Segunda Reunião.
Possibilidades de uma civilização tropical nas ilhas. Criação artística. Indolência.' Língua crioula. Cultura da terra. Biogeografia das fomes. Discussão.
A 2ª Reunião, tal como
a primeira, foi precedida de uma dissertação feita pelo Dr. Almerindo Lessa no
sentido de estabelecer as balizas conceptuais às questões que iam ser postas:
Almerindo Lessa: Recentemente, foram publicados na minha província
– já sabem
que a minha
província é a Europa – dois livros que são fundamentais para o conhecimento da
Cultura
Ocidental e das diferentes culturas do Mundo. O primeiro[1], que foi editado
conjuntamente pelos governos de cinco nações – da França,
da Inglaterra e dos três países do Benelux
–, constitui o chamado manifesto do Pacto de Bruxelas e é a primeira
tentativa de
uma didáctica
da cultura europeia acima dos
planos nacionais. O segundo[2], que
foi publicado pela UNESCO, é também
um manifesto assinado por um
grupo de intelectuais, entre
eles
dois brasileiros – Sérgio Buarque de Holanda e M. Castro Leal –, e constitui uma tentativa
para encontrar na diversidade das culturas dos povos brancos e dos
povos de cor
uma unidade e uma base de confronto. Será
à luz das
doutrinas desses dois livros que esta noite irei pôr a V. Ex.as alguns problemas
concretos
acerca da cultura e dos homens de
Cabo Verde.
Eu creio que o observador que daqui a umas largas dezenas de
anos procure informar-se sobre o movimento
das ideias no Ocidente há-de encontrar que o Pensamento da Europa neste meio século,
nomeadamente nesta viragem da II Grande Guerra, se
marca por dois diacríticos fundamentais. O primeiro é
o esforço da Cultura Europeia, o esforço da
Cultura Ocidental para encontrar dentro da pluralidade
das culturas nacionais
uma unidade de síntese; o segundo é
a tentativa para compreender as culturas dos chamados homens de cor. O primeiro
é um ensaio para encontrar o que haja de unitário nas culturas dos diferentes
países da Europa, para encontrar, para lá das geografias que separam as diferentes
nações, para lá das suas histórias, das suas guerras, das suas diversidades aquilo
que cada um desses povos trouxe, em cada uma das suas fases, para a criação das
Ciências, das Artes e das Letras. A cultura da Europa, que é necessário definir, porque
dela nos havemos de ajudar para julgar as dos homens de cor, caracteriza-se, a
meu ver, pela contribuição que todos os seus povos lhe deram independentemente
dos princípios e dos fins. Eu creio que a Cultura da Europa é feita, ao mesmo
tempo, de Cristianismo e de crises religiosas; é feita, ao mesmo tempo, de
Ciência experimental e de Democracia política; é feita, ao mesmo tempo, de
Indústria e de Poesia. Eu creio, meus senhores, que o que faz a força moral da
Cultura Europeia é o conceito que nós temos de Homem, os conceitos que nós
temos sobre a Dignidade, a Liberdade e ainda sobre os limites morais do Progresso.
Talvez eu possa dizer, numa boutade, que
nós, Europeus, nos sentimos dominados por uma herança; aquela que Bernard
Schaw disse, de uma maneira alegórica, que nos foi deixada pelos oito
construtores do Mundo: por Pitágoras,
por Ptolomeu, por Platão, por Aristóteles, por Copérnico,
por Galileu, por Newton e por Einstein.
O segundo diacrítico com que deparará
o observador que procure encontrar as linhas de força da Cultura Ocidental será
a tentativa feita para compreender as culturas dos chamados homens de cor.
Discutiram-se na nossa última reunião as atitudes que os povos negros de cor – sirvam-nos esses para
exemplo – têm tido
quando são abordados pelos povos brancos ocidentais naquela classificação dos sociologistas americanos e brasileiros: aceitação, adaptação, reacção. Na realidade, desde que o homem branco encontrou os homens de cor, a atitude geral foi essa. Aqueles povos não tiveram outras possibilidades (a não ser em parte, os que nos encontraram a nós, Portugueses) que ou esconderem e deixarem murchar as raízes das suas próprias culturas ou reagirem. Como nós, porém, dispúnhamos de uma Técnica superior, a reacção foi sempre para eles um desastre. Hoje, porém, pelo menos no campo da Cultura, nota-se uma nítida evolução. Nós hoje, nós, os responsáveis e os que aderimos à responsabilidade de fazer uma cultura em plano europeu, entendemos que muito mais importante do que impor um determinado figurino é procurar se naquelas zonas onde a cultura foi dada agora como incapaz ou onde o solo cultural está considerado como improdutivo desde sempre não será melhor proporcionar os meios técnicos para que povos que tiveram já uma elevada cultura como o Hindu ou o
Chinês ou povos que possivelmente não souberam revelar nenhuma, como alguns da África Negra encontrem a possibilidade e os meios de darem seiva às suas próprias raízes.
quando são abordados pelos povos brancos ocidentais naquela classificação dos sociologistas americanos e brasileiros: aceitação, adaptação, reacção. Na realidade, desde que o homem branco encontrou os homens de cor, a atitude geral foi essa. Aqueles povos não tiveram outras possibilidades (a não ser em parte, os que nos encontraram a nós, Portugueses) que ou esconderem e deixarem murchar as raízes das suas próprias culturas ou reagirem. Como nós, porém, dispúnhamos de uma Técnica superior, a reacção foi sempre para eles um desastre. Hoje, porém, pelo menos no campo da Cultura, nota-se uma nítida evolução. Nós hoje, nós, os responsáveis e os que aderimos à responsabilidade de fazer uma cultura em plano europeu, entendemos que muito mais importante do que impor um determinado figurino é procurar se naquelas zonas onde a cultura foi dada agora como incapaz ou onde o solo cultural está considerado como improdutivo desde sempre não será melhor proporcionar os meios técnicos para que povos que tiveram já uma elevada cultura como o Hindu ou o
Chinês ou povos que possivelmente não souberam revelar nenhuma, como alguns da África Negra encontrem a possibilidade e os meios de darem seiva às suas próprias raízes.
É com
estas ideias, meus senhores, que eu me atrevo hoje a pôr um certo número de problemas sobre a Cultura e os homens de Cabo Verde. Hoje sou
eu quem faz perguntas.
Vejamos a primeira: «Existe uma cultura
cabo-verdiana? O clima, as fomes, o
desemprego, a falta de transportes,
a crise comercial do
carvão, etc., podem explicar quaisquer
suspensões verificadas
na sua aristocratização
ou será possível determinarem-se
outras causas?»
Antes de mais nada, temos de assentar no que seja Civilização. Eu proponho, para não cairmos num terreno cheio de confusões, que aceitem comigo aquela que se convencionou chamar a «definição científica» de Civilização: que será «o conjunto das manifestações de ordem cultural ou espiritual de um dado povo ou de uma dada época, qualquer que seja o nível técnico e
o grau de progresso ou de riqueza desse povo ou dessa época». Poremos assim de parte o plano restrito em que o sentido de Civilização
aparece ligado ao de progresso técnico; bem como a ideia de que o estado de Civilização seja inseparável do estado de progresso técnico. Até porque, como demonstrou Henri George num livro – Progresso e Pobreza –, há povos, como o Hindu, que, embora vocacionados para uma Cultura, parece não serem dotados do sentido de progresso técnico. Assim, eu admito a possibilidade duma civilização cabo-verdiana. Fica apenas em discussão o seu grau e que forças têm sido capazes de impedir um seu maior desenvolvimento.
aparece ligado ao de progresso técnico; bem como a ideia de que o estado de Civilização seja inseparável do estado de progresso técnico. Até porque, como demonstrou Henri George num livro – Progresso e Pobreza –, há povos, como o Hindu, que, embora vocacionados para uma Cultura, parece não serem dotados do sentido de progresso técnico. Assim, eu admito a possibilidade duma civilização cabo-verdiana. Fica apenas em discussão o seu grau e que forças têm sido capazes de impedir um seu maior desenvolvimento.
Outra afirmação que quero fazer. Como disse na primeira Mesa, eu considero que o mestiço destas ilhas é capaz de realizar uma actividade cultural e por ela contribuir, até, para a criação de um modo de Civilização. Que é que o pode então influir, contrariar ou auxiliar nesse sentido?
Eu, por mim, não nego a influência do clima no desenvolvimento das colectividades humanas. Ellsworth Huntington[3] chamou
a tal influência,
que trabalhou largamente, a hipótese climática da Civilização.
Já aludi a ela. Nós sabemos que com as crises de clima podem
vir crises de doenças. Nós sabemos que a amebíase é capaz de
derrotar um exército – há exemplos; nós
sabemos que a malária é capaz de derrotar um povo – há exemplos. Mas eu penso também que a inteligência – que é a capacidade que o homem tem de se adaptar a circunstâncias novas – é capaz de modificar o problema. Eu aceito, aceitei já no outro dia, que antes de o homem ter alcançado as técnicas actuais de conforto, de produção e de conservação dos alimentos teve melhor probabilidade de subsistir e de fundar a sua cidade nas zonas temperadas e frias do que nas zonas quentes. Foi baseado nas observações da História que Gil Fillan[4] concebeu a sua teoria da deslocação das civilizações no sentido do frio. Mas hoje a Técnica permitiu já vencer as barreiras do frio e do calor. O problema está perfeitamente equacionado. Em 1949 e 1950 eu percorri Angola e Moçambique em todos os sentidos, mas já não conheci a África dos pioneiros. Encontrei médicos que viviam no interior, a mil e a dois mil quilómetros da costa, com comodidades e confortos que no tempo de Roberto Ivens, de Livingstone e de Serpa Pinto nem sequer havia em Lisboa. Das razões económicas nada penso dizer. Seguramente que as crises comerciais, o desemprego, as fomes, a falta de transportes e a falta de depósitos, quer em matérias-primas quer em dinheiro, devem criar situações que episòdicamente podem dificultar o desenvolvimento da cultura. Se não soubesse da existência de crises graves (numa delas sei eu que as ilhas perderam 16 % da população), se não soubesse isso, duas páginas extraordinárias da literatura cabo-verdiana, das que mais foram direitas à minha sensibilidade e aos meus anseios – O Faminto e a Mamai Terra de Baltasar Lopes – , dar-me-iam uma posição para julgar a importância que aqui assume o problema das fomes[5]. Mas eu quero insistir que o mundo que se interessa por Cabo Verde não está bem informado. (ver o quadro I).
sabemos que a malária é capaz de derrotar um povo – há exemplos. Mas eu penso também que a inteligência – que é a capacidade que o homem tem de se adaptar a circunstâncias novas – é capaz de modificar o problema. Eu aceito, aceitei já no outro dia, que antes de o homem ter alcançado as técnicas actuais de conforto, de produção e de conservação dos alimentos teve melhor probabilidade de subsistir e de fundar a sua cidade nas zonas temperadas e frias do que nas zonas quentes. Foi baseado nas observações da História que Gil Fillan[4] concebeu a sua teoria da deslocação das civilizações no sentido do frio. Mas hoje a Técnica permitiu já vencer as barreiras do frio e do calor. O problema está perfeitamente equacionado. Em 1949 e 1950 eu percorri Angola e Moçambique em todos os sentidos, mas já não conheci a África dos pioneiros. Encontrei médicos que viviam no interior, a mil e a dois mil quilómetros da costa, com comodidades e confortos que no tempo de Roberto Ivens, de Livingstone e de Serpa Pinto nem sequer havia em Lisboa. Das razões económicas nada penso dizer. Seguramente que as crises comerciais, o desemprego, as fomes, a falta de transportes e a falta de depósitos, quer em matérias-primas quer em dinheiro, devem criar situações que episòdicamente podem dificultar o desenvolvimento da cultura. Se não soubesse da existência de crises graves (numa delas sei eu que as ilhas perderam 16 % da população), se não soubesse isso, duas páginas extraordinárias da literatura cabo-verdiana, das que mais foram direitas à minha sensibilidade e aos meus anseios – O Faminto e a Mamai Terra de Baltasar Lopes – , dar-me-iam uma posição para julgar a importância que aqui assume o problema das fomes[5]. Mas eu quero insistir que o mundo que se interessa por Cabo Verde não está bem informado. (ver o quadro I).
A segunda pergunta tem um sentido
mais restrito: «Sendo a sensualidade uma das razões da criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original ou ela se encontre limitada à poesia e ao bailado? Ou -existe mesmo uma arte regional em estado de hibernação?
Ao buscar esclarecimentos
para esta pergunta limito-me a repor um problema – coisa interessante! – posto pela primeira vez
por Gobineau, o primeiro teórico do racismo, que
em 1854 reconhecia que «os negros e os povos de raça
pura possuem no mais alto grau a
faculdade sensual
sem a qual nenhuma arte é possível». A partir
de então tem-se
estabelecido grande
discussão entre os críticos da Arte, sobretudo da Escultura e do Desenho, sobre as raízes que
a Arte Negra
possa ter tido no florescimento das
Artes Europeias.
Problema levantado
por Kurt Wolff, Hermann Bahr, Pablo
Picasso, Andre Salmon e
por dois outros franceses Jean Cocteau e Guillaume
Apollinaire – um dos maiores espíritos
críticos contemporâneos.
Como sabem, uma das
equações levantadas
por Daniel Kahnweiler é que a
Arte Negra está na origem do Cubismo.
O
terceiro problema cabe à pergunta que faço sobre se «a indolência cabo- verdiana é fruto do clima e do tipo de alimentação, ou consequência de uma doença da vontade»? Proponho-me dar como exemplo desta última circunstância
o que foi observado nos escolares da bacia do Sado. V. Ex.as sabem,
evidentemente, em que estou a pensar.
Estou a pensar nas raízes afras.
O
conceito de que o cabo-verdiano é um homem indolente é muito antigo. Eu encontrei que, em 1776, o governador José Maria Cardoso já se queixava para o
Reino que os povos destas ilhas eram indolentes e pela indolência não estavam interessados
em aproveitar os progressos da Agricultura. Como
estamos numa mesa-redonda, dispostos a estudar cientificamente, sem quaisquer susceptibilidades esterilizantes,
os problemas que possam
influir no desenvolvimento do homem cabo-verdiano,
espero que me permitam mais esta pergunta e que eu
próprio pense que na realidade o cabo-verdiano é, pelo menos socialmente, um
ser indolente. De outra forma eu
não saberia explicar a existência de tantas coisas desconformes
que aqui vejo: uma cidade que parece
ter sido bombardeada; ausência de um mínimo de conforto
hoteleiro; indiferença perante a agonia e a morte pública
dos animais (o que é estranho num povo de tão elevada sensibilidade poética); esquecimento das suas próprias criações culturais; persistência
de uma cozinha regional contrária aos mais elementares princípios de economia local, et cetera.
O
quarto tema que proponho para a discussão desta
noite diz respeito ao idioma: «A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a plasticidade de verdadeiro idioma, ou é apenas «falar útil», bom como instrumento de comunicação, mas
incapaz
para outras realizações intelectuais?», Conheço,
a este propósito, duas posições:
uma de repugnância, que é a de Gilberto Freire, e outra de
rasgada aceitação, que é a de Baltasar Lopes. Como uma dessas
autoridades está presente, eu quero ouvi-la. Pelo meu lado,
preparei-me já para compreender o crioulo através
dos estudos e das referências não só do vosso reitor, mas também de um Osório
de Oliveira, de um Julião Quintinha e de
um Augusto Casimiro.
Outra questão: «As formas elementares». como eu julgo que são, «de cultura da terra são consequência de um «fatalismo», da falta de meios materiais ou da impreparação técnica dos agricultores?»; outro
problema sobre o qual eu gostaria de
ouvir o meu amigo Júlio
Monteiro.
Por fim, desejaria perguntar se «existe um complexo de inferioridade respeitante às doenças do negro?». Alguém
me falou nisso, e tinha posição
oficial para o fazer. E eu receio que em verdade assim seja.
Não que eu admita a existência, em larga escala, de doenças exclusivamente tropicais
e sobretudo naquele sentido pejorativo contra o qual já se levantou há mais de quarenta anos o meu saudoso
amigo Afrânio Peixoto. De resto,
como ainda há pouco, num relatório oficial ao Congresso Internacional de Sangue, reunido
em Paris, eu e o meu colaborador Carlos
de Oliveira tivemos ocasião de afirmar, o sentido
com que devem ser entendidas as chamadas «doenças exóticas» evoluiu
muito. Hoje quase não há geografias
sanitárias autónomas. Se, em estrita definição, entendermos por doenças tropicais aquelas que só existam na área planetária
limitada pelos trópicos, pode dizer-se que, com excepção
da doença do sono, não há doenças tropicais. O homem
moderno torna cosmopolita
toda a Patologia. O quadro II, que resume a morbilidade de 1946 a 1955 para o conjunto de todas as
ilhas, reflecte a existência da mais variada
nosologia. E, no meu entender,
nas grandes sobrecargas das casas I, III, IX e XII
deve concorrer o estado de fome crónica que domina a maior parte da população. No
entanto, disseram-me
que em certas regiões de África, como Cabo Verde, a
população mais evoluída sente-se
psicologicamente diminuída por ser
portadora de doenças que percentualmente predominam nos indivíduos de raça
negra. Eu nada posso opinar, mas confesso que me tem sido difícil
estudar as publicações ou os relatórios médicos locais. Muitas rubricas são
manifestamente incorrectas. E outras não teriam sido omitidas?
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