A língua crioula é um idioma de poupança
e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a plasticidade de um
verdadeiro idioma ou é apenas um «falar útil», bom como instrumento de
comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais?
Presidente: A língua crioula é um
idioma de poupança e de adaptação regional, com a riqueza fonética e a
plasticidade de um verdadeiro idioma ou é apenas um «falar útil», bom como
instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais? Eis o problema agora em discussão.
Baltasar Lopes: Bom. Eu suponho o
seguinte: originariamente, o núcleo primitivo da formação do crioulo devia ter
um carácter exclusivamente profissional, portanto com este carácter de falar
útil. Modernamente, não. O crioulo oferece hoje principalmente aquilo que Deschanel chamava formação, isto é, não
estagnou. Apresenta uma capacidade de enriquecimento em vários domínios, em
todos os domínios em que uma língua se pode enriquecer. Por exemplo, num dos
aspectos: o fonético. Foi Maurice Ramon
quem apontou que muita gente supõe que uma língua se enriquece pela sua
sintaxe, pelo vocabulário, quando, pelo contrário, a maior tendência de
aristocratização de uma língua é a fonética; e então nisto Cabo Verde é uma
terra ideal para um dialectólogo e para um romanista. Como todas as línguas,
temos na nossa um fundo fonético tradicional, fundo que depois é reconstruído.
É claro que hoje – e não é só hoje, a situação vem de há muito – há um contacto
bastante assíduo com a cultura europeia veiculada, ou por europeus ou – e isto
é o mais importante – por indivíduos naturais das ilhas, indivíduos ilustrados
ou pelo menos alfabetizados. De modo que se nota a influência constante da
língua mãe. E isto compreende-se porque o crioulo está numa situação diferente
da que estiveram o português e, ou qualquer língua românica com o latim. Quando
certas línguas se formaram, o latim já não era uma realidade viva, ao passo que
nós notamos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz,
sob uma influência constante da tal língua matriz. Há este tal princípio de
aristocratização que se nota por toda a parte.
Uma palavra de fundo tradicional é
transformada imediatamente na boca do povo por influência das pessoas
ilustradas e assume uma fisionomia fonética muito mais fácil do que o
português. Para isso contribuíram vários factores que não posso referir aqui
(alotropismos, formas divergentes). É rara a palavra que não assuma aqui duas
fisionomias fonéticas: a fisionomia tradicional e uma fisionomia muito próxima
do português. É claro que a tradicional caracteriza-se principalmente por dois
fenómenos fundamentais, um deles decorrente do outro: o primeiro é a atenuação
das vogais átonas, donde o encontro violento de consoantes; é então o mecanismo
de assimilação que tem na ilha de Santo Antão o seu paraíso. O foneticista que
vá à ilha de Santo Antão, e que se interesse pelos fenómenos de assimilação,
encontrará lá elementos em abundância, vitalidade na fonética, vitalidade no
léxico. Muita gente também supõe que o crioulo tem um léxico na sua maioria de
origem africana. Engana-se. Eu suponho poder falar particularmente sobre isso
porque me dei a um trabalho de Topsius
que parece, ao fim e ao cabo, que vai ser publicado: e nesse trabalho entro no
léxico.
A certa altura dei-me ao trabalho de
verificar a percentagem de termos que eu tinha a certeza de não serem de origem
portuguesa. Percentagem mínima: 3%, se tanto. E no conjunto do léxico é a mesma
coisa. É claro que quem não conheça o crioulo desnorteia-se perante as formas
fonéticas.
Todos os dias estamos a enriquecer o léxico.
Todos nós que ensinamos português no liceu verificamos que o crioulo já oferece
aos alunos imensas possibilidades expressionais. Eu já ouvi à saída de
exercícios de matemática e até de filosofia os alunos a discutirem sobre o
exercício em crioulo.
Júlio Monteiro: Eu já ouvi falarem sobre a
«mística dos cruzados».
Baltasar Lopes: É uma língua viva; viva e
com grandes possibilidades. Porque está adquirindo cada dia novos recursos
expressionais. E claro, há que atender ao seguinte: o crioulo trabalha sobre um
sistema irremediavelmente estabelecido: o sistema morfológico. Creio que o
primeiro que estabeleceu este ponto de vista foi Tarracher e mais tarde Menier,
que disseram: o que serve para definir uma língua e a sua filiação noutra é a
estrutura morfológica, mais do que a fonética e mais do que o léxico e mais do
que a sintaxe. Reduziu o sistema morfológico do português. Reduziu,
simplificando. E não fez descoberta alguma porque isto é uma fatalidade que
acompanha todas as línguas quando evoluem em domínios novos: começam sistematicamente
a simplificar o seu sistema morfológico que depois compensam com processos
periplásticos. E o crioulo apresenta esta coisa curiosa: a sua vitalidade
dá-lhe a possibilidade de responder positivamente a um problema posto em 1936
pelo Osório de Oliveira e por mim:
«será o crioulo uma língua?» É claro, não é uma língua de civilização, é uma
língua regional, com todas as características, todas as possibilidades.
Se os brasileiros que aí há bastante tempo
intentaram a tese da língua brasileira, em vez de terem a expressão idiomática
que têm, muito aproximada do português, apesar das peculiaridades de fala
brasileira, tivessem a simplificação que nós temos, a diferenciação que nós
temos, podiam perfeitamente fazer uma língua. E note-se que era uma curiosíssima
experiência, porque seria uma língua românica criada nos tempos modernos a par
do português. Quanto às possibilidades de expressão literária, suponho que
essas são pequenas.
Eu não li, mas alguém me disse que numa certa
altura se fez uma espécie de competição para saber quais eram as melhores
traduções das endeixas da «Bárbara Escrava», e que entre as melhores foram
consideradas uma do galego (o que não admira, porque, como disse Lapa, são dois
povos que andam a falar às escondidas a mesma língua) e outra do Eugénio Tavares, de facto uma esplêndida
tradução. Como é esplêndida a sua tradução da «Enjeitadinha», de João de Deus.
Tem possibilidades. Como Sr. Doutor sabe, é
mais fácil o começo de uma expressão literária em verso, em poesia, do que em
prosa. No entanto, também em prosa há um bom ensaio de prosificação do crioulo,
de Pedro Cardoso, e eu lembro-me –
não sei se você se lembra ó Henrique!
– ainda você era estudante, por volta de 1939, que me mostrou uns papéis do Virgílio Barbosa falando até das
efemérides locais e de motivos de política local. Uma maravilha! O crioulo
servindo, mas nitidamente, para isso.
É uma língua viva, não é um simples falar –
não se compara, ao que eu posso deduzir dos textos que pude conhecer, por
exemplo, com o crioulo de São Tomé; não se compara com outros falares, como os
falares da Guiana. É uma língua suficiente. Tem mais vitalidade do que o
crioulo de Macau.
Deve ser a criação românica neo-europeia de
origem portuguesa mais viva e com mais futuro, mais futuro literário. É claro
que esse futuro está condicionado por outros factores, por outras subjacências.
Mas que em si, intrinsecamente, tem condições, tem futuro, tem. Serve de língua
franca.
Suponho que quando se refere a ele como falar
útil alude a ser um instrumento de comunicação. De facto, desempenha essa
função de língua franca. O crioulo que
se fala na Guiné é parecidíssimo com o de Santiago e está cheio de termos de
vocabulário principalmente mandinga. Serve de instrumento geral de comunicação,
não só na Guiné, mas até com o indígena da Guiné francesa. Exerce lá esta
função. Saiu do seu habitat, não
está, como cá, submetido a um mecanismo de aristocratização, de nobilização, de
enriquecimento, mas conserva sempre a fidelidade das suas raízes,
principalmente no sistema gramatical, morfológico.
Almerindo Lessa: Queria dizer ao Sr. Dr. Baltasar Lopes a razão que me levou a
pôr esta questão. Eu já conhecia algumas das crónicas radiofónicas em que
contestou um ou outro pormenor da crítica de Gilberto
Freire a propósito do crioulo e tinha lido na Claridade o seu magnifico trabalho sobre «Uma experiência românica
nos trópicos». Mas eu queria provocá-lo, porque o meu juízo também fora
provocado por uma opinião inserta num estudo acerca dos termos médicos do
crioulo cabo-verdiano: «a terminologia dos filhos de Cabo Verde mostra-se mais
pobre do que o léxico similar plebeu das ilhas adjacentes».
Baltasar Lopes: Isso é que não é verdade.
Pode dizer que isso não é verdade. É como o caso de tristeosa. O vocabulário
básico do crioulo não é menos rico do que o falar básico de qualquer outro
indivíduo da metrópole. Pelo contrário. E a explicação talvez resida no
contacto que houve antigamente entre o clérigo e o iletrado. Talvez por razões
eclesiásticas. O teor de vida das ilhas era um pouco diferente, se bem que
ainda hoje exista esse contacto. Qualquer de nós é bilingue. Eu falo o crioulo
de S. Nicolau como qualquer rústico. Além disso, aparecem termos cultos na boca
do povo.
Há bastante tempo, fui a S. Nicolau.
Desembarquei no Tarrafal e foi meu companheiro de viagem um rapaz chamado
Cesário, lá do Cabeçalinho. A certa altura chegámos a um ponto chamado «os
Galegos». O lugar é um bocado escuro, um bocado soterrado, e sabe qual é o nome
que ele deu aquele ermo? «neste clipse», neste eclipse. Está a ver a imaginação
topológica, a riqueza, a fertilidade de transposição metafórica.
Além disso, ainda lá se emprega o termo no
sentido de situação difícil. Disseram-me também que em Santo Antão, para
designar uma situação difícil, em que o indivíduo está como o burro de Buridan,
se diz «cis e caris»; entre Cila Caríbdis!
O vocabulário é talvez, pelo contrário, a
nossa maior riqueza. Para a linguagem coloquial, para a linguagem de todos os
dias, o crioulo tem tudo.
Augusto Miranda: Há uma diferença. É que o
português é mais poderoso, mais enérgico e de maior influência sobre o espírito
sóbrio do crioulo.
Baltasar Lopes: É curioso. Isso faz-me
lembrar aquela explicação de Gilberto
Freyre, embora sem fundamento, sobre a sínfise prosodial, brasileira: o dá-me e o mi-dá; o brasileiro mais doce e o português mais duro, mais
zangado. São sobrevivências culturais.
In
CABO VERDE – Boletim de Propaganda e
Informação, Nº 102 – Março de 1958
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