Após a “Mesa-Redonda Sobre o Homem Cabo-verdiano”, o Dr.
Almerindo Lessa, seu promotor, publicou já em Lisboa, e à guisa de conclusões, 3
artigos no “Diário Popular” a que intitulou “Na Hora di Bai − Meditação Biológica
Sobre o Homem de Cabo Verde” que também aqui se publicam com vista a
complementar o trabalho.
NA HORA DI BAI
Primeira meditação biológica
sobre o homem de cabo verde
Em 1953 foram publicados dois livros fundamentais para a compreensão da
cultura ocidental e a interpretação das culturas dos homens de cor. O primeiro
editado, conjuntamente, pelos governos de cinco países: da França, da
Inglaterra, e das três nações da Benelux, é o
chamado «manifesto de Bruxelas» e constitui, além de um ideário, a primeira
tentativa séria para uma pedagogia da Europa, numa didáctica supranacional. O
segundo, publicado pela U. N. E. S.C. O. intitula-se «A originalidade das
culturas» e é subscrito, entre outros, por dois brasileiros − Sérgio Buarque de
Hollanda e Castro Leal −, é um ensaio
sobre a diversidade e o valor daquelas que neste momento afloram ou refloram em
territórios que se consideravam culturalmente esgotados ou improdutivos. É à luz das doutrinas desses dois livros que
me proponho meditar sobre a cultura e o homem de Cabo Verde.
A história do arquipélago começa naquela manhã de Maio de 1460,
precisamente dia um, em que Diogo Gomes
e António da Noli, ao regressarem de
Zara para Lisboa, viram, dois dias e uma noite depois, algumas ilhas
desconhecidas e numa, delas − que chamaram de Santiago − lançaram ferro e
desceram. Vinte e quatro meses depois todas estavam descobertas, e logo por
ordem do Infante começou o seu povoamento, com brancos da metrópole e escravos da Guiné;
assim se iniciou a mais antiga colónia tropical do Mundo, e começaram os
portugueses a criar uma raça nova.
Os observadores futuros da cultura europeia hão-de encontrar que os dois
pontos de apoio fundamentais para se poder compreender a política deste século,
e sobretudo, destes últimos vinte anos, são uma tentativa para enfeixar os
valores comuns da civilização europeia,
unindo por cima das fronteiras e dos corpos nacionais, que são intangíveis, os
valores necessários à sua grandeza e até à sua simples sobrevivência; e uma
tentativa de compreensão dos valores culturais dos homens de cor. Nesta síntese, nesta dualidade, está o dilema da
Europa, como na sua falsa apologia está a falência internacional de uma das
maiores nações dos nossos dias, daquela cujo povo parece apostado em não querer compreender as diferenças que
separam a escravidão da criação e o colonialismo de exploração do colonialismo
ideológico.
O
manifesto de Bruxelas, é uma apologia, dirigida, sobretudo, aos professores,
para que ajudem a unificar os bens comuns da Europa − a situação geográfica, a
maturidade política, as fontes económicas ou a vida cultural − que fizeram nascer, apesar dos
conflitos de ideias e de interesses, os laços que unem a estrutura física e
moral do seu Ocidente, e que são feitos das contribuições que cada país trouxe,
em cada uma das suas épocas de criação, para o movimento geral das Ciências,
das Artes, e das Letras. Porque o nosso Humanismo é feito tanto pelo
Cristianismo como pelas crises de pensamento religioso, tanto pela ciência
experimental como pela democracia politica, tanto pela indústria como pela poesia. A nossa força moral vem do nosso
sentido de homem, e do que temos da sua liberdade, da sua dignidade e dos
limites morais do progresso. Se quiserem que eu diga, por uma forma alegórica,
aquilo mesmo que quero dizer, direi que sentimos as responsabilidades que cabem
aos descendentes dos homens que construíram o Mundo.
Em plena maturidade o homem ocidental da Europa procura,
agora, compreender os valores e as disponibilidades culturais dos povos de cor.
E o homem português, que além de ocidental tem a responsabilidade de ter criado
um desses tipos de homem – que são os mulatos - não pode faltar a esta chamada.
A conferência da U. N. E. S. C. O. procurou analisar a
filosofia comum existente na diversidade das culturas e os aspectos
espirituais, morais e religiosos que se podem verificar não só nas grandes
correntes hindu e chinesa, mas até naqueles povos negros que, até há pouco, se
considerou selvagens ou não evoluídos. Diligenciou, sobretudo, analisar aquelas
«constantes», como sejam a pátria, a família, a religião ou a cordialidade, que
as possam identificar. Quase sempre esses povos tinham sido colocados na
obscura alternativa de lutarem para preservar essas fontes culturais, ou de se
resignarem, a aceitar os valores estrangeiros. Será o mais nobre documento da
história nacional terem os portugueses procurado sempre, desde o seu primeiro
contacto e consoante as leis de cada século, respeitar essas raízes.
São bem conhecidas aquelas três frases de
culturação: aceitação, adaptação, criação, que
segundo a nomenclatura dos sociologistas norte-americanos e brasileiros, se
aplicam à história das relações dos povos de cor escura com os povos de cor
branca. E assim pode ter sucedido. Mas a revolução que está a apurar-se − e cujas raízes podem ver, os que
saibam olhar, nos primeiros despachos dos nossos reis −, a evolução que está a correr,
significa o senso geral de que o futuro e o progresso dos homens de cor serão
melhor servidos se em vez de lhes impormos os figurinos culturais dos povos
brancos, dermos a uns, como o hindu e o chinês, os meios de reconstruirem em
condições novos valores comparáveis àqueles que foram os seus padrões de
outrora, e a outros − como os da
Africa negra − a possibilidade
de criarem ou desenvolverem as suas raízes culturais. Simplesmente uma certa
política internacional, uma certa demagogia, a confusão que certas «élites» fazem entre raças superiores e
inferiores ou entre colonialismo de interesses e colonialismo de ideias, tem
prejudicado − com fogo e com
ódios − essa evolução
natural. A nossa posição tem que ser firme, mas cautelosa, sem permitir que
falsos sentimentalismos permitam que povos de cor estraguem, por imaturidade ou
deficiência política, aquilo que nós próprios neles queremos proteger. Se os
ajudarmos o seu futuro sempre se dirigirá para nós. E é dentro de um assim
amplo espírito de compreensão e de respeito que me proponho fazer uma meditação
pública sobre o homem cabo-verdiano.
Haverá manifestações que permitam
admitir a sua existência? Mais até: a existência de uma cultura, digamos mesmo,
de uma civilização cabo-verdiana? Discuti isto com os meus amigos de S. Vicente
e nem sempre estivemos de acordo. A alguns meses de distância, sinto um
inefável gozo espiritual em recordar que não poucas vezes eles se mostraram
mais arreigados do que eu próprio às nossas raízes ocidentais. E Deus sabe como
eu sou europeu!
Entendo por civilização o conjunto
das manifestações de ordem cultural e espiritual de um povo e de uma época,
qualquer que seja o seu grau de progresso ou a sua riqueza. É uma definição
científica, que permite afastar o critério restrito de civilização como o
significado de um progresso técnico; bem como a ideia de que tal estado seja
inseparável de tal progresso. Até porque, como bem demonstrou Henry George no
seu estudo sobre «Progresso e Pobreza» pode haver povos cultos genesicamente
destituídos do sentido de progresso. Como é o caso dos nossos vizinhos de Goa.
Assim, eu admito a existência de uma
civilização cabo-verdiana − com o seu
comércio, a sua poesia, o seu bailado, o seu idioma e até, coisa que escapou a
Gilberto Freire, as suas artes regionais. Fica apenas em discussão o seu grau,
que forças têm impedido o seu desenvolvimento e que culpa têm nessa
«indolência». ou nessa suspensão o meio geográfico e o homem.
ALMERINDO LESSA
- Diário Popular -
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