NA HORA DI BAI
Quarta meditação biológica
sobre o homem de cabo verde
Quando me encarregaram de ir montar
em S. Vicente um Centro de Sangue, o meu primeiro cuidado foi informar-me da
patologia daquela e das outras ilhas e da natureza e frequência das doenças que
a lavra de um grande porto de mar pode causar. O mesmo cuidado tive quando me
mandaram fazer esse serviço em Angola, em Moçambique
e na India. Sem esse conhecimento prévio não será possível calcular a
quantidade e a natureza dos tratamentos que venham a ser requeridos, nem o
volume de material a adquirir. Por
outro lado, nunca me esqueci que um Centro de Sangue autónomo como este, que
ficou instalado nas ilhas Verdes, tem que estar perfeitamente integrado nas
condições da vida social e humana da sua região, como tem que estar pronto a
servir em casos de emergência pública ou defesa nacional. Foi nessa altura que
interroguei os meus amigos de Cabo Verde sobre a existência da tristeosa (e
a sua natureza); foi nessa altura,
igualmente, que alguém me insinuou haver nos cabo-verdianos um complexo de
inferioridade com respeito às «doenças de negro».
Há mais de vinte anos, desde aquele
em que pela primeira vez me matriculei no Instituto de Medicina Tropical, que a
tristeosa ficara para mim como uma espécie de simbolismo das ilhas Verdes.
Nunca pude esquecer o sortilégio que tinham
as palavras de Firmino Santana ao descrever essa doença de grande miséria
fisiológica, que só atacava os negros e
cujo diagnóstico causal ficava indeciso entre a malária e o alcoolismo crónico.
Era um estado grave, em que todos os doentes acabavam por morrer, num estado
que semelhava os dos transes e, o que era mais impressionante, davam a alma
voltados para a África. É claro que eu, que mal
saía do meu sarampo romântico, logo deduzi que aqueles pretos realizavam a seu
modo um estado lamartiniano; que mesmo que fosse malária (como falar em sezões é falar de
baço) eles recriavam nas costas de S. Antão o «spleen» que Byron andou a
padecer por Sintra; e que morriam voltados para o grande Continente ouvindo a
chamada dos ancestrais, acolhendo no último instante, a voz cava e longínqua da
terra! Era uma interpretação romântica. Era um conceito bonito. Era, sobretudo,
um conceito tonto, a história irreal de uma doença irreal que, numa noite
divertida, alguns médicos de Cabo Verde contaram ao crédulo professor Firmino.
Quanto às «doenças de
negro» o problema requer uma pequena discussão. Deve dizer-se, em primeiro
lugar, que eu nem sequer pude avaliar exactamente em que medida se manifestam
no arquipélago as diferentes doenças, porque as estatísticas publica das oficialmente
só merecem um crédito muito restrito, apesar dos esforços e do entusiasmo que
na sua organização tem posto o activo director dos seus Serviços de Saúde. E
não merecem grande confiança porque à falta de laboratórios nos hospitais e nos
postos muitas rubricas nosológicas estão preenchidas por entidades
diagnosticadas por simples impressões clínicas ou por um diagnóstico
diferencial de simples estimativa; e porque - ao que parece - factores de ordem
não científica têm influído na sua apresentação.
Seja como for,
não se justificava, porém - se é que ele existia - qualquer complexo de
inferioridade pela existência de «doenças de negro», ou melhor: de doenças
tropicais. Até porque, não há doenças tropicais. Já em 1954 provoquei, a este
propósito, um pequenino escândalo científico. Tinham-me chamado para ser
redactor oficial sobre os problemas dos Serviços de Sangue em relação com as
doenças tropicais, convite que eu aceitei para poder afirmar, em plena Sorbona,
com o meu interno Carlos de Oliveira, que tais doenças não existem. Dada por um
lado, a expansão cosmopolita da maior parte das doenças chamadas exóticas, e
por outro, a destropicalização progressiva que a saúde pública vai realizando
nesses territórios, tanto à escala
nacional como à escala internacional.
Uma clínica
puramente tropical é um mito, pois, podemos verificar em regiões não tropicais
grande número das doenças outrora reconhecidas como tropicais. A actual
geografia sanitária não corresponde por forma alguma às dimensões da geografia
médica do princípio deste século. Até porque, com a multiplicação progressiva
dos meios de transporte, deixou de haver espaços sanitários autónomos. De
resto, a própria história já ensinava que doenças consideradas eminentemente
tropicais, como a amebíase, tinham sido descobertas a primeira vez nas estepes
russas.
Sem dúvida que o
ambiente, o clima, a presença de agentes intermediários autónomos e
específicos, e determinadas condições sociais, alimentares ou até religiosas,
podem dar, nos trópicos - e dão! - aspectos particulares a numerosas doenças
cosmopolitas. Mas se tomarmos à letra,
como definição de doenças tropicais, aquelas que só se manifestam entre os
trópicos, ou seja entre 23º e 27’ ao norte e ao sul do Equador pode dizer-se
que, com excepção da doença do sono, não há doenças intertropicais. E se
dissermos apenas «doenças que existem ou podem existir nas regiões quentes»
cabem lá todas, até as do frio, e nomeadamente aquelas que até há pouco tempo
eram quási só presentes nos países temperados: como o cólera, a peste ou a
varíola.
Os cabo-verdianos
não tinham, pois, que sentir qualquer complexo de inferioridade por terem
nascido e por viverem na área geográfica das doenças chamadas exóticas, e que nós, europeus e americanos do
Norte, assim denominávamos só porque não eram frequentes nas nossas. De resto,
sempre que lhes perguntei por esse complexo, responderam-me com sonoras e
sadias gargalhadas.
ALMERINDO LESSA
- Diário Popular -
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