MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 4

domingo, 4 de junho de 2017
Segunda Reunião.
Possibilidades de uma civilização tropical nas ilhas. Criação artística. Indolência.' Língua crioula. Cultura da terra. Biogeografia das fomes. Discussão.

A 2ª Reunião, tal como a primeira, foi precedida de uma dissertação feita pelo Dr. Almerindo Lessa no sentido de estabelecer as balizas conceptuais às questões que iam ser postas:
Almerindo Lessa: Recentemente, foram publicados na minha província já sabem que a minha província é a Europa dois livros que são fundamentais para o conhecimento da Cultura Ocidental e das diferentes culturas do Mundo. O primeiro[1], que foi editado conjuntamente pelos governos de cinco nações da Fraa, da Inglaterra e dos três países do Benelux , constitui o chamado manifesto do Pacto de Bruxelas e é a primeira tentativa de uma didáctica da cultura europeia acima dos planos nacionais. O segundo[2], que foi publicado pela UNESCO, é também um manifesto assinado por um grupo de intelectuais, entre eles dois brasileiros Sérgio Buarque de Holanda e M. Castro Leal , e constitui uma tentativa para encontrar na diversidade das culturas dos povos brancos e dos povos de cor uma unidade e uma base de confronto. Será à luz das doutrinas desses dois livros que esta noite irei r a V. Ex.as alguns problemas concretos acerca da cultura e dos homens de Cabo Verde.
Eu creio que o observador que daqui a umas largas dezenas de anos procure informar-se sobre o movimento das ideias no Ocidente -de encontrar que o Pensamento da Europa neste meio século, nomeadamente nesta viragem da II Grande Guerra, se marca por dois diacticos fundamentais. O primeiro é o esforço da Cultura Europeia, o esforço da Cultura Ocidental para encontrar dentro da pluralidade das culturas nacionais uma unidade de síntese; o segundo é a tentativa para compreender as culturas dos chamados homens de cor. O primeiro é um ensaio para encontrar o que haja de unitário nas culturas dos diferentes países da Europa, para encontrar, para lá das geografias que separam as diferentes nações, para lá das suas histórias, das suas guerras, das suas diversidades aquilo que cada um desses povos trouxe, em cada uma das suas fases, para a criação das Ciências, das Artes e das Letras. A cultura da Europa, que é necessário definir, porque dela nos havemos de ajudar para julgar as dos homens de cor, caracteriza-se, a meu ver, pela contribuição que todos os seus povos lhe deram independentemente dos princípios e dos fins. Eu creio que a Cultura da Europa é feita, ao mesmo tempo, de Cristianismo e de crises religiosas; é feita, ao mesmo tempo, de Ciência experimental e de Democracia política; é feita, ao mesmo tempo, de Indústria e de Poesia. Eu creio, meus senhores, que o que faz a força moral da Cultura Europeia é o conceito que nós temos de Homem, os conceitos que nós temos sobre a Dignidade, a Liberdade e ainda sobre os limites morais do Progresso. Talvez eu possa dizer, numa boutade, que nós, Europeus, nos sentimos dominados por uma herança; aquela que  Bernard Schaw disse, de uma maneira alegórica, que nos foi deixada pelos oito construtores do Mundo: por Pitágoras, por Ptolomeu, por Platão, por Aristóteles, por Copérnico, por Galileu, por Newton e por Einstein.
O segundo diacrítico com que deparará o observador que procure encontrar as linhas de força da Cultura Ocidental será a tentativa feita para compreender as culturas dos chamados homens de cor. Discutiram-se na nossa última reunião as atitudes que os povos negros de cor sirvam-nos esses para exemplo têm tido
quando são abordados pelos povos brancos ocidentais naquela classificação dos sociologistas americanos e brasileiros: aceitação, adaptação, reacção. Na realidade, desde que o homem branco encontrou os homens de cor, a atitude geral foi essa. Aqueles povos não tiveram outras possibilidades (a não ser em parte, os que nos encontraram a nós, Portugueses) que ou esconderem e deixarem murchar as raízes das suas próprias culturas ou reagirem. Como nós, porém, dispúnhamos de uma Técnica superior, a reacção foi sempre para eles um desastre. Hoje, porém, pelo menos no campo da Cultura, nota-se uma nítida evolução. Nós hoje, nós, os responsáveis e os que aderimos
à responsabilidade de fazer uma cultura em plano europeu, entendemos que muito mais importante do que impor um determinado figurino é procurar se naquelas zonas onde a cultura foi dada agora como incapaz ou onde o solo cultural está considerado como improdutivo desde sempre não será melhor proporcionar os meios técnicos para que povos que tiveram já uma elevada cultura como o Hindu ou o
Chin
ês ou povos que possivelmente não souberam revelar nenhuma, como alguns da África Negra encontrem a possibilidade e os meios de darem seiva às suas próprias raízes.
É com estas ideias, meus senhores, que eu me atrevo hoje a pôr um certo número de problemas sobre a Cultura e os homens de Cabo Verde. Hoje sou eu quem faz perguntas.
Vejamos a primeira: «Existe uma cultura cabo-verdiana? O clima, as fomes, o desemprego, a falta de transportes, a crise comercial do caro, etc., podem explicar quaisquer suspensões verificadas na sua aristocratização ou será possível determinarem-se outras causas?»
Antes de mais nada, temos de assentar no que seja Civilização. Eu proponho, para não cairmos num terreno cheio de confusões, que aceitem comigo aquela que se convencionou chamar a «definição científica» de Civilização: que se«o conjunto das manifestões de ordem cultural ou espiritual de um dado povo ou de uma dada época, qualquer que seja o nível técnico e o grau de progresso ou de riqueza desse povo ou dessa época». Poremos assim de parte o plano restrito em que o sentido de Civilização
aparece ligado ao de progresso técnico; bem como a ideia de que o estado de Civilização seja insepavel do estado de progresso técnico. Até porque, como demonstrou Henri George num livro Progresso e Pobreza , há povos, como o Hindu, que, embora vocacionados para uma Cultura, parece não serem dotados do sentido de progresso técnico. Assim, eu admito a possibilidade duma civilizão cabo-verdiana. Fica apenas em discussão o seu grau e que forças têm sido capazes de impedir um seu maior desenvolvimento.
Outra afirmação que quero fazer. Como disse na primeira Mesa, eu considero que o mestiço destas ilhas é capaz de realizar uma actividade cultural e por ela contribuir, até, para a crião de um modo de Civilização. Que é que o pode então influir, contrariar ou auxiliar nesse sentido?
Eu, por mim, não nego a influência do clima no desenvolvimento das colectividades humanas. Ellsworth Huntington[3] chamou a tal influência, que trabalhou largamente, a hipótese climática da Civilização. Já aludi a ela. Nós sabemos que com as crises de clima podem vir crises de doenças. Nós sabemos que a amease é capaz de derrotar um exército há exemplos; nós
sab
emos que a malária é capaz de derrotar um povo há exemplos. Mas eu penso também que a inteligência que é a capacidade que o homem tem de se adaptar a circunstâncias novas é capaz de modificar o problema. Eu aceito, aceitei já no outro dia, que antes de o homem ter alcaado as técnicas actuais de conforto, de produção e de conservação dos alimentos teve melhor probabilidade de subsistir e de fundar a sua cidade nas zonas temperadas e frias do que nas zonas quentes. Foi baseado nas observações da História que Gil Fillan[4] concebeu a sua teoria da deslocação das civilizões no sentido do frio. Mas hoje a Técnica permitiu já vencer as barreiras do frio e do calor. O problema está perfeitamente equacionado. Em 1949 e 1950 eu percorri Angola e Moçambique em todos os sentidos, mas já não conheci a África dos pioneiros. Encontrei médicos que viviam no interior, a mil e a dois mil quilómetros da costa, com comodidades e confortos que no tempo de Roberto Ivens, de Livingstone e de Serpa Pinto nem sequer havia em Lisboa. Das razões ecomicas nada penso dizer. Seguramente que as crises comerciais, o desemprego, as fomes, a falta de transportes e a falta de depósitos, quer em matérias-primas quer em dinheiro, devem criar situações que episòdicamente podem dificultar o desenvolvimento da cultura. Se não soubesse da existência de crises graves (numa delas sei eu que as ilhas perderam 16 % da população), se não soubesse isso, duas páginas extraordinárias da literatura cabo-verdiana, das que mais foram direitas à minha sensibilidade e aos meus anseios O Faminto e a Mamai Terra de Baltasar Lopes , dar-me-iam uma posição para julgar a importância que aqui assume o problema das fomes[5]. Mas eu quero insistir que o mundo que se interessa por Cabo Verde não está bem informado. (ver o quadro I).
A segunda pergunta tem um sentido mais restrito: «Sendo a sensualidade uma das razões da criação arstica, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original ou ela se encontre limitada à poesia e ao bailado? Ou -existe mesmo uma arte regional em estado de hibernação?
Ao buscar esclarecimentos para esta pergunta limito-me a repor um problema coisa interessante! posto pela primeira vez por Gobineau, o primeiro teórico do racismo, que em 1854 reconhecia que «os negros e os povos de raça pura possuem no mais alto grau a faculdade sensual sem a qual nenhuma arte é posvel». A partir de então tem-se estabelecido grande discussão entre os críticos da Arte, sobretudo da Escultura e do Desenho, sobre as raízes que a Arte Negra possa ter tido no florescimento das Artes Europeias. Problema levantado por Kurt Wolff, Hermann Bahr, Pablo Picasso, Andre Salmon e por dois outros franceses Jean Cocteau e Guillaume Apollinaire um dos maiores espíritos críticos contemporâneos. Como sabem, uma das equações levantadas por Daniel Kahnweiler é que a Arte Negra está na origem do Cubismo.
O terceiro problema cabe à pergunta que faço sobre se «a indolência cabo- verdiana é fruto do clima e do tipo de alimentação, ou consequência de uma doença da vontade»? Proponho-me dar como exemplo desta última circunstância o que foi observado nos escolares da bacia do Sado. V. Ex.as sabem, evidentemente, em que estou a pensar. Estou a pensar nas raízes afras.
O conceito de que o cabo-verdiano é um homem indolente é muito antigo. Eu encontrei que, em 1776, o governador José Maria Cardoso já se queixava para o Reino que os povos destas ilhas eram indolentes e pela indolência não estavam interessados em aproveitar os progressos da Agricultura. Como estamos numa mesa-redonda, dispostos a estudar cientificamente, sem quaisquer susceptibilidades esterilizantes, os problemas que possam influir no desenvolvimento do homem cabo-verdiano, espero que me permitam mais esta pergunta e que eu próprio pense que na realidade o cabo-verdiano é, pelo menos socialmente, um ser indolente. De outra forma eu não saberia explicar a existência de tantas coisas desconformes que aqui vejo: uma cidade que parece ter sido bombardeada; ausência de um mínimo de conforto hoteleiro; indiferença perante a agonia e a morte pública dos animais (o que é estranho num povo de tão elevada sensibilidade poética); esquecimento das suas próprias criações culturais; persistência de uma cozinha regional contrária aos mais elementares princípios de economia local, et cetera.
O quarto tema que proponho para a discussão desta noite diz respeito ao idioma: «A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a plasticidade de verdadeiro idioma, ou é apenas «falar útil», bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais?», Conheço, a este propósito, duas posições: uma de repugnância, que é a de Gilberto Freire, e outra de rasgada aceitação, que é a de Baltasar Lopes. Como uma dessas autoridades está presente, eu quero ouvi-la. Pelo meu lado, preparei-me já para compreender o crioulo através dos estudos e das referências não só do vosso reitor, mas também de um Osório de Oliveira, de um Julião Quintinha e de um Augusto Casimiro.
Outra questão: «As formas elementares». como eu julgo que são, «de cultura da terra são conseqncia de um «fatalismo», da falta de meios materiais ou da impreparação técnica dos agricultores; outro problema sobre o qual eu gostaria de ouvir o meu amigo Júlio Monteiro.
Por fim, desejaria perguntar se «existe um complexo de inferioridade respeitante às doenças do negro?». Alguém me falou nisso, e tinha posição oficial para o fazer. E eu receio que em verdade assim seja.
Não que eu admita a existência, em larga escala, de doenças exclusivamente tropicais e sobretudo naquele sentido pejorativo contra o qual já se levantou há mais de quarenta anos o meu saudoso amigo Afrânio Peixoto. De resto, como ainda há pouco, num relatório oficial ao Congresso Internacional de Sangue, reunido em Paris, eu e o meu colaborador Carlos de Oliveira tivemos ocasião de afirmar, o sentido com que devem ser entendidas as chamadas «doenças exóticas» evoluiu muito. Hoje quase não há geografias sanitárias autónomas. Se, em estrita definão, entendermos por doeas tropicais aquelas que só existam na área planetária limitada pelos trópicos, pode dizer-se que, com excepção da doença do sono, não há doenças tropicais. O homem moderno torna cosmopolita toda a Patologia. O quadro II, que resume a morbilidade de 1946 a 1955 para o conjunto de todas as ilhas, reflecte a existência da mais variada nosologia. E, no meu entender, nas grandes sobrecargas das casas I, III, IX e XII deve concorrer o estado de fome crónica que domina a maior parte da populão. No entanto, disseram-me que em certas regiões de África, como Cabo Verde, a população mais evoluída sente-se psicologicamente diminuída por ser portadora de doenças que percentualmente predominam nos indivíduos de raça negra. Eu nada posso opinar, mas confesso que me tem sido difícil estudar as publicações ou os relatórios médicos locais. Muitas rubricas são manifestamente incorrectas. E outras não teriam sido omitidas?




[1] La civilisation Européene Occidental et l’Ecole. Edições E. N. Paris, 1955
[2] L’Originalité des Cultures. Son rôle dans la Compréhension Internationale. Edições UNESCO. Paris, 1953
[3] E. Huntington – Civilización y Clima. Madrid, 1942 (trad. esp.).
[4] G. Fillan – The Coldward Course of Progress. London, 1920.
[5] Segundo dados fornecidos pelo Dr. Júlio Monteiro

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