialectos”
crioulos era essencialmente um fenómeno psicológico; esses “dialectos” formavam-se rapidamente para
acudir à necessidade de relação.
Escreveu mais que “os dialectos crioulos, indo-português e todas as
formações semelhantes devem a origem à acção de leis psicológicas ou fisiológicas”,
hoje diríamos neurológicas, “por toda a parte as mesmas e não às línguas
anteriores dos povos em que se acham esses dialectos.” Os factos que tinha acumulado e publicado o
professor Francisco Adolfo Coelho mostravam “à evidência que os caracteres
essenciais desses dialectos são por toda a parte os mesmos, apesar das
diferenças de raça (entenda-se hoje, cultura), de clima, das distâncias
geográficas e ainda dos tempos.” Não
encontrou “nenhum som das línguas indígenas”, hoje línguas do substracto, que
tivesse sido “transportado para esses dialectos”.
Quando discutiu a
formação da língua crioula, no segundo número de Claridade, Revista de Arte
e Letras, Mestre Baltazar Lopes da Silva (Baltazar Lopes, 1936, Notas para
o estudo da linguagem das ilhas, Claridade, Nº 2, Agosto de 1936, p. 5 e
10) começou por apresentar as duas teorias, que havia nessa altura, do processo
de formação das línguas crioulas: (1) a
dos que, como Hugo Schuchardt, da Universidade de Graz na Áustria, que foi
aprender crioulo a Lisboa à escola de Mestre Francisco Adolfo Coelho com os
caboverdeanos Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custódio José Duarte (1886, O
Crioulo de Cabo Verde, Breves estudos sobre o crioulo das ilhas de Cabo Verde
oferecidos ao Dr. Hugo Schuchardt, Boletim da Sociedade de Geografia, 6ª
Série, Nº 6, p. 325-388), Lucien Adam e P. Meyer, “consideram os crioulos meros
produtos da aplicação da gramática dos idiomas indígenas a um vocabulário
europeu” e (2) a sustentada por Adolfo Coelho, segundo a qual “as
particularidades gramaticais dos idiomas indígenas” tinham “influído muito
pouco” na “constituição essencial” dos crioulos. O conhecimento profundo, que tinha do crioulo
caboverdeano, levou Mestre Baltazar a concluir que a teoria defendida por
Francisco Adolfo Coelho, de quem já não chegou a ser aluno, era a única que
correspondia “à realidade do problema”.
O problema da formação
da língua caboverdeana estava assim colocado na base da realidade dos factos
conhecidos, mas as fantasiosas teorias do substracto, tentando fazer derivar os
crioulos das gramáticas das línguas maternas dos falantes da língua de contacto
ou algaravia inicial (pidgin),
reapareceram em Cabo Verde após a independência, trazidas pelos
marxistas-leninistas e baseadas em puros mitos, como veremos mais adiante. Parece que tristemente e desrazoavelmente
(para não dizer irracionalmente) vieram para Portugal e mantêm-se nas
universidades portuguesas (Dulce Pereira, 2006, O Essencial sobre Língua
Portuguesa, Crioulos de Base Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho S. A.,
131 p.).
Nota de Rodapé para Esclarecimento dos Leitores:
Os leitores de ARTILETRA, que conhecem a Fundação Amílcar
Cabral, devem lá ter visto o apelido do meu avô materno, Mucangana. Naqueles tempos de idealismo e ilusões, já
tínhamos saído da clandestinidade, mas queríamos lá continuar para enganar a
PIDE. Foi assim que apareceram José
Gilmore, pseudónimo de Holden ROBERTO, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Lopes
Cabral e outros. Ao apelido do meu avô
materno acrescentei o meu primeiro nome próprio traduzido em macua, Issufo,
para assinar artigos de jornalismo e relatórios, aos quais o Marcelino,
utilizando a lei do menor esforço, acrescentava, às vezes os seus, Mahlala e
Kalungano. Uma professora universitária
mal informada, convenceu-se, que o apelido do meu avô materno era mais outro
pseudónimo do Marcelino (Dalila).
Depois daqueles poucos anos de idealismo, voltei para a
minha vida profissional. Tenho escrito
artigos técnicos e científicos, relatórios assinados com o apelido do meu avô
paterno, Horta. Quem estiver interessado,
pode procurá-los na Internet.
Para evitar confusões e não misturar os géneros, volto a
gora a assinar temas de literatura e de história com o apelido do meu avô
materno.
Desde já agradecido pela atenção dos leitores, subscreve-se,
aqui, este autor José Carlos Mucangana, ao serviço de ARTILETRA e dos seus
leitores
J.
C. M. (= J. C. H.)
Fig. 1. Professor Francisco Adolfo Coelho, Coimbra 1847 - Carcavelos 1919 (Wikipedia)
Fig. 2. Baltasar Lopes da Silva, Caleijão, São
Nicolau 1907 - Lisboa 1989
(Wikipedia)
Fig. 3 Maria Dulce de Oliveira Almada Duarte tal como era
quando fez a sua tese em Lisboa (Fotografia encontrada no processo Del. Porto,
PR 30843 IND, NT 3930, Joaquim Alberto Chissano, José Carlos de Oliveira Sousa
Horta e outros, Arquivos da Pide/DGS, Torre do Tombo, Lisboa). Quando Maria Dulce saiu de Portugal para
Marrocos a PIDE mandou vigiar a sua família no Porto. Esta fotografia ficou,
por engano, num arquivo da delegação da PIDE do Porto. Um segundo engano aconteceu em Cabo Verde, quando
um funcionário da PIDE foi ter com o pai de Maria Dulce, mostrando-lhe uma
fotografia de outra pessoa trocada por esta. O funcionário foi-se embora
envergonhado, quando depois de olhar para a fotografia, que ele exibia, o pai
de Maria Dulce lhe disse, que não era a sua filha.
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