NA HORA DI BAI
Segunda meditação biológica
sobre o homem de cabo verde
Augusto Chevalier, de quem são as ideias expostas acima, pensa igualmente que a hipótese de que as ilhas de Cabo Verde tenham feito parte da Atlântida é tão pouco verosímil como a própria
existência desse continente; que, de resto, não teria atingido tão baixa latitude.
Não se conhece nelas indústria neolítica, não se encontraram nelas utensílios
rupestres, e a hipótese de que tenham sido habitadas antes da chegada de Diogo Gomes e de António da Noli, em 1460, nunca pôde ser demonstrada. É possível que Aloísio de: Cadamosto tenha passado quatro anos antes, em 1456, pelas ilhas da Boavista e de Santiago, mas pela descrição que deixou, em 1507, não fica a certeza de que as tenha pisado. Quanto ás inscrições rupestres largamente referidas na tradição oral dos povos da Boavista, de Maio, de Santo Antão e de São Nicolau, ou nunca foram encontradas ou deixaram sempre grandes dúvidas quanto à sua natureza – como sucedeu com aquela que- o referido botânico francês descobriu em Santo Antão – e, nomeadamente, sobre a sua origem, visto os berberes, a quem se atribuem, não serem navegadores e a hipótese de haverem chegado às ilhas, em embarcações fenícias, nunca ter sido documentada. Também os dólmens parecem ser obra do acaso. Assim, pode admitir-se que nenhum humano, chegou a Cabo Verde antes de nós, ou se chegou não pôde subsistir e desapareceu sem deixar vestígio. Só quando foi possível transportar para lá a cultura dos cereais e da cana do açúcar, pôde começar a ocupação; só quando lá criámos um novo tipo de homem, pôde dar-se inicio àquela civilização que estou procurando analisar nestes artigos.
Eu não tenho a veleidade de pensar que fui o primeiro observador a interessar-se pelos problemas de conjunto do homem cabo-verdiano. Para mim quero apenas a responsabilidade de em algumas noites de Verão ter levado a inteligência de S. Vicente a discutir comigo os seus próprios problemas. Fui apenas um agitador de ideias. Ora, uma das primeiras que levantei foi a necessidade de corrigir umas quantas opiniões erradas que sobre as gentes e as terras daquele
arquipélago correm nas Universidades da Europa; e, sobretudo, as deste mesmo Augusto Chevalier,
cujo livro sobre Cabo Verde,
publicado tiro Paris, em 1935, é,
ainda hoje, o vade-mecum de todo o viajante científico que se propõe ir até às ilhas verdes. Era aquele que o meu
amigo Jacques Ruffié, professor em Toulouse e meu companheiro
de pesquisas
sero-antropológicas, levava consigo quando desembarcou.
Foi como botânico que Augusto Chevalier se interessou pelas nossas
ilhas: como botânico, ou seja, como biologista. De ai, não ter podido abstrair-se de observar as terras onde se criavam
ou desapareciam essas plantas e os homens que as comiam ou as queimavam. Correu a maior parte
delas, tirou apontamentos e deixou sobre a sua geografia observações cheias de
razão e de pertinência, embora profundamente contundentes para o nosso brio e a
nossa posição histórica. Cabo Verde ainda era naqueles anos de 1930,
em que por lá andou. um dos países mais
ignorados no campo da bio-geografia. Apesar de manter o atractivo de «a mais antiga colónia tropical do Mundo», e
de ser dotada de 'um «clima de paraíso terrestre», o explorador de Paris
sentiu-se
desolado, afirmando que séculos de exploração irracional e destrutiva, tinham
transformado
as terras num país de ruínas e num arquipélago de males irreparáveis. Alguns
dos seus períodos têm o cheiro de um responso!
Deixarei para outro artigo o que penso dizer sobre a geografia
de Cabo Verde, e onde pouco mais posso adiantar que a opinião de um amador. Nisso, cabe a
palavra a um Orlando Ribeiro, e este não a tem negado. Mas não sei se de 1935
para cá, com tantos progressos feitos (e já refiro dois: as chuvas artificiais e
a agronomia atómica), se de 1935 para cá não se terão modificado um pouco as
perspectivas que levaram aquele botânico, como levam este geógrafo, a
profetizar que o mal das terras é irreparável, por estarem em via de regressão,
pela erosão, pela má agricultura e pelos maus tratos.
Não se podem negar certas verdades. S. Vicente apresenta ainda
paisagens lunares e alguns aspectos faziam-me lembrar, a todo o instante, as
cidades
bombardeadas do centro da Europa, aí por 1943. O desconforto de viver é
lá muito grande. As obras camarárias parecem difíceis, e como sucede em circunstâncias
semelhantes, alguns dos seus
projectos são delirantes; quem ainda hoje queira ou necessite de desembarcar
sofre tormentos; e se á hora do calor maior quiser um bocado de sombra, sofre
desesperos. Mas esse aspecto, que de resto, as obras portuárias, já iniciadas, irão
resolver
em grande parte, não é o que pretendo analisar aqui. O que quero hoje é frisar que, se Augusto Chevalier soube estudar a Natureza, o homem,
esse!, não
foi observado, ou se o foi, não foi compreendido,
O seu pensamento pode resumir-se nas suas próprias palavras, por esta forma:
«O português julga ter marcado o negro cabo-verdiano e o
mestiço com uma impressão profunda. Julga ter-lhe imposto a sua religião, ter-lhe feito perder os seus costumes africanos, seu fetichismo, seus ritos, suas danças,
sua magia, seus costumes livres. Tudo isso não passa de uma aparência. O Negro
cabo-verdiano
continua
o Negro «bon
enfant», que conhecemos em África. Só se transformou à superfície. Mais: o Branco e o quase-Branco que vivem à sua
volta é que foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes.
«Os cabo-verdianos têm, na sua maioria, sangue português, mas não pensam em português. São mais vivos, porém menos empreendedores;
a maior parte dos jovens sonha navegar e gosta da aventura, mas se se expatria facilmente, mais facilmente regressa ao país natal. Guardaram da raça negra o carácter versátil e a puerilidade. Ao contrário dos negros do Norte de África, são muitas vezes taciturnos e mornos. Esta última palavra faz até parte da língua crioula, muito diferente do português. São por vezes bastante inteligentes, mas infelizmente
indolentes. Não é duvidoso que a mentalidade africana
predomine.
O seu livro é, porventura, a obra sobre Cabo Verde mais conhecida nos meios científicos da Europa. Foi muito vulgarizada e é fora de
dúvida que na época em que apareceu serviu muito bem os interesses económicos e
comerciais da África Ocidental Francesa. Os que leram então, e os que o lêem
agora, sentiram e sentem ser necessário responder-lhe, rectificando todos os juízos
que estejam errados. Os homens inteligentes e responsáveis que conheci em S. Vicente juraram
fazê-lo. Eu comprometi-me em levantar essa questão aqui em Lisboa e na própria Universidade de Paris, onde
foi posta. E já principio a cumprir.
TERCEIRA MEDITAÇÃO
Os conceitos que sobre os
cabo-verdianos foram publicados em Paris e
depois postos a correr na Europa, podem resumir-se deste modo: serem pouco ou
nada portugueses e pouco ou nada ocidentais; e estarem dominados por raízes
africanas em cuja expressão se destacam a indolência (eufemismo com que Augusto
Chevalíer quis, piedosamente, insinuar um estado de preguiça física e moral), e
um complexo de inferioridade perante as doenças que têm e das quais não sofrem
os brancos. Ora, todas essas ideias são francamente falsas.
Sentem-se os cabo-verdianos bem
portugueses e, como já disse, toda a sua intelectualidade está voltada para o Ocidente da
Europa. Certo que são portugueses da nossa comunidade e apresentam, portanto, sinais
próprios e inconfundíveis. Já tenho
escrito por mais de uma vez que os portugueses não são uma raça, são um grupo
de homens de várias raças e de várias cores unidos por princípios morais,
políticos e religiosos comuns. Eles todos, desde a orla Atlântica até á Oceânia
– e neste sentido incluindo historicamente os brasileiros – é que formam aquilo que Gilberto Freire chamou «os
Portugais». Neste amálgama os cabo-verdianos têm 'a sua feição própria, pois neles é possível (e quase sempre fácil)
descobrir aquilo que distingue um povo de outro povo: desde a expressão poética á
expressão culinária, desde o idioma aos hábitos sociais. Mas estas expressões e estes hábitos em pouco diferem dos que
Keiserling ou Ortega y Gasset encontraram como
diacríticos dos povos cultos do Ocidente. Basta apontar dois exemplos: a língua
e a poesia.
O crioulo é uma língua românica que não realiza apenas um «falar útil»: é um idioma completo, cheio ao mesmo tempo
de europeísmos e de regionalismos; rico de sons e de plasticidade. Embora seja
essencialmente oral, um idioma de poupança (uma língua de economia fonética,
como lhe chamou Augusto Casimiro), é maleável, fluído, e eu só não sei definir o seu valor real, primeiro porque o não entendo bem, depois 'porque não sou um especialista; quando lá estive até descobri que me era mais fácil ler uma poesia em catalão do que em crioulo.
No entanto, julgo bem que ele é, como escreveu Pedro Cardoso - «Fala doce de alma escrava / [que] sabe a amor, sabe a tristeza». Nunca me causou a repugnância que Gilberto Freire disse ter
sentido ao ouvi-lo.
E a essência da sua poesia é a mesma
do nosso cancioneiro marítimo, ou dos cantares: de amor das nossas províncias
metropolitanas.
Osório de Oliveira, que foi o
escritor que primeiro e em maior grau entendeu as mornas, escreveu textualmente
que elas «são o produto de uma raça, de uma terra; de um clima, e das
condições de vida de um povo». «Para compreender bem a sua
sentimentalidade – acrescentou – é preciso lembrarmo-nos de que os cabo-verdianos são uma raça mestiça, que a sua terra é um arquipélago, que o seu clima é o dos trópicos e que as suas condições de vida obrigam o seu povo a emigrar». Quem ler a poética de Jorge Barbosa e nela a «Carta para Manuel Bandeira», o «Emigrante» ou a «Carta para o Brasil», compreenderá logo a profunda visão com que Osório de Oliveira entendeu a alma do Arquipélago.
sentimentalidade – acrescentou – é preciso lembrarmo-nos de que os cabo-verdianos são uma raça mestiça, que a sua terra é um arquipélago, que o seu clima é o dos trópicos e que as suas condições de vida obrigam o seu povo a emigrar». Quem ler a poética de Jorge Barbosa e nela a «Carta para Manuel Bandeira», o «Emigrante» ou a «Carta para o Brasil», compreenderá logo a profunda visão com que Osório de Oliveira entendeu a alma do Arquipélago.
Como digo, eu não sei julgar
cientificamente o crioulo. Deixo essa exegese aos filólogos. Mas pelo que sei e
pelo que lá me ensinaram não posso aceitar os juízos depreciativos daqueles
autores, nem perfilhar aquele outro em que um antropologista de Lisboa disse
que ele era menos plástico do que o falar plebeu das ilhas adjacentes. Porque,
ambos esses juízos são enormidades.
Que o cabo-verdiano tem, antropologicamente,
raízes africanas, não há que discutir sequer; é do mais elementar conhecimento
histórico. Que tais raízes são duradouras, tão pouco se pode negar. O «stock»
génico dos negros é muito persistente, tão persistente que Batista Pereira o
julgou poder descobrir nas civilizações de Roma e de Atenas. Mas deve ter
perdido nas ilhas muito das suas possibilidades de afirmação. Como explicar de
outro modo, por exemplo, que sendo a sensualidade uma das mais fortes raízes da
expressão negra e sendo também uma das razões da criação artística, estejam as
artes originais de Cabo Verde limitadas á poesia e ao bailado?
Já em 1854, Gobineau, o primeiro
teórico da superioridade das raças arianas reconhecia que os negros possuem no
mais alto grau a faculdade sensual, sem a qual nenhuma arte é possível. Muitos
dos grandes críticos de arte do século dezanove, e deste
século
Kurt Wolff, Jean Cocteau, André Salomon e Guillaume Apollinaire assim
continuaram pensando; e Daniel Kahnweile, encontra até nessa sensualidade a
origem do cubismo. Ora, em Cabo Verde, a criação artística é nula ou sem significado. Não vi uma escultura,
não vi uma pintura, não vi uma arte regional. Quanto ao conceito de que são
indolentes, ele é tão antigo que já em 1786 o governador, José Maria Cardoso se
queixava da resistência com que, por preguiça, os ilhéus abominavam inovações.
À primeira vista assim parece. Os cabo-verdianos são
homens terrivelmente quietos. Eu sei que agitação não quer dizer actividade, e
que um parquinsoniano pode agitar-se um dia inteiro sem sair de uma cadeira.
Como é uma ilusão supor-se que os magros devam ser mais
activos: dois «gordos» conheci eu –
Indalécio Prieto e António Ferro – que foram grandes agitadores de ideias e o primeiro até
de massas populares. Certo que vi homens e mulheres dançando noites inteiras.
Mas também a mim me pareceu que, colectivamente, aquele povo é indolente. Mas
quando sinceramente o disse ouvi um protesto geral, que não era apenas pelo
preconceito de rebater uma «ofensa».
Com a sinceridade e o respeito pelo que me parecia
ser a verdade, acusei de numerosas culpas a sua «indolência»: disse-lhes que
ela devia ser responsabilizada pela falta
de espirito associativo, pela existência de sentimentos colectivos de frustração, pelo desleixo das ruas,
pelo abandono dos animais, pela sua falta de pontualidade, Sem dúvida, que muitas coisas chocam por absurdas e como aquela gente inteligente
sabe que são absurdas e não se
revolta contra elas nem as corrige, pode ser-se levado a pensar que o não faz por
indolência. Que por indolência não haja na Biblioteca Municipal uma só obra que ajude a compreender
os homens e as coisas de Cabo Verde: nem um só número da «Claridade», nem o «Chiquinho», de Baltasar Lopes, nem a poesia de
Jorge Barbosa,
nem os ensaios de José Osório de Oliveira, nem as reportagens de Julião
Quintinha, nem o volume de Henrique Galvão. Não será também «por indolência» que na «ilha da sede», as terras escaldam,
os arbustos
ressecam
e os hálitos queimam por falta de água, de água que
existe num largo lençol duas ou três braças abaixo do solo? Não será também «por indolência» que se permite a estranha circunstância, que eu vivi, de, em batendo as trindades, o meu amigo J. Ruffié poder telegrafar para a sua mulher, que vivia em Toulouse, mas eu, da cidade portuguesa de S. Vicente, não poder telegrafar para a minha filha, que vive em Lisboa, pois o telégrafo fecha para a metrópole? Não será ainda «por indolência» que numa terra que não tem electricidade, não tem lenha, e onde deixou de haver carvão, o prato regional continue a ser a cachupa, que leva… seis horas a cozer?
Pensei assim. Em nome de todos respondeu-me Jorge Barbosa
numa peça extraordinária de beleza e de emoção,
deslocando para um plano económico e social o que eu queria medir por um
processo psicossomático. E talvez tenha razão. Em grande parte, convenceram-me.
Quanto ao complexo de inferioridade pela existência de «doenças de negro» a questão é tão interessante e tão errada que merece toda uma meditação.
ALMERINDO LESSA
-
Diário Popular -
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