Sendo a sensualidade uma das razões da
criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte original ou
ela se encontre limitada à poesia e ao bailado? Ou existe mesmo uma arte
original em estado de hibernação?
Presidente: É conveniente passarmos à
discussão do segundo ponto proposto: «Sendo
a sensualidade uma das razões da criação artística, como explicar que falte em
Cabo Verde uma arte original ou ela se encontre limitada à poesia e ao bailado?
Ou existe mesmo uma arte original em estado de hibernação?»
Baltasar Lopes: Eu deduzo da redacção
desta alínea que o Sr. Dr. Lessa estabelece uma correlação positiva entre a
sensualidade e a criação artística, não é? Portanto, suponho que considera a
sensualidade como um dos traços do cabo-verdiano, não é isso? E esse traço por
certo, de origem africana. No meu francês das antologias, lembro-me de ter lido
que, contrariamente ao que muita gente supõe, o africano não é portador de uma
sexualidade acentuada. Lembro-me até que Gilberto Freire, na Casa Grande e
Senzala, fala das relações entre o português e a ameríndia e diz que foram duas
sexualidades exaltadas que se encontraram em presença, do lado do português e
do lado da ameríndia. E cita até um depoimento de Francisco Adolfo Varnhagen que se referia à gula com que as
ameríndias se entregavam ao português levadas por preferência de ordem
priápica, encontrando com ele satisfações que não encontravam no ameríndio. É
claro que eu suponho que isto tinha a sua explicação porque o homem levava uma
vida mais activa de guerra, de caça, de pesca, contrariamente aos lazeres da
mulher. E também li que esta é uma das razões que levaram alguns etnógrafos e
antropologistas a atribuir esta predominância sexual nas danças, não só
africanas mas ameríndias; tais danças teriam um carácter orgiástico e sexual.
Ora eu lembro-me de que um dos autores que melhor trataram o assunto foi Croley num livro de 1929, e também Havelock Ellis, que estabelece, pelo
contrário, uma correlação negativa. Diz que estas danças, em vez de serem
reveladoras de um carácter sexual intenso, são, pelo contrário, expedientes
compensatórios. Isto é: procuram nas danças a excitação que o europeu encontra
mais ou menos a frio. Ora eu gostaria que o Sr. Dr. Almerindo Lessa me dissesse se acha que a dança da Ribeira
da Julião, a que assistiu, revela uma sexualidade exaltada da parte do
cabo-verdiano; e se estas informações que eu estou dando para a mesa-redonda,
incluindo a opinião de Croley de
que a sexualidade se exalta com a civilização, estão desactualizadas? Isto é
uma premissa inicial, sobre a sexualidade, para estabelecer uma correlação com
a criação artística. E terá verificado quaisquer outros factores?
Almerinda Lessa: O problema de sensualidade
fraca do africano tem uma explicação puramente fisiológica. A intensidade
sexual física de um negro, por exemplo de um banto, é inferior a de um branco.
Há uma falta de sincronismo no comércio sexual, o que cria uma insatisfação,
que pode levar à inibição. Creio que a dança, ao contrário do que pensa H. Ellis, que é, na verdade, a primeira
autoridade moderna nos estudos de psicologia sexual, representa um expediente
ou uma sublimação; ou um acto preliminar de excitação compensatória dessa
dessincronização. Eu encontro que, na actividade paralela à vida sexual, a
dança e a música que eu vi e ouvi na Ribeira Julião – o «cola São João» – são,
nitidamente, atitudes eróticas preliminares de conquista, de posse.
Baltasar Lopes: De conquista sem ideia de
compensação?
Almerindo Lessa: O que é ideia de
compensação?
Baltasar Lopes: Compensar justamente o
desfasamento.
Almerindo Lessa: Exactamente. Preparatório
para diminuir o desfasamento e aproximar a cronologia do amor. O indivíduo
dilui-se na dança. O negro não tem as possibilidades de outros povos em
idênticas circunstâncias. Um dos povos mais evoluídos que eu conheço, em
contacto com todas as excitações de natureza social – que é o suíço – tem um
comportamento físico sexual o mais próximo possível dos negros bantos e que
sublima com o desporto. A fase de desfasamento entre o homem e a mulher da
Suíça alemã é tão grande, se não for maior, do que a fase de desfasamento que
existe em povos do interior de África. Pelo que a resposta à premissa do Dr Baltasar Lopes, com a exactidão que
pretende, é muito difícil, porque, depois das duas últimas guerras foram
introduzidos elementos de tal maneira perturbadores em todas as manifestações
de natureza sexual que temos de rever todos os dados anteriores. Por exemplo,
uma das coisas que me surpreende é a indiferença, ou a coragem (se quiserem que
eu diga assim), com que percebo que uma menina em Cabo Verde está disposta a
arrostar a circunstância de ser uma menina-mãe.
Baltasar Lopes: Suponho que é mais de
carácter moral.
Júlio Monteiro: Eu opto para uma
explicação biológica.
Almerindo Lessa: Isto serve para demonstrar
que no campo da Sociologia surgem a todo o momento situações que nos obrigam a
rever premissas anteriores. Eu penso que a sensualidade que não pode
realizar-se por motivos sociais ou fisiológicos tem de ser sublimada. E que uma
das formas de sublimação pode ser criação artística. De outra forma conduzirá a
situações patológicas.
Baltasar Lopes: É um problema que fica em
suspenso.
Almerindo Lessa: Assim o creio.
Daniel Tavares: Referiu-se ao bailado da
Ribeira de Julião: cola S. João. A palavra está mal empregada. O metropolitano,
desconhecendo a origem da palavra e da dança, chama-lhe cola-cola: da ideia de
colar. Colar S. João, como colar tal, tal, tal, é falar em voz alta. Colar
isto, colar aquilo… É trazida de Santo Antão. O povo dança falando.
Almerindo Lessa: Mas o acto da dança,
aquilo que nós observamos, o movimento, o caminhar de um corpo contra outro
corpo, é nitidamente uma aproximação carnal.
Daniel Tavares: De acordo. Mas é uma
importação nítida de Portugal, da dança do fado e do ritmo da guitarra. E esta
dança tem uma tal violência que me não parece que seja sensualidade. É verdade
que o cabo-verdiano terá uma sexualidade idêntica à dos outros povos, mas
parece-me inábil para falar a uma mulher. É claro que o europeu que vem de fora
há-de estranhar o interesse da cabo-verdiana por ele. Compreende-se. Há cá um
rifão popular que diz: «quem tiver paciência acaba por ter um filho branco».
Ter um filho branco é a expressão máxima de tal aristocratização. É a sua
máxima aspiração e esse desejo de ter um filho «aristocrata» pode enganar o
indivíduo que cá aparecer. Não que, de facto, a cabo-verdiana seja mais
sensível do que a europeia. Quanto à criação artística, nós não temos nada que
nos possa levar à criação artística. Há uma arte rudimentar. Há pouco o Dr. Gonçalves falava do tecelão antigo.
Ainda conheci vários e bons. Um ganhou um prémio na Exposição de Paris. Mas não
há escolas de arte aqui em Cabo Verde. Nunca houve. Agora é que começamos a ter
uma professora no liceu.
Júlio Monteiro: Eu queria pôr à
consideração da Mesa, e muito especialmente à apreciação do Dr. Lessa, dois
pontos ainda relacionados com a discussão e sobre os quais eu tenho uma opinião
em desacordo com a do Sr. Dr. Baltasar
Lopes, que falou na falta de sexualidade forte da parte do
cabo-verdiano…
Baltasar Lopes: Não. Eu não falei na falta
de sexualidade. Eu pus apenas uma dúvida. Visto que se tratava de uma premissa,
pedi ao Sr. Dr. Lessa o favor de
me esclarecer se o facto de nós termos raízes africanas significava ipso facto a existência de uma
sexualidade. Eu sei lá se temos ou não temos!
Júlio Monteiro: Muito bem. Sobre as nossas
possibilidades sexuais masculinas…
Baltasar Lopes: As nossas, não!
Júlio Monteiro: O Dr. Lessa referiu à facilidade com que lhe
disseram que a menina de S. Vicente está disposta a ser menina-mãe e afirmou
que se tratava talvez de um problema de ordem moral. Permito-me discordar
desses dois pontos. Pelas funções que exerço, contacto de perto com a nossa
natalidade e posso dizer-lhes que pude verificar, e isso me penaliza imenso,
que grande número de crianças nascidas em S. Vicente são filhos ilegítimos e
desses a quase totalidade é constituída por filhos de pais incógnitos. Disso
pode, à primeira vista, parecer que a mulher de S. Vicente se entrega com muita
facilidade e que, de facto, há da parte da menina uma quebra moral que lhe
permita ser menina-mãe com igual facilidade. Eu suponho que o problema, visto
assim, será visto de uma forma primária. E penso assim pela seguinte razão:
volto a lembrar que estas ilhas eram desertas; e que a sua população está
sujeita a crises cíclicas e que estas crises destroem grande parte da
população. Ora o que é que sucede, em meu entender? Sucede que a natureza
defende-se, cada vez que é atacada. Não será a natureza a defender-se
promovendo tal reprodução para manter viva e sempre presente a espécie humana
nestas ilhas? A mulher cabo-verdiana não é tão fácil como parece. Há ilhas em
que a lactação tem um período de anos, durante os quais a mulher não tem
contacto sexual com o homem. Eu não posso considerar que mulheres com este
temperamento sejam mulheres desordenadas no ponto de vista sexual ou moral. O
cabo-verdiano, sim. Muda de mulher para mulher, pela facilidade do número (há
mais mulheres do que homens) e porque ainda está preso a uma raiz maléfica do
passado – a escravatura. Mas eu suponho que o fará ainda por uma imposição que
está fora dele, por uma lei biológica. Pedia ao Sr. Dr. Lessa que pensasse sobre este problema.
Almerindo Lessa: Em primeiro lugar, queria
frisar que não levantei por forma alguma o problema da desonestidade da mulher
cabo-verdiana. Isso posto de parte, direi ao Sr. Dr. Júlio Monteiro que é, na verdade, uma lei geral de Biologia
que sempre que há uma hecatombe ou uma queda no número de indivíduos de
qualquer região há em seguida um aumento de natalidade. Não se conseguiu ainda
encontrar uma explicação fisiológica, mas é um facto histórico que depois de
todas as guerras aumenta a natalidade masculina. O que também se deve verificar
em Cabo Verde – as fomes são como as guerras – visto que estas ilhas têm um dos
maiores índices de masculinidade conhecidos. Não temos para isso uma
explicação, a não ser a explicação poética de ser a natureza-mãe procurando
corrigir…
Daniel Tavares: Quando nas outras ilhas,
por exemplo, em Santo Antão, qualquer pessoa fracassa (a mulher que dá em
droga, o homem que se comporta mal, et
cetera) procura-se por todas as formas deitá-la para fora, mandá-la para S.
Vicente. Não se pode, portanto, fazer uma ideia do cabo-verdiano pelo que se vê
em S. Vicente.
Almerindo Lessa: É uma lei geral que se
verifica em todos os grandes portos.
Daniel Tavares: Além disso, nas casas de
S. Vicente (eu sei isso como médico) encontra-se num quarto, deitadas lado a
lado, onze, catorze e mais pessoas em promiscuidade: pais, filhos, parentes.
Portanto: as péssimas condições económicas, a superpovoação de S. Vicente e a
população que vem expulsa das outras ilhas explicam certos factos.
Almerindo Lessa: É necessário introduzir
nesse raciocínio mais um factor. Na cidade do Porto, que eu conheço bem – é a minha
terra – existem milhares de casas onde a situação de promiscuidade é
semelhante, e lá o número de meninas mães é muito mais pequeno, creio eu. Há
duas razões, a meu ver: uma, é que é muito mais fácil o abortamento numa grande
cidade europeia do que aqui em S. Vicente; a outra, que volto a pressentir, é
haver lá, possivelmente, uma maior resistência moral em receber em sociedade
uma menina-mãe do que aqui em S. Vicente onde verifico um ambiente mais
compreensivo que possivelmente lhe cria uma maior facilidade. Quanto ao resto,
quanto à possibilidade de uma rapariga cair, aqui ou em qualquer grande porto
de mar, afigura-se-me igual.
António Gonçalves: Eu creio que nesta
pergunta há uma questão concreta acerca de arte e nós afastamo-nos
lamentavelmente dela, para discutirmos a mulher cabo-verdiana e os seus
problemas. Eu tenho a impressão de que o que vale a pena discutir é aquela
pergunta: Sendo a sensualidade uma das
razões da criação artística, como explicar que falte em Cabo Verde uma arte
original?
Tenho a impressão de que a pergunta restringe
efectivamente as origens da Arte à sensualidade. Assim…
Almerindo Lessa: Foi uma das razões. Porque
as outras admito eu que existem.
Baltasar Lopes: Eu até falei numa
correlação.
António Gonçalves: Em primeiro lugar,
é indispensável discutir-se que espécie de sensualidade. Nas raízes da origem
da Arte deverá existir essa sensualidade, digamos orgânica. Agora para que ela
se torne origem da Arte, é indispensável promover sublimação. Há o artista
casto, eu creio mesmo que há doutrinas várias a esse respeito, mas, por via de
regra, o grande artista foge às vicissitudes do amor. Estou a lembrar-me de uma
conferência de Le Vigier, que ouvi
na Faculdade de Letras, onde dizia que De
La Croix fugia do amor como o diabo da cruz.
Baltasar Lopes: Uma coisa parecida com o
que Gosset chamaria ascese
artística.
António Gonçalves: Portanto esta
sensualidade é uma sensualidade artística. O que há de inconveniente nestas
perguntas é que são um conjunto de problemas sobre os quais nós temos caminhado
um pouco no vácuo.
Não se têm precisado os termos das perguntas
que o Sr. Dr. Almerindo Lessa põe.
Almerindo Lessa: Eu volto a esclarecer,
exactamente, qual foi a raiz da minha pergunta. Das leituras, e de algum
convívio que tenho com os povos africanos, eu sei que os críticos da escultura
e da pintura estão desde 1912, particularmente interessados em justificar que
existe uma raiz de sensualidade sexual na criação da Arte Negra. Já o disse
atrás. Sendo assim, existindo uma raiz afra na população cabo-verdiana e não
tendo eu encontrado aqui uma arte regional popular, atrevi-me a perguntar como,
existindo tal raiz, não existe também uma criação artística daquele género?
António Gonçalves:
Incontestavelmente as aparências do cabo-verdiano são de um ente sensual.
Poderá ser que esta sensualidade provenha de uma certa indisciplina social.
Agora falta-lhe realmente essa arte regional. Talvez tenha intervindo no
acentuamento do aspecto da sensualidade do bailado cabo-verdiano a ociosidade.
Baltasar Lopes: Não me parece isso.
Numa morna, em dois pares colados, há mais sensibilidade do que sexualidade.
António Gonçalves: Há! Há! Bem, o
melhor é ficarmos nesta questão: o cabo-verdiano, pelo menos aparentemente, é
sensual, e, todavia, não apresenta esta criação artística. Procura-se onde é
que está a origem da ausência desta Arte. É muito natural que não exista
imaginação capaz de a elaborar, por uma falta de convívio com a Natureza, que
proveria talvez o aspecto ascético, da aridez, da sua paisagem. Uma paisagem
que efectivamente prende a atenção de alguns raffinés (certos estrangeiros que aqui vêm ficam encantados com o
jogo das linhas da paisagem cabo-verdiana), mas não desperta, efectivamente, a
imaginação do nosso homem.
Baltasar Lopes: Seria curioso,
talvez, estabelecer um paralelismo entre as manifestações de arte popular de
Cabo Verde com as de certas regiões da África negra ou, por exemplo, do
Alentejo, cuja paisagem geográfica é parecida.
António Gonçalves: Para que a
sensibilidade se transforme em Arte é necessário que seja profunda. E neste
ponto, creio que o cabo-verdiano peca. A sua sensibilidade é muitas vezes exuberante,
mas fácil e superficial; é um instável na sua sensibilidade. E dela provem uma
certa falta de criação artística. É claro, que estamos apenas a apresentar
sugestões. Porque uma das características da mentalidade cabo-verdiana é que
está no princípio. Sòmente agora começa a tomar consciência de si própria. A
análise do problema é ainda incompleta. Mas ficam as sugestões.
Eu tenho a impressão de que o
cabo-verdiano não lhe falta o sentido do mistério (pelo menos aparentemente);
tem o sentido da Arte, do mistério, do culto, daquilo que tem de procurar atrás
das formas. E tem, efectivamente, sensibilidade e o dom de realizar formas.
Algumas indústrias populares revelam uma habilidade manual extraordinária.
Basta que alguém lhe apresente um modelo, que ele imita o modelo. Tem o sentido
de formas do artista, tem a mão do artista.
Augusto Miranda: Eu não acredito.
Somos incultos. Precisamos de cultura.
Baltasar Lopes: É imaturidade.
António Gonçalves:Do outro lado uma
natureza que o não leva às formas artísticas e uma sensibilidade instável e
superficial e com apenas cem anos de evolução.
Baltasar Lopes: E isso é que é
preciso ver-se. Note-se que 4 ou 5 séculos que nós temos é pouco, é nada. É o
caso que acontece com o Brasil, que é um país novo, apesar de ter 4 séculos.
Almerindo Lessa: Um país em
puberdade social.
Baltasar Lopes: Absolutamente. E é
uma das razões. Podemos acrescentar um pormenor. Dentro das nossas
possibilidades de literatura, só recentemente surgiram as hipóteses para o
assentamento de uma literatura cabo-verdiana.
In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 100 – Janeiro de 1958
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