Pelas razões aduzidas na primeira parte deste artigo, entendo
que será um erro inviabilizar, por bairrismo, irrealismo ou auréolas descabidas,
a colectividade regional – Região Noroeste (S. Antão, S. Vicente e S. Nicolau)
– que mais possibilidades de sucesso oferece no quadro do reordenamento
territorial do país. Os que rejeitam encarar essa associação parecem ignorar
que o espírito de união, de partilha e de solidariedade nunca foi uma palavra
vã nas três ilhas, como a história o comprova à saciedade. Leia-se esta
passagem do romance “Hora di Bai”, do escritor Manuel Ferreira, cujo centenário
agora se comemora: “Naquele tempo a ilha de S. Vicente era o porto de
salvamento. Empurrados do interior os povos vieram arrastando-se para o
litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de um
caldinho de peixe…”. O autor refere-se à fome que ceifou milhares de vidas em
Cabo Verde no início da década de quarenta do século passado, e ao acolhimento
que S. Vicente proporcionou às populações das ilhas vizinhas que a demandavam
em busca de uma côdea de pão.
Se a concepção
de uma identidade regional assenta em pressupostos de ordem geográfica,
demográfica, social e económica, também não é menos relevante a função da
cultura e da história como elementos catalisadores da proximidade afectiva e da
construção de laços de solidariedade. É natural que o curso do tempo dissolva
alguns registos da memória colectiva, mas é tempo de revitalizar e tonificar um
sentimento unificador entre as três ilhas em causa, em ordem à construção da
única colectividade regional com condições para suscitar inapelavelmente uma
efectiva partilha de poder entre o centro e as parcelas mais significativas do
território. Tanto mais que esta hipótese de região tem como polo mais
importante a segunda ilha e a segunda cidade mais importantes do país. Isto não
é de somenos e são os teóricos contemporâneos do fenómeno da regionalização que
afirmam a importância fundamental de um centro urbano como núcleo estrutural e
irradiador do desenvolvimento regional, graças às infra-estruturas económicas e
sociais disponíveis e ao papel de uma sociedade civil capaz de conceber e
operacionalizar os planos de desenvolvimento. É perante este requisito que se
questiona como poderão as nossas ilhas materializar unidades regionais no seu
verdadeiro significado.
Então, se é
compreensível que um projecto de regionalização se reja por uma dada realidade
concreta e à escala dos valores que integra, também é verdade que existe uma
doutrina e um conjunto de princípios dominantes que descartam versões
irrisórias de regionalização, sob pena de irrelevância e de distopia funcional.
Por exemplo, pergunta-se se existe a mínima possibilidade de ilhas como Maio,
Boavista e Brava, para não falar de todas, constituírem por si só unidades
regionais. Mais, veja-se que o projecto de lei em ponderação concebe para a
ilha de Santiago duas regiões. Compare-se agora a nossa maior ilha com as
unidades regionais do “departamento ultramarino francês”, atentando nos
respectivos dados sobre superfície e população:
Ilha | Superfície
(Km2)
|
Habitação | Regiões | ||
Santiago | 991 | 266.161 | 2 (em vista) | ||
Guadalupe | 1.628 | 404.000 | 1 | ||
Martinica | 1.100 | 401.000 | 1 | ||
Guiana | 83.485 | 250.000 | 1 | ||
Reunião | 2.519 | 834.000 | 1 | ||
Atente-se agora no polo mais extremo do contraste: ilha
Brava, 67 Km2 e 6.000 habitantes. Que este exemplo caricatural nos
abra os olhos para a necessidade de corrigir a perspectiva, se a ideia é
construir um projecto de regionalização credível e que seja via para o
relançamento económico e social das ilhas e do país.
O que está em
causa é a descentralização do poder e a desconcentração do aparelho do estado
em função de unidades regionais que o sejam de facto e não entidades
minimalistas e, por isso mesmo, exíguas nas suas capacidades endógenas e nas
suas possibilidades de sucesso. Mas o que o projecto de lei em estudo preconiza
e a sociedade civil parece aceitar como possível, porventura quedando-se na
epiderme do problema, não terá grandes possibilidades de sucesso em Cabo Verde.
Porque não é crível que Ilhas de escasso território, reduzida população, magros
recursos e poucas potencialidades económicas, reúnam condições para o
assentamento de alicerces minimamente confiáveis para a construção de um
projecto regional. Não é por acaso que Jean Labasse e outros geógrafos
conceituados afirmam que a regionalização só atingirá os objectivos por que
aspiram as populações se se conjugarem duas condições basilares: adequada
descentralização político-administrativa; disponibilidade de recursos
financeiros necessários. Mesmo tendo capacidade de decisão e uma estrutura eficaz,
a região pouco ou nada realizará se não tiver os instrumentos financeiros necessários.
Mas não se
pense que é tarefa fácil reverter o sistema concentracionário e centralizador
vigente no país, daí admitir-se que ele usará toda a sorte de artifícios e estratagemas
políticos para se manter intocável no essencial das suas prerrogativas, sendo
uma regionalização perfeitamente inócua o primeiro garante formal da sua longevidade.
O centro político, densamente concentrado, instalou-se ao longo de décadas e solidificou-se
de tal modo que é contra-natura esperar que seja ele próprio a reverter o que
se consumou em função de: população inflacionada à custa das ilhas da periferia,
clientelas políticas e de negócios instaladas, empresas e infra-estruturascriadas
numa lógica de centralidade, em suma, uma realidade hiperbólica construída por
via política e que hoje é o verdadeiro corpo e organismo de Cabo Verde. Nada disso
vai mudar por decisão voluntária dos usufrutuários do centro, a quem pouco importa
que a situação contraria flagrantemente a geografia de um país arquipelágico.
Nada mudando
de verdade, a grande fatia do Orçamento do Estado vai continuar a privilegiar a
cidade da Praia e a ilha de Santiago, cuja segunda urbe até já almeja ser a segunda
do país. Ora, mantendo-se os alicerces e as estruturas do centro, com previsão
até do seu revigoramento (estatuto especial para a Praia, integração de duas regiões
e manutenção de nove municípios), pergunta-se de onde virá o acréscimo de recursos
para alocar às regiões e de harmonia com o seu estatuto. Maior pertinência ganha
esta interrogação se o dispositivo territorial se fragmentar em ilhas-regiões.
É sob esta óptica que se tem de olhar para o projecto de lei
em “socialização”,
esperando-se
que ele não seja a última palavra na matéria. Que haja uma discussão séria e
alargada a todos os fóruns da cidadania. Que se perceba que uma regionalização
bem concebida tem de ser precedida de uma reforma profunda em toda a dimensão
estrutural do Estado, racionalizando-o e desconcentrando-o, para que as
unidades regionais sejam consequência natural de uma mudança bem gizada e não
uma excrescência no organismo estatal.
Tomar, Junho de 2017
Adriano
Miranda Lima
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