AINDA "MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO (II E III)

domingo, 18 de junho de 2017
NA HORA DI BAI
Segunda meditação biológica
 sobre o homem de cabo verde

Augusto Chevalier, de quem são as ideias expostas acima, pensa igualmente que a hipótese de que as ilhas de Cabo Verde tenham feito parte da Atlântida é tão pouco verosímil como a própria existência desse continente; que, de resto, não teria atingido tão baixa latitude.
o se conhece nelas indústria neolítica, não se encontraram nelas utensílios rupestres, e a hipótese de que tenham sido habitadas antes da chegada de Diogo Gomes e de António da Noli, em 1460, nunca pôde ser demonstrada. É possível que Aloísio de: Cadamosto tenha passado quatro anos antes, em 1456, pelas ilhas da Boavista e de Santiago, mas pela descrão que deixou, em 1507, não fica a certeza de que as tenha pisado. Quanto ás inscrições rupestres largamente referidas na tradição oral dos povos da Boavista, de Maio, de Santo Antão e de São Nicolau, ou nunca foram encontradas ou deixaram sempre grandes dúvidas quanto à sua natureza – como sucedeu com aquela que- o referido botânico francês descobriu em Santo Antão – e, nomeadamente, sobre a sua origem, visto os berberes, a quem se atribuem, o serem navegadores e a hipótese de haverem chegado às ilhas, em embarcações fenícias, nunca ter sido documentada. Também os dólmens parecem ser obra do acaso. Assim, pode admitir-se que nenhum humano, chegou a Cabo Verde antes de s, ou se chegou não pôde subsistir e desapareceu sem deixar vestígio. Só quando foi possível transportar para lá a cultura dos cereais e da cana do açúcar, pôde começar a ocupação; só quando lá criámos um novo tipo de homem, pôde dar-se inicio àquela civilização que estou procurando analisar nestes artigos.
Eu não tenho a veleidade de pensar que fui o primeiro observador a interessar-se pelos problemas de conjunto do homem cabo-verdiano. Para mim quero apenas a responsabilidade de em algumas noites de Verão ter levado a intelincia de S. Vicente a discutir comigo os seus próprios problemas. Fui apenas um agitador de ideias. Ora, uma das primeiras que levantei foi a necessidade de corrigir umas quantas opiniões erradas que sobre as gentes e as terras daquele arquipélago correm nas Universidades da Europa; e, sobretudo, as deste mesmo Augusto Chevalier, cujo livro sobre Cabo Verde, publicado tiro Paris, em 1935, é, ainda hoje, o vade-mecum de todo o viajante científico que se propõe ir até às ilhas verdes. Era aquele que o meu amigo Jacques Ruffié, professor em Toulouse e meu companheiro de pesquisas sero-antropológicas, levava consigo quando desembarcou.
Foi como botânico que Augusto Chevalier se interessou pelas nossas ilhas: como botânico, ou seja, como biologista. De ai, não ter podido abstrair-se de observar as terras onde se criavam ou desapareciam essas plantas e os homens que as comiam ou as queimavam. Correu a maior parte delas, tirou apontamentos e deixou sobre a sua geografia observações cheias de razão e de pertinência, embora profundamente contundentes para o nosso brio e a nossa posição histórica. Cabo Verde ainda era naqueles anos de 1930, em que por lá andou. um dos países mais ignorados no campo da bio-geografia. Apesar de manter o atractivo de «a mais antiga colónia tropical do Mundo», e de ser dotada de 'um «clima de paraíso terrestre», o explorador de Paris sentiu-se desolado, afirmando que séculos de exploração irracional e destrutiva, tinham transformado as terras num país de ruínas e num arquipélago de males irreparáveis. Alguns dos seus períodos têm o cheiro de um responso!
Deixarei para outro artigo o que penso dizer sobre a geografia de Cabo Verde, e onde pouco mais posso adiantar que a opinião de um amador. Nisso, cabe a palavra a um Orlando Ribeiro, e este não a tem negado. Mas não sei se de 1935 para cá, com tantos progressos feitos (e já refiro dois: as chuvas artificiais e a agronomia atómica), se de 1935 para cá não se terão modificado um pouco as perspectivas que levaram aquele botânico, como levam este geógrafo, a profetizar que o mal das terras é irreparável, por estarem em via de regressão, pela erosão, pela má agricultura e pelos maus tratos.
Não se podem negar certas verdades. S. Vicente apresenta ainda paisagens lunares e alguns aspectos faziam-me lembrar, a todo o instante, as cidades bombardeadas do centro da Europa, aí por 1943. O desconforto de viver é lá muito grande. As obras camarárias parecem difíceis, e como sucede em circunstâncias semelhantes, alguns dos seus projectos são delirantes; quem ainda hoje queira ou necessite de desembarcar sofre tormentos; e se á hora do calor maior quiser um bocado de sombra, sofre desesperos. Mas esse aspecto, que de resto, as obras portuárias, já iniciadas, irão resolver em grande parte, não é o que pretendo analisar aqui. O que quero hoje é frisar que, se Augusto Chevalier soube estudar a Natureza, o homem, esse!, não foi observado, ou se o foi, não foi compreendido, O seu pensamento pode resumir-se nas suas próprias palavras, por esta forma:
«O português julga ter marcado o negro cabo-verdiano e o mestiço com uma impressão profunda. Julga ter-lhe imposto a sua religião, ter-lhe feito perder os seus costumes africanos, seu fetichismo, seus ritos, suas danças, sua magia, seus costumes livres. Tudo isso não passa de uma aparência. O Negro cabo-verdiano continua o Negro «bon enfant», que conhecemos em África. Só se transformou à superfície. Mais: o Branco e o quase-Branco que vivem à sua volta é que foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes.
«Os cabo-verdianos têm, na sua maioria, sangue português, mas não pensam em português. São mais vivos, porém menos empreendedores; a maior parte dos jovens sonha navegar e gosta da aventura, mas se se expatria facilmente, mais facilmente regressa ao país natal. Guardaram da raça negra o carácter versátil e a puerilidade. Ao contrário dos negros do Norte de África, são muitas vezes taciturnos e mornos. Esta última palavra faz até parte da língua crioula, muito diferente do português. São por vezes bastante inteligentes, mas infelizmente indolentes. Não é duvidoso que a mentalidade africana predomine.
O seu livro é, porventura, a obra sobre Cabo Verde mais conhecida nos meios científicos da Europa. Foi muito vulgarizada e é fora de dúvida que na época em que apareceu serviu muito bem os interesses económicos e comerciais da África Ocidental Francesa. Os que leram então, e os que o lêem agora, sentiram e sentem ser necessário responder-lhe, rectificando todos os juízos que estejam errados. Os homens inteligentes e responsáveis que conheci em S. Vicente juraram fazê-lo. Eu comprometi-me em levantar essa questão aqui em Lisboa e na própria Universidade de Paris, onde foi posta. E já principio a cumprir.

TERCEIRA MEDITAÇÃO

Os conceitos que sobre os cabo-verdianos foram publicados em Paris e depois postos a correr na Europa, podem resumir-se deste modo: serem pouco ou nada portugueses e pouco ou nada ocidentais; e estarem dominados por raízes africanas em cuja expressão se destacam a indolência (eufemismo com que Augusto Chevalíer quis, piedosamente, insinuar um estado de preguiça física e moral), e um complexo de inferioridade perante as doenças que têm e das quais não sofrem os brancos. Ora, todas essas ideias são francamente falsas.
Sentem-se os cabo-verdianos bem portugueses e, como já disse, toda a sua intelectualidade está voltada para o Ocidente da Europa. Certo que são portugueses da nossa comunidade e apresentam, portanto, sinais próprios e inconfundíveis. Já tenho escrito por mais de uma vez que os portugueses não são uma raça, são um grupo de homens de várias raças e de várias cores unidos por princípios morais, políticos e religiosos comuns. Eles todos, desde a orla Atlântica até á Oceânia – e neste sentido incluindo historicamente os brasileiros – é que formam aquilo que Gilberto Freire chamou «os Portugais». Neste amálgama os cabo-verdianos têm 'a sua feição própria, pois neles é possível (e quase sempre fácil) descobrir aquilo que distingue um povo de outro povo: desde a expressão poética á expressão culinária, desde o idioma aos hábitos sociais. Mas estas expressões e estes hábitos em pouco diferem dos que Keiserling ou Ortega y Gasset encontraram como diacríticos dos povos cultos do Ocidente. Basta apontar dois exemplos: a língua e a poesia.
O crioulo é uma língua românica que não realiza apenas um «falar útil»: é um idioma completo, cheio ao mesmo tempo de europeísmos e de regionalismos; rico de sons e de plasticidade. Embora seja essencialmente oral, um idioma de poupança (uma língua de economia fonética, como lhe chamou Augusto Casimiro), é maleável, fluído, e eu só não sei definir o seu valor real, primeiro porque o não entendo bem, depois 'porque não sou um especialista; quando lá estive até descobri que me era mais fácil ler uma poesia em catalão do que em crioulo. No entanto, julgo bem que ele é, como escreveu Pedro Cardoso - «Fala doce de alma escrava / [que] sabe a amor, sabe a tristeza». Nunca me causou a repugnância que Gilberto Freire disse ter sentido ao ouvi-lo.
E a essência da sua poesia é a mesma do nosso cancioneiro marítimo, ou dos cantares: de amor das nossas províncias metropolitanas.
Osório de Oliveira, que foi o escritor que primeiro e em maior grau entendeu as mornas, escreveu textualmente que elas «são o produto de uma raça, de uma terra; de um clima, e das condições de vida de um povo». «Para compreender bem a sua
sentimentalidade
acrescentou é preciso lembrarmo-nos de que os cabo-verdianos são uma raça mestiça, que a sua terra é um arquipélago, que o seu clima é o dos trópicos e que as suas condições de vida obrigam o seu povo a emigrar». Quem ler a poética de Jorge Barbosa e nela a «Carta para Manuel Bandeira», o «Emigrante» ou a «Carta para o Brasil», compreenderá logo a profunda visão com que Osório de Oliveira entendeu a alma do Arquipélago.
Como digo, eu não sei julgar cientificamente o crioulo. Deixo essa exegese aos filólogos. Mas pelo que sei e pelo que lá me ensinaram não posso aceitar os juízos depreciativos daqueles autores, nem perfilhar aquele outro em que um antropologista de Lisboa disse que ele era menos plástico do que o falar plebeu das ilhas adjacentes. Porque, ambos esses juízos são enormidades.
Que o cabo-verdiano tem, antropologicamente, raízes africanas, não há que discutir sequer; é do mais elementar conhecimento histórico. Que tais raízes são duradouras, tão pouco se pode negar. O «stock» génico dos negros é muito persistente, tão persistente que Batista Pereira o julgou poder descobrir nas civilizações de Roma e de Atenas. Mas deve ter perdido nas ilhas muito das suas possibilidades de afirmação. Como explicar de outro modo, por exemplo, que sendo a sensualidade uma das mais fortes raízes da expressão negra e sendo também uma das razões da criação artística, estejam as artes originais de Cabo Verde limitadas á poesia e ao bailado?
Já em 1854, Gobineau, o primeiro teórico da superioridade das raças arianas reconhecia que os negros possuem no mais alto grau a faculdade sensual, sem a qual nenhuma arte é possível. Muitos dos grandes críticos de arte do século dezanove, e deste século Kurt Wolff, Jean Cocteau, André Salomon e Guillaume Apollinaire assim continuaram pensando; e Daniel Kahnweile, encontra até nessa sensualidade a origem do cubismo. Ora, em Cabo Verde, a criação artística é nula ou sem significado. Não vi uma escultura, não vi uma pintura, não vi uma arte regional. Quanto ao conceito de que são indolentes, ele é tão antigo que já em 1786 o governador, José Maria Cardoso se queixava da resistência com que, por preguiça, os ilhéus abominavam inovações.
À primeira vista assim parece. Os cabo-verdianos são homens terrivelmente quietos. Eu sei que agitação não quer dizer actividade, e que um parquinsoniano pode agitar-se um dia inteiro sem sair de uma cadeira. Como é uma ilusão supor-se que os magros devam ser mais activos: dois «gordos» conheci eu Indalécio Prieto e António Ferro que foram grandes agitadores de ideias e o primeiro até de massas populares. Certo que vi homens e mulheres dançando noites inteiras. Mas também a mim me pareceu que, colectivamente, aquele povo é indolente. Mas quando sinceramente o disse ouvi um protesto geral, que não era apenas pelo preconceito de rebater uma «ofensa».
Com a sinceridade e o respeito pelo que me parecia ser a verdade, acusei de numerosas culpas a sua «indolência»: disse-lhes que ela devia ser responsabilizada pela falta de espirito associativo, pela existência de sentimentos colectivos de frustração, pelo desleixo das ruas, pelo abandono dos animais, pela sua falta de pontualidade, Sem dúvida, que muitas coisas chocam por absurdas e como aquela gente inteligente sabe que o absurdas e não se revolta contra elas nem as corrige, pode ser-se levado a pensar que o não faz por indolência. Que por indolência não haja na Biblioteca Municipal uma só obra que ajude a compreender os homens e as coisas de Cabo Verde: nem um só número da «Claridade», nem o «Chiquinho», de Baltasar Lopes, nem a poesia de Jorge Barbosa, nem os ensaios de José Osório de Oliveira, nem as reportagens de Julião Quintinha, nem o volume de Henrique Galvão. Não será também «por indolência» que na «ilha da sede», as terras escaldam, os arbustos ressecam e os hálitos queimam por falta de água, de água que existe num largo lençol duas ou três braças abaixo do solo? Não será também «por indolência» que se permite a estranha circunstância, que eu vivi, de, em batendo as trindades, o meu amigo J. Ruffié poder telegrafar para a sua mulher, que vivia em Toulouse, mas eu, da cidade portuguesa de S. Vicente, não poder telegrafar para a minha filha, que vive em Lisboa, pois o telégrafo fecha para a metrópole? Não será ainda «por indolência» que numa terra que não tem electricidade, não tem lenha, e onde deixou de haver carvão, o prato regional continue a ser a cachupa, que leva… seis horas a cozer?
Pensei assim. Em nome de todos respondeu-me Jorge Barbosa numa peça extraordinária de beleza e de emoção, deslocando para um plano económico e social o que eu queria medir por um processo psicossomático. E talvez tenha razão. Em grande parte, convenceram-me.
Quanto ao complexo de inferioridade pela existência de «doenças de negro» a questão é tão interessante e tão errada que merece toda uma meditação.

ALMERINDO LESSA

                                                                                                                 - Diário Popular -

0 comentários:

Enviar um comentário