sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017
Nuno Pacheco, Jornalista do Jornal «Público» deixa-nos nesta crónica registos e informações muito interessantes. Nomeadamente, de Línguas mundiais e não só, que possuem várias ortografias e coexistem bem. Outras bem  curiosas, sobre a grafia da nossa Língua (sónicas e fónicas) e como sempre à volta do Acordo Ortográfico do nosso desacordo.
Afinal, apenas uns míseros 2% de desigualdade entre as duas variantes: a portuguesa e a brasileira, não justifica tanta animosidade e mal-estar, parafraseando  Nuno Pacheco.
A ortografia impõe-se e é sempre bom respeitar-se a velha e instrutiva etimologia...
Com a devida vénia ao autor e ao Jornal acima referido, transcrevemos o texto.


Cerá ke istu tambãe
ce iskreve acim?

Nuno Pacheco

In: Jornal Público de Quinta-feira, 9 de Fevereiro de 2017

No título desta crónica não há uma única palavra correctamente escrita. No entanto, se ultrapassarmos a estranheza da grafia, ele soará correcto. A que propósito vem isto? De uma guerra que, sendo antiga, tem minado as actuais discussões ortográficas. Chamem-lhes “sónicos” ou “foneticistas”, há muito que alguns insistem na utilidade de submeter a escrita à fonética. Já em meados
do século XVIII, no seu Verdadeiro Método de Estudar, Luís António Verney defendia: “Para que guardemos certeza, ou verdade, em nossa escritura, assim devemos escreve como pronunciamos & pronunciar como escrevemos.” Com um pressuposto: “A simplificação da ortografia contribui para a democratização cultural, na medida em que desvincula a escrita portuguesa das línguas clássicas.” Não vingou. Mas a “teoria” tem voltado mil vezes à carga. Defensável? Alguns exemplos,curiosos. Gonçalves Viana, o mentor da feroz reforma ortográfica portuguesa de. Gonçalves Viana, o mentor da feroz reforma ortográfica portuguesa de 1911, reparou um dia que o simples nome “Hipólito” poderia, “sem alteração de pronúncia”, escrever-se de 192 maneirasconsoante as grafias usadas no século XIX: Hypólito, Ypólito, Ipólito, Epólito, Hipolihto, Yppóllitho, etc. Já José Pedro Machado escreveu, no seu opúsculo A Propósito da Ortografia Portuguesa (1986) que casa pode escrever-se de várias maneiras (também sem qualquer alteração de pronúncia), casa, cása,caza, kasa, káza, kása, etc, “embora para agrafia ofi cial só uma pode ser considerada correcta.” Portanto, com várias grafias, mantemos o som. Mas a ortografi a impõe um só modo de escrita num determinado espaço geográfico. Os “sónicos” ou “foneticistas” viram esta lógica do avesso: se duas palavras diferentes soam da mesma maneira, escrevam-se da mesma maneira. Assim se justifi ca ótico/ótico por óptico/ótico ou ato/ato por acto/ato. Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados “a escrever como se fala.” Será? Vamos por partes. No inglês, por exemplo, knight (cavaleiro) e night (noite) soam da mesma exacta maneira. Se na escrita tais palavras fossem igualizadas perdia-se o sentido de cada uma, como se perde no português igualizando ato e acto, ótico e óptico. Em francês, citando um texto de Raul Machado (1958), um mesmo som, semelhante ao é aberto português, escreve-se de mais de vinte maneiras: er, es, ès, et, êt, ets, est, aî, aie, aient, ais, ait, ay, etc. Se uma reforma ortográfica tentasse um dia igualizá-las na escrita, jamais os franceses se entenderiam. Então por que motivo se tenta em Portugal, impor tais mudanças? Para fi carmos iguais ao
Brasil, claro. Parece a velha anedota: então porque não fi camos? Simples: porque se trata de uma mirabolante utopia sem possibilidade de concretização prática. Ah, dizem alguns mas a Língua Portuguesa é a única com duas
 ortografias! Sim? Pois saibam que o Espanhol tem 21, o Inglês tem 18, o Árabe tem 16, o Francês tem 15, o Sami tem nove, o Sérvio tem oito, o Alemão e o Chinês têm cinco cada e até o Mongol e Quechua andino têm cada qual três variantes. Ortográficas, sim. E para quem acha que o inglês se escreve
da mesma forma em todo o sítio, aqui vai uma pequena lista das largas centenas de diferenças ortográficas entre o inglês americano (o dos EUA) e o inglês-padrão europeu (o de Inglaterra, já que na Irlanda ou na Escócia há ainda outras variantes). A lista foi coligida também pelo saudoso filólogo José Pedro Machado
(1914-2005), na obra citada, e a primeira palavra de cada conjunto é, aqui, a americana: color, colour; center, centre; off ense, off ence; bark, barque; check,
cheque; connection connexion; cipher, cypher; draft, draught; fuse, fuze; gray, grey; curb, kerb; hostler, ostler; jail, gaol; kilogram, kilogramme; lackey, lacquey; mold, mould; pigmy, pygmy; plow, plough; program, programme; quartet,
quartette; refl ection, refl exion; story, storey. E muitos, mas mesmo muitos, eteceteras.
O mesmo sucedeu, sucede e sucederá entre o português europeu (o de Portugal) e o americano (o do Brasil). Aliás, veja-sebem o ridículo da “unificação” proposta pelo acordo ortográfico de 1990: de acordo com números “oficiais”, a grafia portuguesa e brasileira era igual em 96% das palavras e com o acordo será igual em. 98%! Ou seja: o actual caos ortográfico, as guerras e animosidades inúteis que por aí vão valem uns míseros dois por cento. Haverá nome para isto? Há, e não é bonito. Mas vale a pena pensar no caso, seriamente. E agir em conformidade.
Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados agora “a escrever como se fala.”
Será?
Jornalista. Escreve à quinta-feira

nuno.pacheco@publico.pt

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