AINDA MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO (FIM)

terça-feira, 20 de junho de 2017
NA HORA DI BAI
Quarta meditação biológica
 sobre o homem de cabo verde

Quando me encarregaram de ir montar em S. Vicente um Centro de Sangue, o meu primeiro cuidado foi informar-me da patologia daquela e das outras ilhas e da natureza e frequência das doenças que a lavra de um grande porto de mar pode causar. O mesmo cuidado tive quando me mandaram fazer esse serviço em Angola, em Moçambique e na India. Sem esse conhecimento prévio não será possível calcular a quantidade e a natureza dos tratamentos que venham a ser requeridos, nem o volume de material a adquirir. Por outro lado, nunca me esqueci que um Centro de Sangue autónomo como este, que ficou instalado nas ilhas Verdes, tem que estar perfeitamente integrado nas condições da vida social e humana da sua região, como tem que estar pronto a servir em casos de emergência pública ou defesa nacional. Foi nessa altura que interroguei os meus amigos de Cabo Verde sobre a existência da tristeosa (e a sua natureza); foi nessa altura, igualmente, que alguém me insinuou haver nos cabo-verdianos um complexo de inferioridade com respeito às «doenças de negro».
Há mais de vinte anos, desde aquele em que pela primeira vez me matriculei no Instituto de Medicina Tropical, que a tristeosa ficara para mim como uma espécie de simbolismo das ilhas Verdes. Nunca pude esquecer o sortilégio que tinham as palavras de Firmino Santana ao descrever essa doença de grande miséria fisiológica, que só atacava os negros e cujo diagnóstico causal ficava indeciso entre a malária e o alcoolismo crónico. Era um estado grave, em que todos os doentes acabavam por morrer, num estado que semelhava os dos transes e, o que era mais impressionante, davam a alma voltados para a África. É claro que eu, que mal saía do meu sarampo romântico, logo deduzi que aqueles pretos realizavam a seu modo um estado lamartiniano; que mesmo que fosse malária (como falar em sezões é falar de baço) eles recriavam nas costas de S. Antão o «spleen» que Byron andou a padecer por Sintra; e que morriam voltados para o grande Continente ouvindo a chamada dos ancestrais, acolhendo no último instante, a voz cava e longínqua da terra! Era uma interpretação romântica. Era um conceito bonito. Era, sobretudo, um conceito tonto, a história irreal de uma doença irreal que, numa noite divertida, alguns médicos de Cabo Verde contaram ao crédulo professor Firmino.
Quanto às «doenças de negro» o problema requer uma pequena discussão. Deve dizer-se, em primeiro lugar, que eu nem sequer pude avaliar exactamente em que medida se manifestam no arquipélago as diferentes doenças, porque as estatísticas publica das oficialmente só merecem um crédito muito restrito, apesar dos esforços e do entusiasmo que na sua organização tem posto o activo director dos seus Serviços de Saúde. E não merecem grande confiança porque à falta de laboratórios nos hospitais e nos postos muitas rubricas nosológicas estão preenchidas por entidades diagnosticadas por simples impressões clínicas ou por um diagnóstico diferencial de simples estimativa; e porque - ao que parece - factores de ordem não científica têm influído na sua apresentação.
Seja como for, não se justificava, porém - se é que ele existia - qualquer complexo de inferioridade pela existência de «doenças de negro», ou melhor: de doenças tropicais. Até porque, não há doenças tropicais. Já em 1954 provoquei, a este propósito, um pequenino escândalo científico. Tinham-me chamado para ser redactor oficial sobre os problemas dos Serviços de Sangue em relação com as doenças tropicais, convite que eu aceitei para poder afirmar, em plena Sorbona, com o meu interno Carlos de Oliveira, que tais doenças não existem. Dada por um lado, a expansão cosmopolita da maior parte das doenças chamadas exóticas, e por outro, a destropicalização progressiva que a saúde pública vai realizando nesses territórios, tanto à escala nacional como à escala internacional.
Uma clínica puramente tropical é um mito, pois, podemos verificar em regiões não tropicais grande número das doenças outrora reconhecidas como tropicais. A actual geografia sanitária não corresponde por forma alguma às dimensões da geografia médica do princípio deste século. Até porque, com a multiplicação progressiva dos meios de transporte, deixou de haver espaços sanitários autónomos. De resto, a própria história já ensinava que doenças consideradas eminentemente tropicais, como a amebíase, tinham sido descobertas a primeira vez nas estepes russas.         
Sem dúvida que o ambiente, o clima, a presença de agentes intermediários autónomos e específicos, e determinadas condições sociais, alimentares ou até religiosas, podem dar, nos trópicos - e dão! - aspectos particulares a numerosas doenças cosmopolitas. Mas se tomarmos à letra, como definição de doenças tropicais, aquelas que só se manifestam entre os trópicos, ou seja entre 23º e 27’ ao norte e ao sul do Equador pode dizer-se que, com excepção da doença do sono, não há doenças intertropicais. E se dissermos apenas «doenças que existem ou podem existir nas regiões quentes» cabem lá todas, até as do frio, e nomeadamente aquelas que até há pouco tempo eram quási só presentes nos países temperados: como o cólera, a peste ou a varíola.
Os cabo-verdianos não tinham, pois, que sentir qualquer complexo de inferioridade por terem nascido e por viverem na área geográfica das doenças chamadas exóticas, e que nós, europeus e americanos do Norte, assim denominávamos só porque não eram frequentes nas nossas. De resto, sempre que lhes perguntei por esse complexo, responderam-me com sonoras e sadias gargalhadas.

ALMERINDO LESSA
- Diário Popular -



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