Teixeira de Sousa: Não desejo sair daqui sem
dizer algumas palavras sobre os assuntos que foram
discutidos. Quero, pela minha parte, valorizar as intervenções dos Drs. Aníbal Lopes da Silva e Daniel
Tavares. Porque, quando o Sr. Dr. Almerindo Lessa principiou a expor o problema das
constelações antigénicas correlacionadas com as
várias aptidões, não só dos povos
como dos indivíduos, surgiu ao meu espírito
um critério completamente diferente
para a explicação do homem. Indubitàvelmente que aqui
a Antropologia física está absolutamente em desacordo
com a Antropologia cultural. O carácter fixo das constelações
antigénicas briga francamente com o carácter evolucionista
da civilização dos povos,
o carácter histórico da civilização
dos povos. E eu estou convencido de que esses
próprios seroantropologistas não acreditam que os
fenómenos político-sociais estejam tão intimamente
correlacionados com as várias constituições
antigénicas encontradas, como
também não devem estar absolutamente convencidos (de resto, o Sr.
Dr. Almerindo Lessa também
não está inteiramente convencido) que haja uma relação tão estreita entre uma coisa
e outra. Indubitàvelmente
que para a explicação do homem temos de ir
para a Antropologia cultural, à evolução das civilizações, à sequência das técnicas
que os vários povos conseguiram dominar através
dos tempos. Se me permitem, passo a ler-vos uma pequena
passagem de um trabalho que publiquei em 1953 e
que citei mais tarde num outro publicado
no Boletim de Cabo Verde a
propósito da superioridade e inferioridade das raças
humanas. A minha posição mantém- se ainda a mesma no
que respeita a este problema. Eu dizia que,
se as raças humanas apresentam actualmente níveis diferentes de civilização,
isto será devido a ritmos desiguais no processamento
da técnica, e nunca a aptidões mentais mais
ou menos boas para a aquisição
da mesma técnica. Esta surgiu das relações do
homem com a natureza, na progressão
dos meios de subsistência e progredindo e evoluindo
até à etapa em que nos encontramos. A
técnica, evidentemente, só ao homem pertence e é evidentemente
o que o distingue, fundamentalmente, dos outros animais.
O negro, tido como inferior, refractário à Civilização,
é um conceito erróneo: desde que possua uma técnica, por rudimentar que ela
seja, é susceptível de progressos. Entretanto, vários factores concorreram e concorrem
para o devir desigual dos diversos grupos humanos. As condições do meio
geográfico, tais· como a temperatura, riqueza ou pobreza do
solo, a abundância ou escassez das chuvas, a continentalidade ou proximidade dos
mares, teriam influenciado grandemente a luta do homem com a Natureza, região
por região. A tais factores se foram juntando, a pouco e pouco, as relações
sociais e todas as consequências destas no domínio do Pensamento,
da Arte, da Religião, et cetera.
Mais adiante cito uma experiência, puramente
biológica, feita com a mosca Drosophila, que evidentemente não se pode reproduzir no
homem, dadas as diferenças cromossómicas – diferenças quantitativas –,
mas donde se pode concluir que os cromossomas do homem permitem centenas de triliões
de indivíduos com associações desiguais de caracteres, de onde o não se poder falar
de raças puras. Admite-se, em princípio, que a cada genótipo corresponde determinado
fenótipo e tal correspondência assegura a fixidez da espécie. A
Genética veio, portanto, entrar em franco atrito com o transformismo, sobretudo
lamarquiano – influência do meio. Duas
teorias totalmente divergentes: a da influência do meio, modificadora das
espécies, e a da hereditariedade, individualizadora das espécies através das
gerações. As experiências de Muller, das quais se obtiveram as primeiras
mutações pela acção do rádio e dos raios X, tiveram, entretanto, o condão de arrancar os
biologistas de campos diametralmente opostos, levando a pensar que entre o
genótipo e o fenótipo existiria uma margem de independência, tanto maior quanto
mais eficaz resultasse a influência do meio na modificação somática do indivíduo
(eu estou, evidentemente, na explicação biológica). Lyssenko, o mago da Genética aplicada, conseguiu com
a sua técnica de vernalização, fazer germinar o trigo mais cedo do que o
costume, sendo oportuníssimo notar que este carácter adquirido se tornou
hereditário: é
a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos
...
Almerindo Lessa: Desculpe-me
uma interrupção.
Teixeira de Sousa: Que é uma heresia?
Almerindo Lessa: Não, é que Lyssenko
caiu em «depuração científica».
Teixeira de Sousa: (já respondo) …transmissão hereditária que
é uma ponte de ligação entre o lamarquismo e a Genética. Muller, transportando o problema para a
espécie homem, ousou a hipótese de que os genótipos humanos socialmente
determinados teriam consequentemente modificado os próprios genótipos. Marcel Prenant afirma que, entre os
diversos fenótipos que podem dar o mesmo genótipo humano, a margem é maior
ainda no
domínio psíquico do que no mundo físico e conclui que quanto mais o homem evolui e quanto mais ele toma consciência de si mais os traços da hereditariedade animal se apagam.
domínio psíquico do que no mundo físico e conclui que quanto mais o homem evolui e quanto mais ele toma consciência de si mais os traços da hereditariedade animal se apagam.
Se, por um lado, certos aspectos da
Biologia, ou certas explicações puramente biológicas, podem dar por resultado o
conceito de imutabilidade na evolução dos povos ou dos indivíduos, por outro
lado, eu acredito que o próprio genótipo possa até certo ponto ser influenciado
pelo meio, e é nesse campo que trabalhou Lyssenko,
cuja teoria, rejeitada não há muitos anos, foi novamente reabilitada (o que
talvez o Sr. Dr. Almerindo Lessa não saiba),
por experiências de outros investigadores da Genética. Penso que a explicação
do homem, do seu complexo psicomental, não pode por forma alguma basear-se num
ou noutro aspecto da Biologia pura. Quanto à mestiçagem e à troca
ou sequência de aptidões através da História, inclusive com a imigração dos povos,
as conquistas, a dispersão dos núcleos de Civilização pelo mundo, eu tenho a
impressão de que os antropossociologistas americanos conseguiram dar uma explicação
satisfatória a respeito do assunto. Numa conferência feita há dois anos no
Porto, sobre Cabo Verde e a sua gente, fiz uma referência sobre a
transculturação, problema que não deve ser realmente esquecido quando pretendemos
explicar o fenómeno da mestiçagem ou encontro das várias civilizações ou dos
vários povos.
Os antropossociologistas norte e
sul-americanos van Boas, Lescowicz, Gilberto Freire, Artur
Ramos consideram que em todos os casos de contacto prolongado entre
civilizações heterogéneas se verifica um dos três seguintes resultados:
primeiro, a aceitação, quando a nova Civilização é aceite e a herança cultural mais
antiga se perde ou cai no ocaso ou esquecimento; segundo, a adaptação, quando,
após reconciliação dos conflitos, surge uma combinação harmoniosa, como que um
autêntico mosaico de culturas; terceiro, finalmente, a reacção, quando as
culturas originais se rebelam em incorporar os valores estranhos recíprocos.
Através da milenária história da Humanidade registam-se numerosos exemplos
de transculturação em todas as suas modalidades, mercê dos movimentos
demográficos que as conquistas e expansões económicas ocasionaram. De tal sorte
que impossível é hoje falarmos de culturas puras, visto não haver povo algum
que não tenha sofrido a influência de civilizações estranhas. Fenómeno, por consequência, presente em quase todos os continentes, quando
muito mais ou menos dramático, aqui e além. Digo dramático porque, seja qual
for a resultante das forças em contacto, indubitàvelmente numa primeira fase instala-se
uma desorganização, a que se segue depois um período de reorganização que
culmina ou não na estabilidade social e psicológica. Felizes os grupos humanos
que atingem esse equilíbrio estável e bem hajam os povos que facilitam essa
mesma estabilidade. Relanceando a vista pelos períodos mais recentes da
História, quer-me parecer que nenhum povo sofreu mais do que o povo africano as
consequências do contacto com culturas heterogéneas, portadoras da triste
mensagem da escravidão, que tanto viria a desorganizar as estruturas psicossociais
do continente africano. Durante perto de quatro séculos foi aquele continente
teatro de uma das maiores ambições humanas de que reza a História. Dessa fase
de tamanha desumanidade em que se ocuparam tanto tempo alguns países
civilizados resta-nos a nós, os Portugueses, a consolação de não só não termos
sido os piores, como de havermos sido os primeiros
a decretar a abolição da escravatura dos nossos domínios. O negro não sofreu
apenas no seu continente: foi também arrastado para outras paragens onde o
cativeiro lhe foi mais penoso ainda, desenraizado do seu habitat e
dos seus padrões culturais. Vergou o dorso nas plantações de algodão e do
tabaco dos estados meridionais da América do Norte, suou e verteu lágrimas nas
plantações de cana das Américas, Central e do Sul, sofreu os prejuízos da
discriminação racial, perdendo a sua personalidade em contacto com os grupos
dominantes que tão-pouco o aceitaram no seu seio. Se nós, os Portugueses,
também tínhamos de participar nos acontecimentos da época, todavia as coisas
nunca se passaram entre nós como em outras latitudes. Na nossa História de
Colonização, quer em África, quer na América ou na Oceânia, predominou a adaptação,
embora alguns casos se tenham registado de reacção. Estes conceitos de
transculturação podem explicar muita coisa que os biologistas puros procuram em
vão discernir e elucidar.
Ainda sob o ponto de vista da possível
influência do meio sobre o genótipo, eu fiz muito recentemente em Marselha uma intervenção
em que afirmei que até certo ponto a alimentação deveria influir (eu
punha uma hipótese, e não fazia uma afirmação) sobre o próprio genótipo. E apontei
alguns exemplos, aqui de Cabo Verde, de degenerescências observadas no reino
animal e no reino vegetal, como, por exemplo, o facto, de observação
corrente, de certas espécies, como as melancias importadas da Europa, que ao
fim de algumas gerações se tornam muito mais pequenas, ou as vacas importadas
dos Estados Unidos, que chegaram aqui a dar 16 e 17 litros de leite e que ao
fim de algumas gerações, logo a partir da segunda, sofreram uma inferiorização
por via da má qualidade do pasto. Responderam-me que isso nada tinha que ver com
o genótipo, que era apenas uma modificação do fenótipo e até um veterinário que
trabalha em Madagáscar me fez o reparo de que
também lá observara um facto semelhante nos porcos da Europa, que ao fim de
algumas gerações diminuíram de estatura e baixaram o seu rendimento económico,
mas que esses mesmos porcos, retransplantados para o meio primitivo,
readquiriam ao fim de algumas gerações os mesmos fenótipos anteriores. Não pude
deixar de concordar até certo ponto, mas tive a felicidade de nesse mesmo dia
ler um trabalho de uma cientista portuguesa, a mulher do nosso colega Valadares, que trabalha no Instituto de
Nutrição, dirigido em Paris pelo Prof. Jacob,
onde expõe que, dando uma sobrecarga de aminoácidos e de vitaminas à mosca
Drosophila,
conseguiu mutações que consistiam na aquisição de manchas
e nervuras especiais nas asas e que se transmitiram depois a várias gerações em
moscas não postas já nas condições da primeira mosca, mas sim nas condições
habituais. Outro argumento que apresentei foi o das degenerescências que se
observam nos filhos dos alcoólicos e que são também de natureza nutricional, em
virtude de ser o álcool um antialimento que impede a absorção ou a eficácia de
certas vitaminas e de certos aminoácidos.
De forma que, de todos estes
argumentos, se não se conclui a inutilidade total da Biologia na explicação do
Homem, alcança-se, porém, uma posição talvez mais prudente. Ela pode contribuir
para a explicação do Homem no seu todo psicossomático, mas a explicação, por
enquanto, mais perfeita é sem dúvida dada pela Antropologia cultural.
Almerindo Lessa: Vou responder ao meu amigo Teixeira de
Sousa. Antes de mais nada, eu não sou um «biologista puro». A prova é que me
esforcei ao longo desta exposição em falar constantemente
em documentos de aspecto cultural que me ajudassem a compreender o Homem, e em
especial o que estava em discussão, que era o Homem cabo-verdiano. Nenhum
estudioso da Antropologia pode desinteressar-se dos aspectos culturais dos
povos.
Há, no entanto, dois ou
três princípios sobre os quais temos de assentar, porque são princípios
irremovíveis. Não há nenhum homem de ciência moderna, ligado ao estudo das
raças, que aceite a Antropologia cultural como base nuclear de trabalho. E não há,
por uma razão simples: porque a Antropologia cultural baseia-se em
conhecimentos que não são hereditários, que não são, portanto, passados de
geração em geração por um processo que os torne necessàriamente reconhecíveis
na geração seguinte. Isso conduz a um campo de variabilidade tal que não
permite uma sistemática de estudo.
Assim, se a Antropologia
cultural é essencial para conhecer o Homem, não pode servir para avaliar uma
raça neste sentido de medição biológica em que estamos a trabalhar.
Há aí um problema
importante a tratar: o que é uma constituição bioquímica e se essa constituição
é influenciável, em que medida, de que forma e até que grau. Eu, no estado
actual dos meus conhecimentos, posso admitir que a Antropologia cultural seja
essencial para compreender o Homem num determinado momento social, isto é, fixado
no tempo, mas não que sirva para avaliar as suas origens, para avaliar as suas
raízes genéticas e para as marcar em comparação com outras: porque, se tais
caracteres não forem transmissíveis, podem acabar na geração seguinte e aquele
conceito, aquele
esquema de definição que se deu para aquela raça, acabou. Se nós arrumarmos
este problema poderemos ir para o resto da discussão. Evidentemente que a
constituição bioquímica em si mesma é influenciável, até dentro do campo que eu tenho estado a tratar.
O organismo é cego, diz
o meu amigo Ruffié, e talvez tenha razão. O
organismo é cego. As nossas reacções, aquilo que nós chamamos «defesa», como a
elaboração de um anticorpo contra uma doença microbiana, tanto pode terminar
num acto de cura como num acto mortal, se essa resposta for desregrada. Não há documentos
que demonstrem de uma forma irrefutável ser possível influenciar a nossa
constituição cromossómica[1]
Além disso,
é preciso não deduzir com facilidade para o homem aquilo que se pode conceber
no animal. Esta foi a campanha de uma vida inteira de René Leriche e
ouvi numerosas vezes a Oscar Ivanissevich
que na Medicina moderna havia homem de menos e cobaio demais. E é
verdade. A maior parte desses trabalhos não correspondem nas suas condições
experimentais. Para este caso, os trabalhos mais importantes foram os de Mitchourine e de Lyssenko, apresentados por este último no Congresso Russo de
Agronomia[2] e neles se
afirmava (e aí se criou o cisma genético russo) que o homem podia influenciar,
de fora para dentro, a sua herança. O problema foi de tal maneira espantoso que
durante cinco anos os principais laboratórios de Genética da Europa e da América
trabalharam activamente no seu contrôle.
Foi demonstrado que ou não havia
uma base científica incontestada ou se tratava de uma confusão entre cromogenes
e plasmogenes. Na apresentação daquele relatório, então largamente discutido,
foi até pedida a proibição de em qualquer Universidade russa se ensinar genética
mendeliana (contra o que, lá mesmo, alguns professores se levantaram, em nome
da independência científica e da liberdade de pensamento; mas foram demitidos,
ao que parece), o que, a meu ver, o tornou grandemente suspeito, apesar dos
sólidos trabalhos apresentados. Quando um homem de ciência toma uma atitude
destas deixou de ser um homem de ciência, qualquer que seja o seu campo de
trabalho e o país – a Abissínia ou a Bessarábia – onde se manifeste.
Mas, à parte isto, ficam os problemas
concretos onde podemos discutir os dois. É evidente
que aparecem mutações, até no homem: são as mutações selvagens, que entram a
seguir a funcionar como características de fenótipos. É o que se
verifica em certas doenças, que ficam hereditárias. Também podem ser geradas
pelas radiações atómicas mas até hoje sempre se manifestaram patológicas ou
mortais. Também se conhecem mutações não patológicas «à vista»,
como o nascimento de um filho NN de pais MM X MM, mas são tão raras que não têm significação nem, por exemplo, aceitação jurídica
para fins médico-legais. É evidente que
tanto os fenótipos como os genótipos.são
muitos. Contam-se por milhares no campo dos
grupos sanguíneos. A constituição bioquímica é o que podemos chamar uma fatalidade.
Um indivíduo nasce com ela e com ela morre. O que eu creio que é
imprescindível fazer-se é raciocinar por etapas: ou raciocinar no campo da
Biologia ou raciocinar no campo da Cultura. Ponderar sobre as duas ao mesmo tempo
é impossível. É necessário o argumento cultural para compreender
um certo número de problemas. Eu serei o último homem a negar-se a aceitar
um aspecto de estudo cultural sobre o Homem ou os outros homens. De modo que a
nossa única discordância – e essa é irremovível, pois são dois pontos
de partida – é aceitarmos se é possível criar ou não, voluntàriamente
e a nosso gosto, uma «mutação útil». Por mim, não creio. Há ainda uma coisa contra
a qual também queria reagir: aqueles apóstrofes com que se lamenta das
violações que o povo negro tem sofrido através da História dos seus contactos
com os povos brancos. As violências morais fazem parte de todas as Histórias e
de todos os povos. Eu não conheço povo negro que tenha sofrido tanto como os
povos da Europa, há anos atrás. Não há nenhuma história africana que possa
registar urna violação tão forte e tão intensa (até porque o nível de sensibilidade
intelectual era mais elevado) como a que sofreram certos povos brancos. Isso são
fatalidades históricas. De modo que, em resumo: eu reconheço
inteiramente a importância dos trabalhos culturais em Antropologia, mas não
servem, a meu ver, para um estudo de Biologia comparada, porque os seus dados não
têm um ar permanente, porque não dependem de um processo cromossómico, porque
são influenciáveis de fora para dentro: sofrem a influência da perístase. Registam
fenómenos que de um momento para o outro podem desaparecer e que um novo observador
já não encontrará numa fase seguinte de estudo. Ao passo que, se não houver um
cataclismo atómico, nem houver (como está agora a verificar-se
em Cabo Verde com a importação de genes de S. Tomé) um apport
de novas raízes, as raízes genéticas ficam sempre
fundamentais e as suas características podem ser reencontradas por qualquer observador
daqui a um século, ao passo que as actuais características culturais já não
existirão. É esta a única objecção séria que eu oponho à
importância dos valores culturais na Antropologia das raças. Por isso até os
separei na organização da nossa Agenda.
Fim da 1ª Reunião
0 comentários:
Enviar um comentário